SERÁ QUE É TARDE
Ana chegou-se mais à beira do precipício. Tinha saltado a vedação e as pontas dos pés espreitavam lá para baixo, suspensas no ar. As lágrimas escorriam-lhe pelas faces e a dor consumia-lhe o peito. A vida tinha perdido todo o sentido! O cão, um pastor alemão, de nome Max, latiu de forma intensa, mas suave. Ela desviou o olhar do precipício, onde a rocha, que ficava lá em baixo, a uns bons vinte metros, chamava por ela, como se fosse um colchão macio. Max olhou-a fixamente. «Seria amor aquilo que via no olhar do cão?» Pensou. O melhor era acabar logo com aquilo.
Esta história tinha começado alguns anos antes…
Era o seu trigésimo aniversário e o Luís presenteou-a com um pedido. Não tinha sido um pedido qualquer: era um pedido para ir viver com ele. Ana teria preferido casar-se de véu e grinalda e ver a cerimónia abençoada por um padre, mas o amor tinha destas coisas: tinha-se apaixonado por um agnóstico. A sua ligação à Igreja Católica era profunda e houve muita gente que não entendeu a decisão dela. Os amigos mais próximos, o padre da freguesia e os pais, exerceram a pressão que puderam, mas foi tudo em vão. O amor que sentia por ele era superior a qualquer pressão ou preconceito.
«Deus sabe o quanto amo o Luís, mas também sabe que o amo mais a Ele. Viver com o primeiro não significa abandonar o segundo.»
«Como podes dizer isso e ir viver com um homem sem a relação ter sido abençoada por Deus?» Perguntava a mãe.
«Tenho a certeza que Deus abençoa a minha relação. A diferença é que a bênção não vem pela mão de um sacerdote, mas vem diretamente dele.»
Estava decidido. Ao fim de alguns meses todos acabaram por aceitar a situação. Ana era um dos pilares da comunidade. O seu envolvimento em todas as coisas da igreja, desde a catequese ao centro paroquial, passando pelos encontros e retiros, era total e constante. O facto de ter ido viver com um homem, sem estar casada com ele, não mudava nada, por isso nada mudou.
Foram seis anos dourados. Ana vivia um sonho e Luís era o homem perfeito. Aos trinta e dois anos ele estava no auge. Tinha um metro e oitenta de altura, cabelos castanhos claros, olhos verdes e um físico invejável, de que cuidava de forma exemplar. A única coisa que a incomodava eram as frequentes viagens que ele fazia para inspeção dos hotéis que o grupo tinha no Algarve e no Norte, passando, em regra, duas a três noites fora de casa, que, muitas vezes, incluíam o fim de semana. Ocasionalmente, ele passava uma semana inteira fora, sobretudo quando ia ao estrangeiro, ou às ilhas, fazendo com que fossem muitos os dias em que a Ana estava sozinha. No entanto, quando estava com ela, refugiava-se dentro de casa e era o homem mais carinhoso do mundo. Ela paparicava-o, tratando-o como um príncipe e aninhava-se no seu colo, gozando aqueles momentos a dois como quem saboreia um chocolate. Acostumou-se àquele tipo de relação e aproveitava para sair com os amigos, quando ele estava ausente. Luís sempre que regressava de viagem trazia-lhe uma prenda e suportava os custos da casa, na integra, apesar dos protestos dela. Embora ela não soubesse quanto ele ganhava, imaginava que devia ser bem remunerado. Ana era uma morena, senhora de um corpo muito sensual. Apesar de ser baixa, a perfeição das suas curvas fazia os homens trocar os olhos. Mas o seu verdadeiro trunfo era o sorriso: um sol, capaz de derreter um iceberg. Existia alegria, bondade, sedução e luz, tudo dentro daquele sorriso. Quando sorria o rosto iluminava-se conferindo-lhe uma beleza que este não possuía. Ana era feliz e achou que tinha chegado o momento de consolidar a relação.
«Já tenho trinta e seis anos e gostava de ser mãe, antes dos trinta e oito.»
Luís ficou a olhar para ela sem dizer nada. Perante a insistência dela, ele concedeu.
«Temos que pensar nisso.»
