O PONTÃO

O PONTÃO

O Carnaval de 1989 tinha sido memorável. O tempo estava muito quente, para a época do ano e a zona ribeirinha de Sesimbra encheu-se de gente. Todos os bares tinham música e havia vários conjuntos a tocar na rua, para gaudio dos foliões. Manuel, já tinha ouvido falar do Carnaval de Sesimbra, por isso deixou-se convencer pelo grupo de amigos. Andava de beiço pela Filomena e como ela também ia… Era o único que tinha carro e como não tinha o hábito de beber foram todos com ele. A noite foi uma desilusão. Os outros quatro rapidamente formaram dois casais e ele ficou a segurar a vela. Subitamente, ele estava só no meio da multidão. Estavam na ponta do pontão que entrava mar a dentro, partindo da praia, quase em frente ao hotel do mar. Fixou o mar admirando a lua que se espraiava sobre ele. Tinha desenhado um risco prateado, mais intenso no centro e suave nas extremidades. Era como uma linha traçada entre ele e o horizonte. «É a linha do meu destino!» Sorriu do pensamento. À esquerda a Serra da Arrábida, na sua imponência, absorvia a luz do luar, escondendo os seus mistérios. Quando deu por si os outros tinham partido. O local ficou em silêncio, embora chegasse até ele o som da música e o bulício da festa. Seguramente, que os encontraria às quatro da manhã, junto ao carro, como combinaram. Colocou os braços sobre o bloco de formas arredondadas, que estava no cento do pontão e ficou a olhar o infinito.
«Também foste deixado sozinho?»
Assustou-se com o comentário e olhou à sua volta, para ter a certeza que ela falava com ele. Não estava ali mais ninguém. Fixou-a e abriu a boca involuntariamente. O luar incidia sobre o rosto dela conferindo-lhe um brilho que realçava as forma perfeitas do nariz e da boca. Os olhos eram claros. Ficou indeciso entre o verde e o azul. Os cabelos ruivos, tinham tons cobreados, semeados, aqui e ali por fios doirados. Os caracóis, que repousavam graciosamente sobre os ombros, oscilavam com a brisa muito suave, que vinha do mar. Ficou mudo, admirando-a, durante alguns instantes.
«É verdade.» Disse sorrindo.
O sorriso era a sua arma. Todas as mulheres lhe diziam isso e ele usou-a sem restrições. Ela sorriu de volta. Ui! O sorriso dela era como um sol, brilhando no centro do rosto e iluminando-o. Os dentes perfeitos e alvos sobressaiam sob o reflexo do luar, dando-lhe um aspeto surreal. Ela era uma deusa!
«Meu Deus, tu és mesmo bonita. – disse sem pensar – desculpa o tratamento informal…» Disse meio atrapalhado.
Ela soltou uma gargalhada cristalina.
«Adorei a espontaneidade e sinceridade do teu comentário.» Disse com ar sério.
«O meu nome é Manuel.» Respondeu ele
«O meu é Sofia.»
Conversaram durante uma boa parte da noite e depois foram dançar. O primeiro beijo surgiu de forma espontânea, seguindo-se muitos outros. Aquilo que sentiam era algo mágico. Para além de bonita ela tinha um corpo elegante, sem ser escultural. Ele era um homem alto e forte e, segura nos braços dele, Sofia rodopiou ao som das músicas da noite. O romance estava no ar. Eram os dois bons bailarinos, sobretudo dos ritmos africanos e latinos. Tinham-se encontrado às nove da noite e durante cinco horas partilharam muitas coisas sobre ambos. Um pouco depois das duas gerou-se alguma confusão, mesmo ao lado deles e antes de perceber o que se passava, viu-se separado da Sofia. A GNR interveio e resolveu o conflito, não sem antes se registarem três feridos, que foram levados por uma ambulância. Procurou-a por todo o lado, mas foi em vão. Às quatro e meia já não estava ninguém nas ruas e ele ainda a procurava. Quando chegou ao carro a expressão de desalento não passou desapercebida a ninguém, mas ele não deu grandes satisfações. Voltou a Sesimbra muitas vezes, na tentativa de a encontrar, mas ela tinha sumido. Não tinha qualquer informação sobre ela, mas mesmo assim colocou anúncios nos jornais procurando pela sua Musa, designação que lhe tinha dado essa noite. Foi tudo em vão. O tempo foi passando e ele perdeu qualquer esperança de a encontrar.
