A JORNALISTA | PARTE VIII | CAPÍTULO 2

O retiro

Mónica delirou com as descobertas que ele tinha feito, mas não gostou nada das notícias. Ele tinha decidido fazer aquela viagem sem sequer a consultar.

«Não tinhas que marcar a viagem sem falar comigo antes. Eu podia querer ir contigo!»

«Antes que a nossa relação avance mais é melhor ficar claro que, em termos profissionais cada um de nós é completamente independente.»

Monica interrompeu-se de imediato. Ainda tinha bem fresca na memória a conversa dele sobre a intromissão da Anabela. Ele tinha razão. Esqueceram o incidente rapidamente e começaram a planear a viagem dele. Ela comprou um telefone com um número confidencial e gravou uma mensagem de atendimento automático de uma agente de viagens que também tinha um site na internet. Por trás tinha uma empresa fantasma. Tudo isso foi desenvolvido com o apoio e aprovação da polícia judiciária. Caso ele precisasse de ajuda tinha de enviar uma mensagem para o telemóvel ou um email dizendo: peço cancelamento da viagem de X para Lisboa. Em que o “X” representaria a cidade onde estava no momento. Perestrelo achava aquilo desnecessário, até porque se ele corresse efetivamente perigo, não sobreviveria o tempo necessário para alguém fazer a viagem de Lisboa até ele. Mónica segredou-lhe ao ouvido a possibilidade de existir um contacto oficial com as autoridades locais. Isso fazia algum sentido.

Voou diretamente para Goa, onde ficou hospedado por uma noite. A chegada a SwaSwara era uma experiência inesquecível. O local ficava completamente isolado e o verde luxuriante que o rodeava transformava-o, simultaneamente, num paraíso e numa prisão. O outro componente era a água. O Empreendimento tinha bungalows que davam para a praia, mas a maioria ficava mais para o interior, embora muito perto desta. Estes beneficiavam do espelho de uma pequena represa, como se a água representasse um elemento essencial. Era definitivamente um lugar para refletir, descansar e cultivar o espírito. O problema era que Perestrelo tinha ido trabalhar. Logo nas primeiras indagações ficou a perceber que não era em sete dias que iria descobrir o enigma dos retiros de Anne. Ela nunca ficava lá hospedada mais do que uma semana, isso significava que tinha de ficar o resto do tempo noutro lado qualquer, dado que os retiros dela costumavam durar três meses. Karen tinha descoberto muito pouco sobre esses retiros. Aparentemente, a vida tinha-lhe sido retirada logo após ter descoberto que Anne viajava para SwaSwara. Alguém estava interessado em evitar que a jornalista descobrisse onde Anne passava o tempo. Apesar de contrariado, Perestrelo decidiu ficar no hotel e aproveitar os benefícios da estada num local paradisíaco como aquele. Retomaria a investigação mais tarde. Para garantir isso solicitou uma reserva por um mês, no hotel Alila Diwa, em Goa, onde tinha ficado a primeira noite. Teve de pagar a primeira semana, sendo que este período poderia ir sendo alargado, ao longo do tempo, até perfazer um mês ou mais. Depois de tratadas as questões operacionais relaxou.

A caminho do hotel tinha respondido a um questionário que incluía perguntas sobre hábitos, caraterísticas, gostos, temperatura da pele, padrão de sonos e proeminência das veias. Cada resposta encaixava obrigatoriamente numa das três colunas identificada como: “vata”, “pitta” e “kapha”. A estada dava direito a uma consulta com um especialista em ayurvédico. Era ele que definiria as terapias a aplicar, depois de identificar o respetivo “dosha“, termo sânscrito usado para descrever a constituição biológica da pessoa, em combinação com os elementos “vata” (ar e éter), “pitta” (fogo e água) e “kapha” (terra e água). Na consulta ayurvédica, Perestrelo foi classificado como pitta-kapha, ou seja, uma mistura dos elementos fogo com terra e água. Perestrelo foi integrado num grupo de doze pessoas com os quais passava uma parte do dia, em exercícios ou passeios. Os dias começavam muito cedo para evitar as horas de maior calor. A instrutora, uma jovem feia, mas possuidora de um corpo anguloso e sensual, ensinou-lhes a respiração sheetali, feita através da língua enrolada ou os dentes cerrados. A ementa era à base de peixe, legumes e frutos secos, tudo com as mais variadas especiarias. A quantidade era o suficiente para um pessoa ficar saciada, sem ter a sensação de estar cheio. Foi uma mudança radical de hábitos, mas à qual ele se adaptou com alguma facilidade. O mais complicado foi ter de beber água quente às refeições, embora com a adição de sabores naturais, tais como cominhos ou feno-grego.

A estada foi verdadeiramente relaxante e ao fim de uma semana sentia-se revigorado e com uma energia incrível. Os tratamentos do corpo, da pele e as massagens, foram fantásticos. O episódio que o marcou mais foi um passeio de barco em que avistaram golfinhos. Dispersos pelo barco e com os corpos inflados pelos coletes vermelhos conversavam animadamente, até que alguém deu o alerta.

«Ali. Olhem! Olhem!»

Os golfinhos nadavam a alguma distância, mostrando parcialmente o corpo, em curvas suaves. O jovem capitão desligou o motor do barco. O silêncio foi interrompido pela professora de ioga, que começou a entoar o “om“, palavra em sânscrito que simboliza a união do corpo, da voz e da mente. Todos se juntaram a ela, criando uma vibração contínua e o milagre aconteceu. Como que por encanto, surgiram vários golfinhos, saltando à vez, junto ao barco, num concerto de movimentos e sons. Embora falassem línguas distintas a simbiose que se estabeleceu entre os dois grupos durou alguns minutos, sendo interrompida com a partida dos animais. Os golfinhos não apenas os saudavam, como lhes davam as boas-vindas.

Foi com a massagista que Perestrelo conseguiu um contacto que foi além do profissional. A jovem era nascida em Goa e tinha ascendentes portugueses, falando o idioma com alguma versatilidade. Por coincidência era ela que tratava da Anne, sempre que esta ali se hospedava e costumavam encontrar-se para uma bebida fora dali no vilarejo de Gokarna.

«Anne era uma mulher estranha. Vinha a SwaSwara duas vezes por ano. Ficava hospedada durante uma semana, mas costuma chegar correspondência para ela muito depois de partir.» Disse a massagista.

«Quanto tempo depois?»

«Não sei precisar, mas podia ser dois ou três meses depois.» Disse ela.

«O que acontecia a essa correspondência?»

«Era enviada para o hotel Alila Diwa.»

Perestrelo ficou pensativo. E a massagista deixou-o entregue aos seus pensamentos.

«Sabes se Anne costumava ficar hospedada no Alila Diwa, em Goa.»

«Não sei.» Respondeu a massagista.

A coincidência de ele ter decidido ficar hospedado no mesmo hotel onde Anne ficava deixou-o intrigado, sobretudo porque não acreditava em coincidências. Seria o Universo a indicar-lhe o caminho? Foi com um sentimento de saudade que deixou para trás SwaSwara. Tinha passado uma semana inesquecível! Mentalmente registou esse facto e a ideia de que era um bom sítio para passar uma semana com Mónica atravessou-lhe o espírito. Sorriu.

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