LUANDA – PREPARAR A PARTIDA

Ao fim de um mês, Luanda era apenas sinónimo de suor e lágrimas. Talvez isso fosse um exagero, pois tinham existido alguns momentos de diversão, sobretudo ao fim do dia e nos fins de semana. Entre aqueles que partiriam para o mato, tinha-se formado um espírito de grupo interessante. Eram um grupo coeso, mas onde existiam personalidades completamente distintas e que faziam adivinhar até alguns conflitos. Fernando, era um bom avaliador de pessoas e identificou, de imediato, quem gostaria de ter a seu lado numa situação de perigo e quem preferia ver distante de si. Apenas um camarada o preocupava verdadeiramente. Era uma pessoa que ele não gostaria de ter a seu lado e muito menos nas suas costas, se alguma vez estivessem debaixo de fogo. Tratava-se de uma pessoa pouco fiável! Era, portanto, um grupo heterogéneo, onde existia um pouco de tudo, até de diferenças culturais.

Entre o grupo que partiria para o mato, tinha-se criado uma grande proximidade, devido ao número de horas que passavam juntos a treinar. No entanto, ao fim do dia e nos fins de semana, eles relacionavam-se com um grupo mais vasto, que eram todos os homens que pertenciam ao quadro permanente da esquadra, onde eles eram “hospedes”, durante o período de treino e adaptação que passariam em Luanda. Apesar disso, foram os homens pertencentes ao segundo grupo que lhe deram a conhecer a cidade.

A última semana em Luanda iria ficar na história por uma sucessão de eventos que marcaram Fernando de forma indelével. A formatura da manhã, de quarta feira, logo a seguir ao pequeno almoço, foi especial, porque receberam a instrução de comparecer na parada sem armas. Foi o sargento, responsável pela instrução, que deu as ordens e colocou a companhia a descansar, preparando-a para ouvir as palavras do capitão Fernandes. Era um homem novo, mais novo que alguns dos guardas que tinha à sua frente, mas já comandara a sétima companhia e tinha ido para Angola em 1961, tendo ficado por lá. Era, portanto, um dos pioneiros da guerra colonial e um homem de grande experiência.

«Como já sabem, na próxima segunda feira partem para o mato, devendo ser integrados na sétima companhia da Guarda Rural, embora distribuídos por locais distintos. Poucos serão os  que irão para a sede da companhia e, oportunamente, serão informados sobre o destacamento onde serão colocados. Até domingo, estão todos de licença, por isso, vão ser-vos distribuídos passaportes para saírem e entrarem na esquadra, a vosso belo prazer. Domingo, às 18 horas, terão uma formatura e irão conhecer o comandante que vos irá conduzir até aos vossos futuros postos e vos dará as instruções necessárias. Boa sorte a todos. Vocês estão aqui para defender a pátria, mas essa defesa passa por defender a linha que demarca as fazendas de café, do norte de Angola, dos turras e, muito especialmente, os trabalhadores que nela labutam.»

Tinha sido um discurso num tom exaltado que calou fundo na companhia. No fim, embora apresentassem um ar circunspecto, os homens estavam todos emocionados. O capitão retirou-se e o sargento distribuiu os passaportes, aos quais juntou alguns comentários, adequados a cada um deles, tendo, no caso de Fernando, dito:

«Ao seu lado enfrentaria qualquer combate!».

Depois de distribuídos os passaportes a formatura foi desmobilizada.

«Destroçar!»

O subchefe Casimiro estava de folga na quinta feira e desafiou Fernando para uma saída noturna na quarta e uma ida à praia dos coqueiros na quinta, tendo sido vários os homens que alinharam no programa.

A saída noturna ficou memorável, por várias razões. A primeira resultou do facto de terem ido a um clube noturno. Isso era novidade para todos eles e quando se viram rodeados de mulheres, que perceberam o filão que tinha acabado de entrar, não sabiam muito bem o que fazer. Fernando sentiu-se incomodado. A sua educação e o amor que o ligava à mulher, apesar da distância a que esta se encontrava, levou-o a recusar a companhia delas de forma delicada, indo sentar-se na mesa onde Casimiro estava. A maioria dos homens, aceitaram as carícias das mulheres, mas quando estas lhes começaram a pedir bebidas recusaram e acabaram todos sentados na mesma mesa a beber whisky. Apenas o Tavares e o Mendonça, aceitaram a companhia, ficando cada um deles sentado ao lado de uma mulher, a quem pagaram uma bebida. Eram dois tontos, apesar de estarem convencidos de que eram superiores. Esse sentimento ainda se acentuou mais, quando viram os outros todos sozinhos e eles bem acompanhados. A sensação de que eram os únicos que tinham conseguido ficar na companhia feminina deixou-os eufóricos e aceitaram pagar o champanhe às meninas. O empregado trouxe uma garrafa para cada uma delas. A garrafa era mínima, não tendo dado mais do que dois copos. Elas fingiram beber, fazendo desaparecer o champanhe no vaso de flores, que estava no canto, ao mesmo tempo que mergulhavam o rosto dos homens nos seus seios.

