A FEBRE DOS CARACÓIS

O evento repetia-se todos os anos e tinha sido planeado com todos os cuidados e dando atenção aos mais pequenos detalhes, pela Câmara Municipal. Depois de dois anos sem se realizar, devido às restrições da pandemia, era fundamental que o regresso da festa do caracol fosse um sucesso. Para o efeito, foi eleita a semana do feriado municipal, que teria lugar a uma sexta feira. O fim de semana de três dias seria uma ótima forma de terminar em beleza o festival. O evento duraria dez dias e incluiria dois fins de semana. Assegurada a presença dos especialistas, na produção das várias iguarias, no pavilhão da festa, a organização decidiu abrilhantar o evento com uma grande diversidade de espetáculos, que iriam desde o humor, à música e ao circo. Devido aos excelentes contatos que tinha na câmara e também ao facto de estar sempre disponível para participar em eventos pro bono, Pedro foi contratado para fazer a abertura da noite de sábado, do último fim de semana.

O pavilhão estava lotado e lá fora existia uma grande fila de espera. Os que não tinham feito reserva foram apanhados de surpresa pelo sucesso do festival, mas nem assim desistiam de saborear o petisco. O molusco, de dimensões variadas, era preparado com imaginação, abrindo novas fronteiras ao apreciador do tradicional caracol cosido, com mais ou menos tempero. Pedro quando subiu ao palco sentiu-se ignorado. Os comensais estavam mais interessados na patanisca do caracol ou em desprovê-lo da sua concha, para o sorver de forma gulosa, do que em ver os malabarismos que ele se propunha apresentar. Isso fez com que tivesse uma ideia: dar vida ao animador que julgava ter dentro de si e que desejava, ardentemente, dar a conhecer ao mundo.  Ignorar deliberadamente as nossas limitações nunca é uma boa opção, mas agir inconsciente das mesmas pode ser dramático, ou simplesmente cómico. Foi o que aconteceu. Os olhares que o fuzilaram quando ele pegou no microfone e desatou aos gritos, foram de piedade e ironia. Ele estava fora do seu elemento, mas, sobretudo, o discurso não se enquadrava, nem no local, nem no contexto do espetáculo.

– Vamos aquecer para o próximo número de malabarismo? O ambiente está quente e a festa está ao rubro. É a febre. A febre do caracol! – Gritou Pedro, com uma voz esganiçada

A organização tinha instalado um ecrã multimédia onde passavam imagens aleatórias, mas que podiam ser inspiradas naquilo que era dito ao microfone. Pedro ignorava isso, tal como a organização não sonhava sequer, que ele pudesse ter a ideia de utilizar o microfone. O resultado foi catastrófico. O ecrã foi de imediato inundado com notícias e imagens constrangedoras e altamente inconvenientes, para quem estava sentado à frente de um prato de caracóis. Primeiro foram os títulos.

Febre do caracol já infetou 56 milhões e pode ser fatal”

“A febre do caracol está a ensombrar África, tendo já afetado cerca de 56 milhões de mulheres e meninas, estima a Organização Mundial de Saúde (OMS). A doença conhecida como esquistossomose genital feminina (FGS, sigla em inglês), é causada por um parasita que sai do caracol enquanto está dentro de água, se instala no corpo das pessoas do sexo feminino e produz ovos, que atacam o colo do útero e podem ser fatais, informou o “The Teleggraph”.”

Depois foram as imagens: pessoas com chagas no corpo, caracóis com aspecto gelatinoso e imagens das larvas do Schistosoma. Finalmente, surgiu um vídeo com imagens, que impressionavam, sobre o desenvolvimento da larva. As pessoas começaram a assobiar e a jogar coisas para o palco. Pedro achou que era uma falta de respeito e preparava-se para responder, quando o microfone lhe foi retirado das mãos e no ecrã aparecia um vídeo clip da Shakira. Apenas quando foi retirado do palco ele percebeu o que se tinha passado. Tinha dado cabo da refeição aos comensais, sendo que era possível ver alguns a abandonar a sala. Quem salvou a situação foi o Quim Barreiros, que, sendo um dos comensais, subiu ao palco e acalmou as gentes com duas ou três músicas, que fizeram esquecer as imagens da febre dos caracóis.

Pedro foi ter com os amigos que estavam numa mesa, ao fundo do pavilhão, onde o ruído era menor e que dava para conversar de forma tranquila. Estava cabisbaixo e nervoso. A organização podia penalizá-lo de várias formas, desde a perca do cachet até à exigência de compensação pelos danos.

