A CICATRIZ
O caminho entre o parque de estacionamento e o apartamento era mal iluminado e a noite estava chuvosa. Patricia puxou a gola da gabardine para cima e baixou o guarda-chuva, apontando-o ao vento. Apenas via dois metros do passeio, mas isso não fazia muita diferença: não estava ninguém na rua. Sentiu um safanão no guarda-chuva e o vento fez o resto, desfazendo-o. Patricia não teve tempo de abrir a boca para protestar. O homem tinha aparecido do nada e estava mesmo em cima dela. Foi com o terror no olhar que o viu levantar o punhal e descê-lo na sua direção. O gume entrou nela profundamente e a dor penetrou-lhe as entranhas. Quis gritar, mas a voz morreu-lhe na garganta. A única coisa que sentiu foi as pernas a desfalecer e caiu no chão inanimada.
Pedro sentiu uma necessidade incontrolável de ir apanhar ar. Tinha parado de chover o que era uma bênção, pois não tinha guarda-chuva. Decidiu dar a volta ao quarteirão. Já tinha ingerido algum álcool e um passeio a pé iria desanuviar-lhe as ideias. Ia tão absorto que quase tropeçou no corpo. Abaixou-se para perceber melhor quem era e deu-se conta da poça de sangue que o envolvia. Colocou o dedo na carótida e quase não sentiu a pulsação. O quadro que tinha pela frente fez desaparecer o efeito do álcool. Chamou de imediato uma ambulância e esperou pela polícia, que classificou o caso como de homicídio. O que ele sabia era irrelevante para a investigação, por isso foi dispensado.
Quando a ambulância chegou ela ainda estava viva, mas assim que deu entrada no hospital entrou em paragem cardíaca: tinha perdido demasiados sangue. Foram várias as tentativas de reanimação, mas nada parecia resultar. Exaustos e à beira de desistir, a equipa médica fez uma última tentativa e o destino revelou o seu capricho: o coração de Patricia ganhou vida. A partir desse momento foi trabalhar contra o tempo para reparar os tecidos e saturar o golpe. O punhal tinha sido espetado junto ao coração e rasgado a carne do seio esquerdo. Era um golpe profundo e feio. O corte na face tinha sido reparado com rapidez e a única preocupação que deixava era uma bela cicatriz.
Quando ela acordou, depois da intervenção, a enfermeira chamou os médicos. Juntos tinham vencido a morte, por isso, para eles, era um caso especial.
«O pior já passou.» Disse o médico responsável.
Patricia sorriu. Esperava que assim fosse, mas não tinha assim tanta certeza.
«Obrigado!»
«Nós apenas fizemos o nosso trabalho. Tem que agradecer ao bom samaritano que a encontrou e que ainda não arredou pé do hospital.»
«A minha família não está aqui?»
«A família não foi avisada, porque você não trazia qualquer identificação consigo. Foi o homem que a encontrou que assumiu a responsabilidade pelo custo do seu internamento, caso exista.»
Pedro foi autorizado a vê-la e falaram durante o tempo suficiente para trocarem os contactos. Ela precisava de descansar.
Nos dias que se seguiram a família invadiu o hospital. Estavam felizes por ela ter sobrevivido ao ataque e os planos eram mais do que muitos. O namorado veio os primeiros dois dias, depois não voltou a aparecer: estava demasiado ocupado em termos profissionais. Patricia suspeitava de que a razão era outra. Era manequim pelo que iria demorar algum tempo até poder voltar à passerelles, sendo muito provável que ficasse com cicatrizes, quer no rosto, quer no peito, incluindo o seio. Ele sempre admirara a sua beleza, mas agora ela percebia que essa era a única razão porque estava a seu lado. Ela era o seu trofeu e ele sentia-se importante quando a exibia. A relação morreu por si própria. Pedro, esse vinha todos os dias, para além de lhe telefonar, várias vezes ao dia. Estava sempre tão disponível que foi ele que a levou para casa, quando teve alta.
Os pais fizeram questão de lhe pagar as operações plásticas necessárias para fazer desaparecer as cicatrizes, tendo criado um verdadeiro movimento da família e dos amigos, à volta destas.
«Se fizermos desaparecer as cicatrizes é como se nada tivesse acontecido!» Dizia a mãe.
Patricia sentia-se oprimida pela proatividade dos familiares e amigos. A intenção era boa, mas, com isso, estavam a criar uma pressão sobre ela que começava a tornar-se insuportável: Era demasiado aquilo que lhe exigiam! Quando estava com Pedro era totalmente diferente. O aspeto dela para ele era secundário. A família queria que ela fizesse as operações plásticas e fosse trabalhar o mais rápido possível. O importante era fazer desaparecer as cicatrizes! Patricia tentou argumentar que não era assim que via as coisas, mas ninguém a escutou. Mais uma vez Pedro não só a escutou como a compreendeu. Era incrível como era simples e fácil comunicar com ele!
«A tua família está muito preocupada com as cicatrizes que são visíveis, mas eu sinto que apenas estarás pronta, para seguir em frente, quando fizeres desaparecer as invisíveis!»
Patricia ficou a olhar para ele. Era exatamente isso que ela sentia. Eram as cicatrizes da alma que lhe pesavam. Pedro arranjou um psicólogo e ele próprio fazia questão de estar ao lado dela, sem lhe cobrar as fragilidades, mas chorando-as com ela. Ele foi a sua verdadeira cura. Patricia apenas percebeu isso algum tempo depois, mas, a verdade ela tinha regressado à vida no dia em que beijou o Pedro pela primeira vez. Nessa altura a suas cicatrizes começaram a sarar. Foi curada pelo amor! Um amor que tinha tudo para durar. Um amor que já tinha dado provas e que crescia dentro deles todos os dias. Era tempo de o assumirem!