Ana ficou desconfortável com a resposta desinteressada dele, mas ficou ainda pior quando verificou o seu afastamento nos dias seguintes. As tentativas de falar com ele apenas pioraram a situação e de um dia para o outro, a frequência das viagens aumentou significativamente. Ana conseguiu esconder a tristeza e o sofrimento de todos menos do irmão. Os gémeos são assim.
Pedro decidiu investigar a vida do cunhado. Foi assim que ficou a saber de tudo. Luís não tinha qualquer trabalho e tinha uma segunda família. Antes de dar esta notícia à irmã ele decidiu arranjar provas irrefutáveis. Na empresa onde ele dizia que trabalhava ninguém o conhecia. Isso explicava o secretismo de que ele se rodeava, sendo que Ana não conhecia nenhum dos colegas dele. A voz que ela conhecia e associava à secretária de direção, era a da rececionista de uma empresa que prestava um serviço especial: sempre que era recebida uma chamada telefónica dos números identificados pelo cliente, que neste caso era o Luís, eles assumiam o papel de secretariado da empresa onde o cliente dizia trabalhar.
Quanto à segunda família a história era bem mais complicada. Sempre que o Luís dizia que ia trabalhar para fora, ia, na verdade, ter com uma mulher, muito mais velha, que era quem o sustentava: Ele era um gigolo. Tratava-se de uma viúva que lhe pagava, ricamente, mas colocava como condição que ele não se casasse nem se juntasse com nenhum homem ou mulher. Para a viúva, Ana era uma amiga que vivia com ele, por caridade. Isso também explicava a ausência de manifestações públicas de carinho e o facto de ele preferir ficar em casa, alegando que estava cansado de “andar por aí”, forma como gostava de se referir ao tempo que passava ausente. A viúva quando soube que estava a ser enganada terminou a relação com o Luís. No entanto, nessa altura, já ele tinha amealhado o suficiente para viver desafogadamente.
Munido de provas sobre o comportamento do cunhado, Pedro sentou-se frente à irmã, com o coração apertado. Sabia o quanto ela ia sofrer, mas era imperativo colocar um fim àquela situação. À medida que o irmão foi falando o rosto de Ana transformou-se, até se tornar uma máscara de dor. Estava completamente incrédula e a única expressão que lhe saia da boca, entrecortada pelas lágrimas, que escorriam pelas faces, em abundância, era:
«Não acredito. Não pode ser!»
Pedro abraçou a irmã em silêncio. Não eram necessárias palavras para expressar aquilo que queria, muito menos entre gémeos. Ficaram assim, até a exaustão a vencer. Depois, com mil cuidados, deitou-a no sofá e tapou-a. Ana acordou ao fim da tarde daquele sábado, tomada de uma urgência que nenhum argumento conseguiu contrariar. Obrigou o irmão a mobilizar os amigos e foram à casa do Luís buscar todos os pertences dela e deixá-los no apartamento que os pais lhe tinham oferecido, recentemente. Era aí que passaria a viver. Todavia acedeu a ficar com o irmão durante uma semana, enquanto tornava o seu apartamento habitável.
Tirou férias durante esses dias e dedicou-se, por inteiro, à tarefa. Ela era uma pessoa muito focada, tendo conseguido ocupar a mente, na integra, com a preparação do apartamento. O problema eram as noites. Tinha dificuldades em dormir apesar dos calmantes que o seu médico lhe tinha receitado. No sábado seguinte mudou-se, de armas e bagagens, para a sua nova morada. Ficava a cinco minutos, a pé, dos pais e a trinta do irmão e estes faziam questão de procurar estar com ela sempre que possível. Para não se sentir tão só os pais tinham entregue o Max, aos seus cuidados. A primeira noite na nova casa foi muito mais difícil que as anteriores. Tinha ido à missa no sábado à tarde por isso estava livre no domingo. Não lhe apetecia enfrentar as pessoas que sabia estariam presentes na celebração do domingo. Quase não pregou o olho a noite toda. Não conseguia compreender o comportamento do Luís e isso estava a deixá-la louca.
Apesar de não ter dormido, às sete horas estava cansada de estar na cama. Levantou-se e arranjou-se para sair. Estava num estado febril e de algum histerismo. Foi possuída por uma súbita necessidade de ir até ao miradouro, pois era dos poucos sítios onde Luís gostava de ir com ela. Seria aí que se despediria dele. Max não a deixou sair sem ele e lá foram os dois.
