O SEMÁFORO
Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina.
No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca gostou da ideia e gostou ainda mais dos queijos, uma iguaria para o paladar e para o olfato. Onde instalar o dispositivo? A Avenida dos Aliados era o local desejado, mas os narizes torciam-se ou por não lhes ter chegado o odor do queijo ou pela tacanhez do seu dono e, de bairro em bairro e rua em rua, «Trata-se de um dispositivo experimental, bem sabe!» a invenção acabou na incógnita e infrequentada Rua Fernão Penteado, na intersecção com a travessa de João Roiz Castelo Branco.
Como muitos dos grandes inventos o sistema era simples, mas eficaz: podia dizer-se, com propriedade, que era luminoso. Um homem pedala uma bicicleta, suportada por dois ferros, a vinte centímetros do chão. A corrente faz girar um dínamo, dentro de uma bobina e faz-se luz. A energia gerada vai iluminar um semáforo, que é comutado pelo homem do pedal. O cuidadoso acompanhamento técnico determinou, por altura da segunda guerra mundial, que a roda da frente era desnecessária: Mandava a eficácia que fosse retirada.
A função de samaforeiro suscitou muito interesse. Foram muitos os candidatos a entregar a detalhada ficha de candidatura, que requeria um ciclista profissional. Um erro menor, que não impediu que o eleito fosse um galego chamado Ramon. Nunca tinha pedalado na vida, mas era um homem com espírito de missão. A sua dedicação e esforço provaram que a escolha tinha sido acertada.
A bicicleta foi o trono à volta do qual a dinastia do galego construiu o reinado do pedal. Ramon comutou e pedalou durante anos, por altura da segunda guerra foi substituído pelo filho Ximenez. Com a revolução dos cravos sucedeu-lhe o neto Asdrúbal e, recentemente, assumiu o pedal o bisneto Paco. O modesto ordenado, equivalente ao de um jardineiro, não era suficiente para justificar tal dedicação, ao longo de quatro gerações: Era uma questão de amor. Um amor puro e desinteressado que se alimentava unicamente da nobreza da profissão! Altas horas da madrugada, as várias gerações foram vistas, de ferramenta em riste, dedicando-se ao aperfeiçoamento do sistema e à sua manutenção. Foram essas mesmas ferramentas que usaram para o defender, quase com selvajaria, quando um jovem engenheiro sugeriu que apenas o carreto bastava.
Os portuenses que, por afazeres profissionais ou lazer, percorrem as encruzilhadas da cidade, sentem-se confortáveis com os semáforos manuais: são mais pessoais e flexíveis.
«Bom dia Paco. O calor já aperta. Hoje dava jeito uma sombrinha!»
Paco sorri, bem-disposto e passa o dedo pela testa, num gesto de quem limpa o suor. Sem dizer nada, comuta e, com um aceno, despede-se do transeunte.
Quis a providência que, mesmo à esquina, ao primeiro andar, tivesse vindo parar um médico, que ali fez consultório. Pouco antes da instalação do semáforo a pedal, veio para ali morar o doutor João Pedro Bekett, pai de dois filhos e médico afamado. Tinha a seu cargo a manutenção da família e do prestígio da ascendência: uma longa linha de homens da ciência e Lentes universitários, que dedicaram a sua vida ao bem da humanidade. O doutor João evidenciava essa mesma dedicação, embora de forma mais moderna e peculiar. A sua missão era erradicar as doenças. Motivado, partia à descoberta dos doentes.
«Está doente?»
A negativa não lhe diminuía o entusiasmo.
«Tem a certeza? Venha comigo que eu trato-o!»
Esta urgência de levar a cura a todos, trazia-o num vaivém entre um lado e o outro da rua. A existência do semáforo complicava!
Tendo dois clientes pelo braço, foi tomado de impaciência e bradou severo:
«A mim ninguém me diz quando posso ou devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre, numa missão superior!»
Ramon acusou o toque. Também ele tinha uma missão. Incomodado com o facto de interferirem no seu trabalho, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para duas famílias desavindas, qual Taira e Minamoto. Felizmente nunca coincidiram descendentes casadoiros. Tem potencial para complicar as coisas!
O sucessor do Dr. Pedro foi o filho João, um médico que não fazia jus à linhagem. Herdou o consultório e o ódio pelo samaforeiro. Disfarçava a insegurança com a modéstia: informava sempre os clientes que o seu diagnóstico provavelmente estava errado. Amenizava o erro reconhecendo a sua possibilidade por antecipação. Consciencioso, mas imprudente, perdia a clientela, recomendando a obtenção de uma segunda opinião. Sobrava-lhe tempo para dar vazão ao ódio. Da pacatez da sua janela, divertia-se, com um espelho colorido, encadeando Ximenes. E o semáforo não comutava…
Entre o jovem Paulo, herdeiro do consultório, e Asdrúbal azedou-se o guisado. Ao médico o que lhe sobrava em verborreia faltava-lhe em coragem.
«Sus Galego!» Dizia entre dentes, num rosnado, o médico, ao passar.
«Xô magarefe!» Retorquia o descendente do galego.
Uma tarde Asdrúbal saltou da bicicleta e avançou sobre o médico. O jovem deu às de Vila Diogo, apressando-se a buscar o refúgio da ombreira da janela.
Este Dr. Paulo era professoral. Ouvia as queixas dos doentes, tamborilando os dedos na escrivaninha, e depois erguia a mão e começava:
«As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. Num caso chamam-se viróticas, no outro, bacterianas…»
Dissertava longamente, até que o doente se entregava nos braços de Morfeu. A malícia ou má-língua levava alguns colegas a afirmar que ele praticava a terapia do sono. No entanto, a maioria dos doentes gostava das explicações. Alguns até alimentavam a dissertação com perguntas. Após a consulta, num tom sigiloso, o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe dissessem:
«Arrenego de ti, galego!»
Isto foi assim com Asdrúbal e agravou-se com o Paco, quando este assumiu o pedal.
No início da semana o Dr. Paulo preparava-se para atravessar a rua. Debaixo da língua trazia o «Arrenego-te», que arremessaria a Paco e debaixo do nariz, o maravilhoso cheiro do pão-de-ló de Felgueiras, que transportava com mil cuidados, comprado na pastelaria ali ao lado. De improviso, o jovem da mota acelerou e inclinou-se, lateralmente, para lançar um piropo, quase ao ouvido, da loira que ali passava. O acidente aconteceu. Com violência, mas de raspão, embateu no samaforeiro, deixando-lhe o esqueleto pregado no alcatrão negro. Catástrofe!
O Dr. Paulo largou tudo: espalharam-se o aroma e as migalhas do pão-de-ló. Debruçado sobre o sinistrando, focou nele os cinco sentidos e, com fervor, diagnosticou:
«Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou perfurantes.»
Os paramédicos, com vénia ao Dr. Paulo, levaram-no na ambulância antes que este entrasse no capítulo das «manchas de sangue», que, por coincidência, cobriam o chão. A incerteza do regresso de Paco não deixou o posto vazio. Uma figura de bata branca solta os bofes sobre o pedal, comutando o semáforo, todos os dias, desde o pôr-do-sol até ao anoitecer. É o Dr. Paulo que, num ato de contrição, penitencia a mente e o corpo, fazendo-se útil, enquanto o Paco não regressa.
Este texto é uma rescrição do conto “Famílias Desavindas” de Mário de Carvalho.
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