Decorria o ano de 2014 e muita coisa tinha acontecido. Manuel tinha ficado viúvo e vivia com as suas duas filhas, em Lisboa. Fazia dois anos que estava viúvo e depois de ultrapassados os primeiros meses de dor e saudade, Sofia começou a ocupar o seu pensamento, com alguma assiduidade. As filhas cuidavam do pai com carinho e sem cobrança, mas insistiam em que refizesse a vida. Tinha quarenta e seis anos, um aspeto distinto e corpo enxuto, por isso não lhe faltavam pretendentes. A prioridade dele eram as filhas e a única mulher em que pensava era a Sofia, isso afastava todas as que se aproximavam dele. Nessa altura, ela devia ter quarenta e cinco anos. A filha mais velha, que tinha dezanove anos, falou-lhe no carnaval de Sesimbra e ele contou-lhes o episódio, vivido há vinte e seis anos. Estava decidido: iriam sambar o Carnaval a Sesimbra. Naturalmente, que elas levavam os namorados, por isso ele estava condenado a ficar só.
Elas não queriam deixar o pai sozinho, mas depois de alguma insistência deste e dos respetivos namorados, as filhas foram divertir-se e ele passeou-se junto à praia. Sesimbra estava completamente diferente, mas o pontão continuava lá. Na ponta tinha sido construído um miradouro em madeira, com uma amurada e ele debruçou-se sobre o mar, escutando o som das ondas, de encontro às pedras que constituíam a sua base. Sem saber explicar bem porquê sentiu necessidade de se voltar e os seus olhares cruzaram-se. Ficaram os dois parados sem qualquer reação.
«Sofia?»
«Manuel?»
Ele percorreu o espaço que o separava dela e abraçou-a sem cerimónia. No primeiro instante, ela ficou sem reação, depois envolveu-o num abraço forte. Havia tantas coisas que tinham para falar um com o outro… Em poucas palavras traçaram uma pincelada das suas vidas. Ela nunca tinha casado. O encontro com Manuel tinha-a deixado marcada, até porque ela tinha sido uma das pessoas que tinha ficado ferida. Foi empurrada e bateu com a cabeça na parede tendo levado vários pontos. Ficou feliz por saber que ele a tinha procurado, e gostou de saber que ele tinha continuado com a vida. Ela tinha tido muitas relações, mas a carreira de investigadora do CERN não lhe tinha deixado tempo livre para assumir nenhuma delas. O amor da vida dela tinha sido ele e depois dele apenas a ciência. Agora chefiava uma equipa de investigação no Centro Champalimaud e tinha vindo definitivamente para Portugal. Eram tempos bem mais calmos.
«Tenho pensado muito em ti no último ano. Sabia que era uma estupidez, mas vim aqui para ver se te encontrava.»
Manuel abriu a boca várias vezes sem que saísse algum som.
«Eu também tenho pensado muito em ti. As minhas filhas querem que refaça a vida, mas tu não me sais do pensamento. Essa é a razão por que estou aqui.»
«Isto é uma grande coincidência!» Disse ela.
«O destino juntou-nos uma segunda vez. Antes que nos tente separar dá-me os teus contactos.»
Tornaram-se, de imediato, amigos nas várias redes sociais. Não iriam deixar que o acaso determinasse se ficariam ou não juntos. Sofia era uma mulher bem mais interessante do que quando tinha vinte anos, embora já não tivesse a frescura da juventude. Manuel, apesar de mais maduro, tinha muito mais charme. Ao fim de algumas horas de conversa juntaram-se ao bailarico e o primeiro beijo surgiu ao som de uma morna. Quando deram por eles estavam a dançar ao lado da filha mais velha de Manuel.
«Olá pai. Vejo que encontraste uma mulher bonita para dançar.»
«Filha. Esta é a Sofia.»
«Prazer. Eu sou a Ana Sofia.»
Quando o pai lhe explicou que era a Sofia de há vinte e seis anos atrás, a filha não quis saber de mais nada. Monopolizou-a como se fossem as duas melhores amigas. No dia seguinte, iriam almoçar todos e passar a tarde juntos, na casa de Cascais. Manuel olhou para as filhas e para Sofia e interrogou-se. O destino tinha sido cruel ao separá-los, ou apenas sábio, ao juntá-los no momento certo?

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