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A ACEITAÇÃO
No domingo Emília acordou mais cedo do que o Pedro, embora, na verdade, não fosse assim tão cedo. O relógio, silencioso mas desperto, na sua posição de guardião do tempo, ditava as horas, de cima do criado mudo: eram nove horas. Emília sentia-se, simultaneamente, vitoriosa e receosa. Perceber que tinha conseguido encontrar a razão de muitas das suas reações era uma vitória, cujo brilho era toldado pela dificuldade em interiorizar essa conclusão. Racionalmente a conclusão parecia clara e lógica, mas quando se olhou ao espelho surgiram as primeiras dúvidas. O corpo que ela via não correspondia à imagem que guardava de si. Aquela não era a Emília que queria ver. Pedro aproximou-se sem que ela percebe-se e abraçou-a. Estava colocado por trás dela e, ao mesmo tempo que lhe beijava o pescoço, acariciou-lhe o abdómen. As mãos deslizaram, gentilmente pelo corpo e pararam nos seios, acariciando-os com delicadeza. O rosto dele era o espelho do prazer e ela deixou-se contagiar, virando o rosto para lhe oferecer os lábios carnudos. Nessa altura era impossível ignorar a intumescência que se manifestava, em espasmos, entre os dois: ele estava excitadíssimo! Pedro virou-a para si e beijou-a com paixão. Com uma delicadeza extrema pegou nela ao colo, rodou sobre si próprio e dirigiu-se para a cama. Ela ficou de frente para o espelho e uma imagem explodiu na sua mente: duas dobras no abdómen e dois seios caídos.
«Põe-me no chão!» Disse Emília de forma brusca.
Pedro hesitou durante alguns segundos. Não entendia o que tinha passado pela cabeça dela, para justificar tal mudança de humor. Poisou-a devagar e com um sorriso no rosto disse:
«Se preferes ir pelo teu pé eu não me importo.»
Aproximou-se para a beijar e acariciar, mas ela impediu-o com a mão e afastou-se.
«Deixa-me!» Disse, simplesmente.
Pedro fez um esforço para se acalmar e não reagir de forma exaltada. Ela pegou no roupão e saiu apressada do quarto. Pedro dirigiu-se para o banho e a sua imagem refletiu-se no espelho. Estar excitado era normal, quando Emília estava por perto, mas estar ali sozinho com aquela parte do seu corpo exibindo-se de forma proeminente, pareceu-lhe simplesmente ridículo. Talvez não fosse! Entrou no banho e olhou para si próprio: tinha ali um problema. Felizmente ele tinha a solução para ele mesmo à mão. Quando chegou à cozinha Emília tinha arranjado o sumo e a fruta e as torradas estavam mesmo a sair. Ela iniciou uma conversa sobre sexo e prazer, daquelas que normalmente o deixavam excitado, mas nesse dia ele já tinha satisfeito o desejo. Terminada a refeição, Pedro foi lavar os dentes e Emília seguiu-o. Abraçou-o por trás e acariciou-o, procurando excitá-lo. Nada surtiu efeito e ao fim de alguns minutos ela olhou-o interrogadoramente.
«Quando foste para cozinha deixaste uma situação pendente e eu resolvi-a. Agora vais ter de esperar um bocado até ele ganhar vida novamente.»
Emília não disfarçou a sua desilusão e, sem dizer nada, deu meia volta e saiu de forma desabrida. Quando Pedro se retirou para o escritório ela foi para o banho. Estava muito irritada. Pedro nunca lhe tinha feito aquilo antes. Quando era rejeitado esperava pacientemente e se ela voltava ele estava sempre disponível para ela. Sentia-se desfeiteada. Deixou a água correr sobre o corpo com os olhos fechados, revivendo a última hora. Depois de alguma reflexão concluiu que talvez devesse estar irritada com ela própria. Sim tinha sido ela a rejeitá-lo e não podia levar a mal que ele se satisfizesse sozinho. Apesar disso, sentia que tinha sido traída. Enquanto secava a pele voltou a olhar-se ao espelho. A Emilia das suas memórias algum dia regressaria? Vestiu-se e foi até à varanda. La fora o silêncio era marcante. Na última semana a atividade nas ruas tinha aumentado, apesar de ainda não ter atingido o volume que se verificava antes do confinamento. Apesar disso, como ainda era muito cedo imperava o silêncio, apenas interrompido pelo alegre chilrear das aves. Emília sentou-se e deixou que o astro rei lhe banhasse o rosto, fechando os olhos. Sentiu que o sol a penetrava, profundamente, possuindo-a de uma forma estranha. Estremeceu de prazer. Abriu os olhos e riu-se de si própria. Entregou o corpo ao sol e deixou-se ficar relaxada, gozando a paz do momento.
