A BEBEDEIRA DA DESGRAÇA

A BEBEDEIRA DA DESGRAÇA
A noite estava assustadora! O jovem segurava o guarda-chuva contra o vento, cuja intensidade o abrigava por vezes a fechá-lo. A mãe bem lhe tinha dito que não devia sair de casa, mas ele fazia questão de nunca faltar à reunião de catequistas. A verdade é que o Sr. Padre era muito crítico em relação aos faltosos, independentemente das circunstâncias. A estrada não tinha iluminação e as poucas casas, nas proximidades da mesma, há muito que tinham adormecido. Não existia vestígios de vivalma. As nuvens, que escondiam o céu, tinham tornado a noite numa das mais escuras do ano, mas seriam os acontecimentos a torná-la numa noite negra. Os raios que cruzavam o céu, a intervalos, obrigavam-no as fechar os olhos e o estrondo que se lhes seguia fazia-o estremecer. Nesses momentos, a noite assumia um aspeto fantasmagórico que lhe causava arrepios. Ainda longe da curva das almas, um local com uma cruz onde se dizia que à noite andavam as almas penadas, ele começou a ouvir os cães a uivar.
Gilberto conhecia bem aquele caminho e costumava andar à noite sem problemas, mas naquela noite ele estava estranhamente intranquilo. Estremeceu. Não tinha alternativa. Tinha de continuar. A reunião tinha sido na sede da freguesia e na curva das almas começava a entrada da aldeia, que ficava a meio caminho de sua casa. A estrada continuava, fazendo um ângulo reto com o caminho da aldeia. Entre as duas ficava um descampado utilizado pelas pessoas que vinham ou iam para a aldeia e queriam encurtar caminho. Os cães estavam num desassossego pouco comum. Vinham da aldeia até à estrada a correr e depois faziam o percurso inverso, sem parar de uivar. Por vezes parecia que paravam junto ao descampado uivando mais intensamente. «Jesus, Virgem Maria! O que andará por aí esta noite?» Pensou, sentido o corpo arrepiar-se. Tinha parado de chover e, fechando o guarda-chuva, Giberto apressou o passo. Os uivos dos cães e do vento e o troar medonho, anunciado pela luz intensa dos relâmpagos, estavam a deixá-lo aterrorizado. Tentou andar ainda mais depressa, mas as pernas tremiam o que não lhe facilitava a tarefa. As sombras assumiam formas humanas gigantescas e ele começou a imaginar coisas.
Procurou ignorar os sentimentos que o invadiam para não ficar paralisado. Os arrepios nasciam no fundo das costas e subiam como descargas elétricas pondo-lhe os cabelos da nuca em pé. Sentiu frio. Aconchegou mais o Kispo e o cascol que lhe protegia o pescoço e os arrepios pararam. À medida que se aproximava de casa ia ficando mais tranquilo, mas quando fechou a porta atrás de si teve de se sentar numa cadeira para não cair. A casa estava em silêncio, mas, apesar de fria, pareceu-lhe extremamente aconchegante. Acendeu uma candeia de petróleo e foi até ao quarto. A família dormia o sono dos justos. Aconchegado pelas pesadas mantas adormeceu assim que se deitou.
O dia acordou auspicioso. O sol brilhava entre nuvens e embora o vento soprasse forte isso não o incomodava. Depois da aventura noturna do dia anterior tudo lhe parecia fácil de enfrentar. Levantou-se e foi para a escola bem cedo pois entrava às oito e dez. Quando regressou, ao fim do dia, a notícia apanhou-o de chofre.
«O Ti Jaquim desapareceu ontem à noite. A comadre dele diz que ele saiu lá de casa às nove da noite e como de costume já vinha com o diabo no bucho.» Disse a mãe.
«Qual foi o caminho por onde veio?» Perguntou Gilberto.
«Não se sabe mas a comadre diz que ele tinha intenção de vir pela estrada.»
«Onde está o pai?»
«Foi ajudar a procurar o homem. Bêbado com estava é bem capaz de estar prá aí num canto qualquer!»
Gilberto pôs-se a caminho e não tardou a encontrar o pai, acompanhado de várias pessoas, que passavam em revista os recantos dos montes, junto à estrada por onde era suposto ele ter vindo. Gilberto partilhou com o pai a experiência da noite anterior. O pai teve a intuição de que o uivo dos cães estava ligado ao desaparecimento do vizinho e apressaram-se em direção à aldeia. Ao fim de algum tempo encontraram o Ti Joaquim dentro do poço que ficava no descampado, junto ao caminho da aldeia. Tinha morrido afogado. Era uma visão terrífica. Tinha os braços e as mãos ensanguentados e estendidos para cima. A posição indicava que se tinha agarrado às silvas que cresciam no poço abandonado, numa tentativa vã de sair de lá. O rosto estava crispado e a boca aberta, como se tivesse morrido a gritar por socorro. Gilberto não conseguiu evitar um pensamento: «Será que algo o tinha impedido de sair do poço?»