– Então Pedro! Anima-te rapaz. Nós até nos estávamos a divertir com a tua falta de jeito para animador. A organização é que devia ter o cuidado de apenas ligar o quadro interativo ao microfone quando o utilizador deste fosse um especialista em trabalhar com essa função. – Disse o Nuno.

– Isso é bem verdade. No entanto, também é relevante saber se o uso do microfone fazia parte da tua atuação. – Disse Ricardo.

– Não fazia. – Disse Pedro, de forma seca.

– Nesse caso podes ter um problema. – Retorquiu Ricardo.

– Embora o show do Pedro fosse de malabarismo, não é assim tão incomum, neste tipo de situações, o microfone poder ser utilizado, sobretudo quando está ligado e disponível para uso. A responsabilidade é da organização. – Disse João.

– Eu acredito que eles vão tentar imputar-te responsabilidades, mas existem bons argumentos em tua defesa. – Disse Carla.

Rita e Verónica secundaram a posição de Carla, sem juntar mais argumentos, mas dirigindo a Pedro olhares de solidariedade que lhe aqueceram a alma. Era bom estar rodeado de amigos e receber o seu conforto. Ele podia ter de enfrentar algo menos bom, mas fazê-lo acompanhado era bem mais fácil. Sorriu em direção a elas. Ele gostava da Verónica e lamentava que ela se sentisse atraída por pessoas do mesmo sexo. Isso eliminava por completo as suas hipóteses de a conquistar. Foi a vez de Vanessa intervir. Ela tinha o condão de fazer roturas e desta vez não foi exceção.

– Vocês alguma vez tinham ouvido falar da febre do caracol? – Perguntou Vanessa, apanhando todos de surpresa.

– Sim. Os dados sobre a doença não são muito atuais, mas indicam que a esquistossomose afetou várias centenas de milhões de pessoas em todo o mundo em 2015. Estima-se que 4.400 a 200.000 pessoas morram por causa dela a cada ano. A doença é mais comumente encontrada na África, Ásia e América do Sul. Cerca de 700 milhões de pessoas, em mais de 70 países, vivem em áreas onde a doença é comum. Em países tropicais, a esquistossomose perde apenas para a malária, entre as doenças parasitárias com maior impacto econômico. A esquistossomose é listada como uma doença tropical negligenciada.

– Isso é impressionante! – Disse o João

– Como se transmite a doença? – Perguntou Nuno.

– Os indivíduos infetados libertam os ovos do Schistosoma na água, por meio de seu material fecal ou urina. Depois as larvas eclodem a partir desses ovos e infetam um tipo muito específico de caracol de água doce. As larvas do Schistosoma passam pela próxima fase de seus ciclos de vida nesses caramujos, passando o tempo a reproduzir-se e a desenvolver-se. Concluída essa etapa, o parasita deixa o caracol e entra na coluna d’água. O parasita apenas sobrevive na água, por 48 horas, sem um hospedeiro mamífero. Depois que um hospedeiro é encontrado, o verme entra em seus vasos sanguíneos. Durante várias semanas, o verme permanece nos vasos do hospedeiro, continuando o seu desenvolvimento até à fase adulta. Quando a maturidade é atingida, ocorre o acasalamento e os ovos são produzidos. Os ovos entram na bexiga / intestino e são excretados pela urina e fezes e o processo repete-se. Se os ovos não forem excretados, eles podem enraizar-se nos tecidos do corpo e causar uma variedade de problemas, como reações imunológicas e danos a vários órgãos. Apesar de a transmissão, normalmente, ocorrer em países onde os caramujos de água doce são endêmicos, foi relatado um caso na Alemanha, de um homem contaminado com Schistosoma por um caramujo encontrado no seu aquário. – Esclareceu Carla.

– Isso é muito interessante, mas deixa-me com arrepios. – Disse Rita.

– Vamos mudar de assunto senão os caracóis vão ficar todos no prato o que seria uma pena. – Disse Verónica, em tom jocoso.

O grupo soltou uma gargalhada e Nuno levantou o braço para pedir um reforço das imperiais. João aproveitou para contar uma anedota e os caracóis que enchiam os pratos foram os únicos chamados a participar na festa. A febre, essa foi acalmada pelas loiras frescas que não tardaram a aterrar na mesa.

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