«Bom dia!»
Abriu os olhos, sobressaltada. Tinha-se esquecido de que estava na varanda e a D. Teresa apanhou-a completamente de surpresa.
«Bom dia D. Teresa.»
Durante alguns minutos jogaram conversa fora. A lida da casa, o tempo, os filhos e o maldito confinamento, foram passados em revista, como quem percorre a agenda de uma reunião. Depois ficaram alguns momentos em silêncio.
«Hoje de manhã voltei a fazer asneira.» Disse Emília, à laia de introdução.
«Então!»
Emília narrou aquilo que se tinha passado com o Pedro e calou-se. Estava à espera de ouvir uma reprimenda, mas a anciã limitou-se a olhar para ela com aquele olhar profundo a que já a tinha acostumado. Emília sentiu-se incomodada, mas aguentou firme. Ainda não se tinha acostumado àqueles olhares. Perante o silêncio da vizinha Emília reagiu.
«Não compreendo. Apesar de ter chegado à conclusão que a razão do meu comportamento está na forma como vejo o meu corpo, isso não se traduziu numa mudança de atitude.»
«Perceber qual a razão que está na origem das nossas reações é o primeiro passo, mas, só por si, não introduz grande modificação no nosso comportamento.»
«Então como resolvo o problema?» Disse Emília, abrindo os braços, com a palma das mãos viradas para cima.
«A Emília tem que dar o segundo passo, que e a aceitação.»
«O que é que eu tenho de aceitar?»
«Aquilo que provoca as reações está na sua mente e resulta da forma como visualiza o seu corpo. Isso acontece porque a Emília se coloca numa perspetiva que lhe gera desconforto.»
«O que quer dizer com isso?»
«Existe uma disfunção entre a realidade e a forma como a Emília vê essa realidade.»
«Como se elimina essa disfunção?»
«Aceitando a realidade tal qual ela se apresenta.»
«Não compreendo. Eu já aceitei que estava tudo na minha cabeça!»
A anciã ficou a olhar para ela sem dizer nada. Por instantes pareceu indecisa sobre aquilo que devia dizer. Debatia-se consigo própria, num diálogo silencioso, procurando o melhor caminho a seguir.
«Num colégio particular de Lisboa, existia um jovem inteligentíssimo, mas com um problema de gaguez. Essa caraterística tornava-o diferente duma forma que ele não queria ser. Primeiro porque todos os colegas gozavam com ele, depois porque era excluído das conversas e até das brincadeiras. Até os professores tinham pouca paciência para esperar que ele articulasse uma resposta.»
«Os colegas tinham um comportamento muito feio, mas o facto de os professores o discriminarem é grave.»
«Tudo isso é verdade, mas a nossa história não é sobre a deficiência do rapaz. O facto de ser descriminado gerava dentro dele uma grande revolta que levava a comportamento violentos. A conjugação desses fatores fazia com que o menosprezasse. Quando foram realizados os primeiros testes, os professores nem queriam acreditar. Ele tinha obtido classificação máxima em todos. Nessa altura, os professores, liderados pelo diretor de turma, promoveram o reconhecimento da deficiência do rapaz. O esforço deu bons resultados e passou a ser-lhe dado tempo para responder, tendo os colegas deixado de gozar com ele. No entanto, o rapaz continuava a ter comportamentos violentos, embora com menor frequência.»
«Isso era porque os comportamentos violentos não estavam ligados à descriminação, mas tinham outra razão.»
«Talvez sim, talvez não. Já o segundo semestre ia avançado quando decidiram que o rapaz deveria ser acompanhado pelo psicólogo. Ao fim de várias sessões ficou tudo claro na mente do especialista. Os colegas e professores tinham reconhecido que ele tinha uma deficiência e tomaram medidas para viver com esta, mas isso só por si não resolvia o problema.»