A atração pelo abismo tornou-se avassaladora e os pés levaram-na até à beira do precipício. Sentia que tinha asas! A vontade de voar tomou conta dela. Colocou-se na pontas dos pés e começou a abrir os braços. Estava pronta! A mente parecia estar desligada do corpo, num estado de abstração que se assemelhava à loucura! O pastor alemão latiu e ela olhou-o, sentindo o apelo no seu latir. Virou o rosto e fixou o precipício. A visão do olhar do pastor alemão fê-la hesitar. Apesar disso, a decisão estava tomada. Saltaria. Fechou os olhos, inclinou-se para a frente e deixou-se ir. O impacto com o chão foi demasiado rápido. Abriu os olhos e levou a mão à nuca. Onde raio estava? Tinha morrido e estava no paraíso? Sim, aquele local não correspondia à descrição do inferno. O cão lambia-lhe o rosto e rosnava amigavelmente. Estava com um ar satisfeito e as lambidelas sabiam a beijos carinhosos. Soergue-se e olhou à volta, baralhada, sem perceber bem onde estava, embora reconhecesse o topo do miradouro. De repente veio-lhe tudo à memória. Jesus! Tinha tentado suicidar-se. Só por milagre tinha caído para trás em vez de ter ido em direção ao precipício. Teria sido mesmo um milagre? Lembrou-se então que tinha o costume de atar a trela do cão ao cinto. Dessa vez tinha-o feito com tanto afinco que o cão conseguiu puxá-la para trás e evitou o voo em direção ao abismo. Se não era um milagre era, pelo menos, um sinal. Por maior que fosse o problema não podia resolvê-lo com o suicídio. Sentou-se no banco do miradouro e chorou. Chorou a dor que a consumia, mas chorou também de tristeza por ter sido capaz de decidir por fim à vida. Chorou até se sentir vazia. Tinha-se despedido do Luís!
Olhou o relógio. Eram onze horas e ela tinha chegado ali às oito. Tinha fome! Pela primeira vez, desde que tinha tomado conhecimento da verdadeira história do Luís, sentiu fome. Afinal a vida continuava, mas aquela dor que lhe apertava o peito, sufocando-a, também. Durante algum tempo teve de ouvir as críticas de todos os que se tinham oposto à relação com o Luís, depois tudo voltou ao normal, mas a dor teimava em não passar. O tempo, a princípio, custava a passar, mas depois acelerou e ela tratou de o acompanhar. A dor essa esmoreceu, mas não passou. Preencheu-lhe o coração, evitando a entrada de um novo amor.
No dia em que completava quarenta anos recebeu “como prenda” uma notícia que ela preferia nunca ter recebido: a empresa onde trabalhava ia declarar insolvência. Ana viu-se no desemprego, juntamente com todos os colegas. Ao princípio, ainda tentou organizar os colegas e arranjar uma alternativa, mas foi rapidamente “convidada” a abandonar o propósito. Alguns dos colegas acabaram a acusá-la de querer usá-los para se promover. A vida empurrava-a outra vez para baixo, afogando-a e ela estava com dificuldades em manter-se à superfície. Já não tinha forças para mais. Buscou ajuda na igreja, mas para além de uma parca ajuda na alimentação, eles nada podiam fazer por ela. Tinham morrido todos os seus sonhos: o sonho de ser mãe e de se realizar profissionalmente. Buscou conforto na oração, mas nem essa lhe trazia a paz de que necessitava. Apesar de tudo Ana não desistiu. O fim da relação com o Luís tinha-lhe ensinado uma grande lição: não desistir. Não podendo fazer mais nada, dedicou-se a ajudar os outros. Foi assim que começou a distribuir comida e roupas, aos sem abrigo, em Lisboa.