«Querido, posso pedir mais uma garrafa de champanhe?» Perguntou a companheira do Tavares, acariciando-lhe a face, ao mesmo tempo que com a outra mão lhe acariciava a coxa, mesmo junto à virilha.

Tavares disse que sim, sem pestanejar. A cabeça dele estava noutro lado e, na verdade, teria dito que sim a qualquer coisa. O Mendonça, quando foi alvo do mesmo pedido, achou-o estanho e afastou-se ligeiramente dela, para a olhar de frente. Parecia-lhe muito difícil que ela tivesse bebido, tão depressa, dois copos de champanhe. Ela olhou-o sedutoramente e encostou-se a ele, acariciando-lhe o sexo. Ele ia concordar, quando se lembrou de que não tinha trazido muito dinheiro e perguntou o preço da bebida. Esta custava o equivalente a dez garrafas de champanhe, num supermercado, o que o deixou alarmado. Ele nem sequer tinha dinheiro para pagar aquilo que já tinham bebido. Virou-se para o Tavares e puxou-o pelo ombro de forma brusca, afastando-o da sua companheira.

«Sabes que cada garrafa custa 1000 escudos?»

«O quê?» Gritou Tavares alarmado.

Instintivamente olhou para a mulher. Ela estava de copo na mão e deu o primeiro gole. Era tarde demais! Já não podia impedir o consumo da segunda garrafa.

«Mas eu não tenho dinheiro nem para pagar uma garrafa!» Exclamou Tavares.

As mulheres perceberam aquilo que se estava a passar e informaram o empregado. Discretamente, este pediu aos homens que fechassem a conta, enquanto as mulheres se mantinham ao lado deles, acariciando-os. Eles disseram que tinham de pedir dinheiro aos colegas e o empregado aguardou tranquilamente. Quando foram ter com os camaradas gerou-se uma grande confusão. O Mendonça ainda conseguiu o dinheiro, juntando os oito homens do grupo, que lhe eram mais próximos. O Tavares não tinha amigos pelo que ninguém se prontificou a emprestar-lhe o dinheiro. Quando a situação chegou ao conhecimento do gerente este veio ter com o grupo, juntamente com um segurança. Vinham preparados para dar um apertão monumental aos homens obrigando-os o cotizarem-se pra pagarem as bebidas. O segurança reconheceu o subchefe e segredou ao ouvido do gerente.

«Cuidado. Isto é um grupo de policias e ele é o subchefe.»

O gerente respirou fundo e disse de forma calma.

«Vocês não podem sair daqui sem pagarem as bebidas.»

Os homens ficaram todos calados. Ninguém sabia como resolver a situação. O subchefe queria evitar um escândalo, por isso manteve-se calado. Perante a situação, Fernando adiantou-se e disse.

«O senhor tem toda a razão. Quanto é a minha conta?»

«O senhor foi o único que não tomou nada.» Disse o empregado.

«Então boa noite.» Disse Fernando, dirigindo-se para a porta.

«O senhor não pode sair sem todas as bebidas estarem pagas!»

«Quero ver quem vai ser o homem que me vai impedir. Se os senhores não sabem gerir um estabelecimento e servem bebidas, a pessoas que não têm dinheiro para as pagar, o problema é vosso.»

O gerente e o segurança hesitaram e o grupo aproveitou a indecisão destes, para se juntar ao Fernando, corroborando a sua posição.

«Mas alguém tem de pagar as bebidas dele!» Disse o gerente.

«Alguém? Você não percebeu bem o que eu disse. Talvez você queira chamar a polícia e explicar-lhes que está a tentar obrigar os clientes do estabelecimento a pagar pela bebida que apenas um deles consumiu. Isso é um problema entre si e aquele senhor. Portanto, desapareça da nossa frente e resolva o problema com ele.»