«Então não era suficiente reconhecer a deficiência e aceitar viver com ela?»
«Não. Efetivamente esse era um passo necessário e importante, mas não suficiente.»
«O que faltou então?»
«O que se pretendia era descobrir a origem dos comportamentos violentos e eliminá-la. Ora os comportamentos são atributos próprios de pessoas e não de deficiências.»
«Não entendi.»
«Os comportamentos violentos eram uma reação do rapaz, que melhorou quando as pessoas mudaram a forma como o tratavam, mas que persistiam sempre que ele era colocado de parte devido a essa deficiência.»
«A D. Teresa está a dizer que, para resolver o problema, o deviam integrar nas brincadeiras e jogos?»
«É isso, pelo menos em parte. Mas aquilo que era necessário fazer era muito mais abrangente. Era aceitar o rapaz com o seu defeito.»
Emília ficou a olhar a anciã tentando apreender a mensagem. A ideia surgiu como um relâmpago. Não! Não podia ser assim tão simples. Pensou.
«Quer dizer que a solução estava na aceitação do rapaz e não apenas dos seus defeitos, pelos colegas e professores?»
«Sim.»
«Isso é um pouco subjetivo. Ou seja, parece-me que a diferenças entre aceitar o rapaz com os defeitos ou reconhecer o defeito e aceitá-lo, é pura semântica.»
«É aí que a Emília se engana. Reconhecer o defeito é uma abordagem superficial e simplista da questão. É como curar os sintomas de uma doença e não a sua causa. Foi útil porque serviu para aliviar a tensão e reduzir o conflito. Mas apenas a aceitação do rapaz, com todas as suas virtudes e defeitos, cria nele um sentimento de pertença, que leva a que até as próprias criticas e eventuais rejeições, sejam aceites sem revolta e, portanto, sem desencadear comportamentos violentes. A aceitação é a chave para a resolução do problema. Quando o psicólogo explicou isso, o comportamento dos colegas mudou e os episódios violentos desapareceram.»
«O que é que isso tem a ver com o meu caso?»
«O problema da Emília também é um problema de aceitação.»
«No entanto, eu já aceitei que o problema estava apenas na minha cabeça…»
«É verdade a Emília reconheceu que o problema estava na sua cabeça e não no seu corpo, mas enquanto não aceitar o corpo estará a viver um conflito permanente entre aquilo que é a realidade, ou seja, o seu corpo tal qual ele é e aquilo que é o seu desejo, ou seja, ter um corpo de uma jovem de vinte e cinco anos.»
«Quer dizer que eu devo conformar-me com a situação?»
«Bom, aceitar é assumir que se está perante uma realidade incontornável, constatável naquele exato momento. Conformar-se com a realidade é não fazer nada para a mudar, assumindo que essa realidade é imutável. São coisas totalmente diferentes, pois, independentemente de a realidade atual poder ser mudada, o primeiro passo para se proceder à mudança, passa sempre por aceitar a realidade, tomar conhecimento da mesma e conhecê-la o mais profundamente possível. Sócrates dizia “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo dos Deuses”.»
«Mas como é possível aceitar o meu corpo querendo que ele mude?»
«Uma coisa de cada vez. Primeiro vem aceitação. A Emília deve gostar de cada centímetros do seu corpo, pois ele é seu e existe sempre a possibilidade de ter de viver com ele, tal como ele é. A Emília tem de fazer as pazes consigo própria. Depois se verá o que se pode fazer para que exista alguma convergência entre a realidade, aceite e reconhecida e o desejo de ser algo diferente.
Emília ficou em silêncio. As palavras da anciã tinham calado fundo nela. Pensando bem esse era exatamente o problema dela: vivia revoltada com o seu corpo, contra o seu corpo, descarregando em terceiros essa revolta. Tudo ficaria mais simples se gostasse dela. Instintivamente passou a mão pelo abdómen e, pela primeira vez em muitos anos, as dobras que este fazia, quando sentada, não a incomodaram. O gesto não passou desapercebido à anciã que sorriu. A sua pupila tinha dado mais um passo.