Não demorou muito para os outros voluntários conhecerem a sua história. Ana era um exemplo para todos eles. Apesar de ela própria viver da ajuda dos pais, não desistia, nem da vida, nem de ajudar os outros. A única coisa que tinha era tempo, pois era tempo que distribuiria. No dia do seu quadragésimo primeiro aniversário os outros voluntários fizeram-lhe uma surpresa e, no fim, juntaram-se e cantaram-lhe os parabéns. A prenda emocionou-a: ofereceram-lhe um blusão para ela se manter quente, nas noites frias, em que faziam a ronda pelos sem-abrigo. Ela conhecia-os bem a todos, com exceção do senhor mais velho, que tinha vindo de um grupo diferente, naquele dia. Ana sentiu uma grande empatia por ele e começou por ajudá-lo a carregar algumas das coisas que este se predispunha a levar. Ele agradeceu, gentilmente, com um sorriso. Os dentes brancos brilharam na noite, por entre uma barba grisalha, que lhe dava um charme irresistível. Era um bocado mais alto que ela e estava em muito boa condição física. Ela apenas percebeu isso a meio da noite o que a fez sentir ridícula, por ter tentado ajudá-lo. Sorriu para si própria e de si própria! O Tiago tinha sido suficientemente dedicado e simpático para não recusar a ajuda dela, apesar de não precisar de tal. Gostou. Gostou mesmo muito. Assustou-se com o alvoroço que sentiu dentro dela e recuou. Era melhor não ir por aí! Ela estava condenada a ficar sozinha.
O Tiago também parecia ter gostado dela, pois marcou presença todas as noites em que ela vinha e procurava a sua companhia sempre que possível. Os voluntários não tararam em perceber que eles se sentiam atraídos um pelo outro e uma das amigas de Ana comentou.
«Ele é o homem ideal para ti.»
«Isso não vai acontecer. Para mim já é tarde demais!»
«Será que é tarde?»
A amiga deixou a pergunta no ar e ficou a olhar para a Ana, com um sorriso nos lábios e uma expressão enigmática. Ana encolheu os ombros e afastou-se.
Tiago era viúvo e Ana solteira, por isso começaram a encontrar-se fora daquele contexto e, a verdade, é que se sentiam muito confortáveis e felizes, na companhia um do outro. Ana continuava sem conseguir um emprego, apesar de estar desempregada há mais de dois anos e à medida que o tempo passava ia perdendo as esperanças. O pedido do Tiago apanhou-a completamente de surpresa.
«Preciso da tua ajuda.»
«Tu? Em que é que eu te posso ajudar?»
Tiago, que era um empresário com alguma relevância, já se tinha oferecido para lhe dar emprego, mas ela tinha percebido que isso era o resultado da sua amizade e não de uma necessidade real, por isso rejeitou a oferta.
«Eu colaboro com uma fundação que ficou sem a pessoa que organizava todos os eventos e eles estão com problemas em conseguir concretizar os que têm em mãos.»
«Já tentaram contratar alguém?»
«Sim, mas isso vai demorar tempo e eles precisam de alguém experiente e que comece a trabalhar amanhã.»
Ana aceitou o pedido. Se ele precisava de ajuda ela ajudá-lo-ia. A fundação acolheu-a de braços abertos e o trabalho que ela fez foi tão bom que, ao fim de dois meses, lhe propuseram ficar, permanentemente, a colaborar com eles. O ordenado era bom e a função aquela que ela desejava, por isso não hesitou. Depois de tantos contratempos a vida começava finalmente a sorrir-lhe novamente.
Entretanto, a relação dela com o Tiago evoluiu. Deram o primeiro beijo no dia em que fez quarenta e três anos. Aparentemente os aniversários dela estavam vaticinados a testemunhar acontecimentos marcantes! Apesar de Tiago ser dezassete anos mais velho, Ana sentia-se bem a seu lado. Ele tinha um espírito tão jovem quanto ela que, entretanto, recuperara a sua alegria de viver e parecia uma criança. Nunca tinha imaginado que voltaria a apaixonar-se daquela forma! O mais gratificante é que, ao ver como Tiago correspondia ao seu amor, ela percebeu que nunca tinha sido amada. No dia em que ele a pediu em casamento, ela julgou que ia explodir de tanta felicidade.
«Sim!» Respondeu sem hesitar.
Casaram-se pouco tempo depois, perante uma igreja cheia de convidados e, apesar da diferença de idades, ninguém tinha dúvidas de que eles estavam destinados um para o outro. Estava escrito no olhar que trocaram, antes do beijo que selou o casamento. Nesse momento, veio-lhe à memória o comentário da amiga do voluntariado e murmurou «Nunca é tarde demais!»