O gerente e o segurança afastaram-se para o lado, deixando o grupo passar. O subchefe ficou lá dentro com o Tavares. Ele tinha levado para ali os homens e não podia abandonar um deles, embora Tavares bem o merecesse. O grupo ficou no exterior à espera que a situação fosse resolvida. Ao fim de 15 minutos, Fernando virou-se para os restantes e disse.

«Embora o Tavares não mereça nada, não o podemos deixar lá dentro. Para além disso, o subchefe vai ficar com ele e o Casimiro não merece isso. Alguém tem dinheiro?»

Os restantes meteram as mãos nos bolsos e somaram os valores que tinham na carteira. Ao todo tinham 120 escudos. Fernando abriu a carteira e disse:

«Eu tenho 2500 escudos, mas não sei se estou disponível para emprestar o dinheiro ao Tavares. Se o fizer tenho de ter garantias de que vou receber o dinheiro.»

Entretanto o subchefe veio ter com o grupo e disse.

«Se deixarmos o Tavares lá dentro, eles vão chamar a polícia e um incidente como este vai fazer com que ele seja preso. Isso vai acabar com a carreira dele na Guarda Rural.»

«Eu tenho dinheiro para pagar a conta dele, mas só o faço se o subchefe arranjar forma de tornar a dívida para comigo oficial e ela for abatida no vencimento dele, do próximo mês.»

«Para isso ele teria de assinar um documento de dívida oficial, que fosse validado por testemunhas.» Disse o subchefe.

«Pergunte ao gerente se ele tem papel azul, de 25 linhas e eu vou redigir uma confissão de dívida e a respetiva autorização de compensação, no salário do próximo mês, que vai ser recebido na sexta feira. O documento será assinado por ele, como devedor, e por vocês todos como testemunhas.»

Depois de todos se colocarem de acordo, Fernando redigiu o documento e a conta foi saldada. À laia de despedida o gerente disse ao Fernando.

«Apareça por cá noutro dia que a gerência oferece-lhe uma bebida. Quanto ao senhor, escusa de aparecer, porque a sua entrada está definitivamente vedada.»

Apesar de terem planeado uma noite longa, depois daquele incidente, ninguém queria continuar a noite e regressaram à esquadra. Casimiro tomou Fernando pelo braço e foram os dois juntos no mesmo táxi. Para sua surpresa, Casimiro levou-o a outro bar e ele ficou a conhecer um pouco mais da noite de Luanda.

O despertar, no dia seguinte, foi mais tardio que o costume para a maioria. Fernando foi o único que compareceu ao pequeno almoço. Apesar disso, por volta das nove horas partiram para a praia. Tratava-se de uma praia que tinha limos e, por vezes, não se podia ir à água, mas quando estava limpa era excecional, sobretudo para iniciantes. Fernando nunca tinha ido à praia e havia aprendido a nadar no açude do pequeno rio, que passava perto de sua casa, um afluente do rio Cabril. O dia estava muito quente e a água estava sem limos, embora a areia guardasse sempre alguns vestígios destes. Fernando nunca mais esqueceria a sensação de sentir a areia debaixo dos pés. Ele já havia sentido, debaixo destes, a terra solta, nos tempos em que se dedicava à agricultura. Era algo de que gostava especialmente. No entanto, sentir a areia mole, debaixo dos pés, era indescritível. Os pés enterravam-se ligeiramente e a areia parecia acariciá-los. Ao contrário do que acontecia com a terra do campo, os pés quando emergiam da areia estavam limpos e isso foi uma novidade para ele. Mas nada o tinha preparado para a sensação de andar na areia molhada. Os pés deixavam a sua forma marcada na areia, mas caminhavam livremente sobre esta.  Fernando sorriu ao comparar isso com o esforço que tinha que fazer, para retirar os pés da lama, que a terra do campo formava, quando estava molhada. Caminhou ao longo do mar e quando deu por si estava longe dos camaradas, pelo que regressou e foi quando deu o seu primeiro mergulho na água salgada.

Como sabia nadar, entrou na água sem hesitação e foi aí que teve o seu primeiro choque. O mar estava calmo, mas tinha pequenas ondas que rebentavam de forma suave, desfazendo-se em seguida sobre a areia. Apesar destas serem pequenas, Fernando não estava prevenido para o impacto e inclinou-se ligeiramente para trás para o encaixar, tendo ficado sentado na areia, com a onda a passar-lhe por cima. Levantou-se, meio atrapalhado e perante a gargalhada geral. O Casimiro ensinou-o a entrar na água e alertou-o para o facto de quando estivesse a nadar ter de controlar a respiração de forma diferente do que fazia no rio.