Muita coisa se disse na aldeia e no resto da freguesia mas nada se provou. A versão de que tinha sido empurrado circulou em surdina mas suficientemente alto para chegar aos ouvidos da polícia. No entanto, a investigação que se seguiu foi rápida a concluir que tinha sido um acidente. Ele tinha atalhado caminho. A noite e a bebedeira tinham tratado do resto.
Estávamos em 1981. Tinham decorrido três anos desde a fatídica noite e Gilberto terminara o décimo segundo ano com uma vitória: tinha entrado na universidade. A sua felicidade apenas não era completa porque esse ano tinha perdido o pai. O irmão mais velho, já se tinha casado e vivia na vizinhança. Tinha decidido que não queria continuar a estudar e trabalhava na repartição de finanças. A irmã, que estudava para professora primária, ajudava a mãe na lida da casa. Apesar de ser o mais novo, ele era o homem da casa.
A mãe geria a pequena quinta contratando os trabalhadores necessários, mas fazia, ela própria, muitas das tarefas. Gilberto, quando não estava ocupado com os estudos, liderava os trabalhos como se a agricultura fosse a sua profissão.
«Hoje temos de ir para casa mais cedo. O Ti Agostinho vem ver os recos e eu quero que estejas lá comigo. Precisamos de os vender rapidamente.» Disse a mãe.
O homem que vinha comprar os porcos já estava atrasado. A mãe queria servir o jantar e o homem não havia meio de chegar. Chegou às oito horas já muito bêbado. Acabou por ficar para jantar embora ele apenas bebesse. O negócio ficou apalavrado, mas o comprador estava tão bêbado que não havia meio de se levantar e ir embora.
«O negócio tá fechado… bote lá um copo, Dona Maria, para celebrarmos. Sim, o meu sobrinho vem buscar os recos amanhã.»
«Mas olhe que a reca não bebe bem a auga.» Insistia a Dona Maria, numa manifestação de desnecessária honestidade.
«Tá bem… A reca não bebe mas bebo eu. Bote aí mais um copo.»
Copo atrás de copo o garrafão foi-se esvaziando. A partir de determinada altura o homem começou a chorar, dizendo por entre as lágrimas.
«A reca é como o outro… não gostava de auga mas foi beber ao poço.»
«O que está pra aí a dizer Ti Agostinho.» Perguntou a anfitriã.
«O compadre da Gulosa. Então não foi beber ao poço?»
A referência à Gulosa, alcunha da comadre do vizinho que tinha morrido afogado, deixou todos desconfortáveis. Dona Maria olhou para o comprador com um ar reprovador. A referência ao afogamento era de muito mau gosto.
«Não fui eu que o empurrei. Isso foi obra da Gulosa.»
A informação deixou a família gelada. Gilberto pegou no telefone e ligou para a esquadra da polícia de Vila Real. O subchefe chegou meia hora depois, acompanhado de dois homens, mas nessa altura já o Ti Agostinho apenas balbuciava coisas sem nexo. Levaram-no para casa e não puderam fazer mais nada.
«Sim, Sim, a Gulosa… ela sabe… um hôme fica preso.»
«Preso nas silvas?» Perguntou o subchefe.
«Hã!…»
O Ti Agostinho olhou-o como se ele tivesse dito o maior disparate do mundo.
«Um hôme fica preso a ela… a cama não tem silvas!»
Gilberto e a mãe transmitiram à polícia o que tinham ouvido da boca do Ti Agostinho. A Gulosa teria empurrado o compadre para o poço porque ele não lhe queria dar mais dinheiro. Aparentemente eram amantes mas ele fartou-se de a sustentar. Ti Agostinho, mesmo ciente do oportunismo da mulher, tornou-se conivente no crime em troca de favores sexuais. Gulosa era casada e mãe de cinco filhos, mas, apesar da idade, ainda era bem airosa. Tinha sido muito bonita em jovem mas, com o tempo, perdera grande parte do seu encanto. Em solteira tinha fama de ter um grande apetite sexual, o que lhe granjeara a alcunha: isso, ela não tinha perdido!
As palavras do Ti Agostinho não foram usadas como prova porque não puderam ser consideradas com uma declaração formal deste, dado o seu estado, no entanto, deram lugar a uma nova investigação, desta feita, conduzida pela polícia judiciária. Os amantes acabaram por confessar e, com a sua condenação, o caso foi encerrado. Na aldeia não faltaram os comentários sobre a forma como a bebedeira desgraçou primeiro a vítima e depois os criminosos: a bebedeira era uma desgraça!

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