«Estas ondas são fracas, mas quando a ondulação é forte, a única forma de entrar é furando a onda assim.» Disse Casimiro, mergulhando para exemplificar.

Depois de darem umas braçadas Casimiro explicou-lhe ainda algo sobre as correntes.

«De uma forma geral, a uma distância curta da praia, o mar empurra sempre para a areia, mas as praias não são todas iguais. Existem sítios, onde devido ao formato da baía ou da própria praia, em conjugação com as correntes, o mar te arrasta para o largo. Quando não sabemos como lidar com isso, podemos cometer o erro de o tentar contrariar, nadando contra a corrente. O que deves fazer é nadar paralelamente à praia, ainda que o mar te arraste um pouco, e encontrar um ponto onde a corrente te leve para a areia, aproveitando esse impulso para nadar nessa direção.»

«Obrigado. Efetivamente, nadar no mar não tem nada a ver com dar um mergulho no açude do rio.»

Dito isto Fernando deu umas braçadas afastando-se um pouco de Casimiro. Talvez fosse impressão dele, mas tinha a sensação de que lhe custava menos a nadar no mar do que no rio. Ou seja, a água do mar parecia dar-lhe uma sustentação superior à do rio. Seria do sal ou da ondulação? Prometeu a si próprio que investigaria isso. Podia perguntar ao Casimiro, mas antes de o fazer faria a sua própria investigação.

Quando regressaram à esquadra, Fernando reparou que os homens o olhavam de forma diferente. Havia admiração na maioria dos olhares, mas alguns refletiam também inveja. Na sexta feira antes de saírem para ir à praia, Fernando foi receber o vencimento e achou estranho ver o Tavares, sentado numa cadeira e o subchefe ao lado dele. Sentado ao lado do tesoureiro, estava um tenente que Fernando nunca tinha visto. Ele ficou em sentido aguardando instruções.

«À vontade.» Disse o tenente.

O tesoureiro mandou avançar o Tavares e pediu ao Fernando o documento de dívida. O tenente leu-o com um aceno de cabeça e dirigiu ao Fernando um olhar de admiração. Tavares ainda protestou, mas o valor que recebeu estava deduzido da dívida que foi entregue ao Fernando. Depois de receber e ao passar por Fernando disse em surdina, mas suficientemente alto para ser escutado pelos restantes.

«Vais pagar-me isto!»

O tenente acabou por se apresentar. Tratava-se do novo comandante da sétima companhia da Guarda Rural, portanto do seu comandante.

«Existem homens que merecem que os saúde militarmente, mas o senhor merece algo mais. Permita-me que lhe aperte a mão. Se algum dia precisar de alguma coisa a minha porta estará sempre aberta para si.»  Disse o tenente Rodrigues, dirigindo-se a Fernando

Tavares não conseguiu ficar calado e acusou Fernando de tentar dar-lhe cabo da carreira, pois eles podiam ter resolvido a coisa entre eles, sem que fosse do conhecimento dos superiores. Ao fim de algum tempo, a insistir nos mesmos argumentos, o grupo que estava no bar acabou por concordar com ele. Quando subchefe Casimiro entrou, Tavares procurou juntá-lo ao coro, coadjuvado pelos restantes. Casimiro levantou a mão e quando se fez silêncio falou.

«O Tavares tem razão. A situação podia ser resolvida entre os dois. No entanto, isso só era possível se tu fosses um homem de palavra. O Fernando conhece-te muito bem e eu também fiquei a conhecer-te na quarta à noite. Por isso, é que fui para a tesouraria antes que ela abrisse, à espera que tu aparecesses. Foi sem surpresa que foste o primeiro a aparecer e não declaraste qualquer divida, ao contrário do que estava acordado. Mas, pior do que isso, foi teres reclamado da dedução, declarando que o documento não valia nada e que o Fernando receberia o valor quando tu entendesses. Tu não prestas, por isso nem sequer pronuncies o nome do Fernando, porque o sujas com a tua boca.»

O silêncio que se seguiu foi constrangedor. O subchefe era um homem respeitado e os homens ao ouvirem aquilo afastaram-se de Tavares. Ele baixou a cabeça, envergonhado e saiu do bar. Fernando soube mais tarde e agradeceu ao subchefe as palavras que tinha dito. Quanto ao Tavares, esperava que ficassem colocados em sítios diferentes, pois gostaria de conviver com ele o menos possível. No entanto, apenas o futuro iria permitir saber isso e o futuro a Deus pertencia.

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