Parte I – A Recruta | Capítulo 1 – Lamego

Capítulo 1 – Lamego

Estávamos em 1965, no último dia do mês de julho. O dia adivinhava-se quente, tal como tinha sido a segunda parte do mês. Pedro despertou com os primeiros raios da aurora, na véspera do dia em que se via compelido a apresentar-se para cumprir o serviço militar obrigatório. A hora era demasiado matutina para se erguer, por isso manteve-se deitado, de costas, a olhar o teto e a sonhar de olhos abertos. Deixou que a sua mente vagasse pelos labirintos do passado, resgatando memórias recentes.

Tinha decorrido uma quinzena desde o seu vigésimo segundo aniversário, que tinha acontecido exatamente três dias depois de ter concluído o curso de Línguas e Literatura da Universidade Clássica de Lisboa. Pedro tinha celebrado os dois eventos com ímpeto: como se não existisse amanhã. Era um jovem destemido, livre e sem compromissos e isso merecia ser celebrado, para além do que a perspetiva sombria de ter de cumprir o serviço militar no ultramar conferia ao seu futuro imediato uma incerteza avassaladora.

Pedro, natural da freguesia de Arroios, em Lisboa, era irmão gêmeo de Luísa, uma alma apaixonada pela música e pelo teatro. Consciente dos perigos inerentes a essa profissão incerta e, por vezes, malvista, ela escolhera trilhar os caminhos do palco. Os pais, embora tivessem as suas dúvidas sobre a opção dela, apoiaram-na incondicionalmente. A mãe era professora primária e o pai diretor de finanças, no departamento central de finanças de Lisboa.

Pedro tinha conseguido concluir o curso antes do cumprimento do serviço militar, graças ao sucesso que tivera no adiamento do mesmo, mas agora era chegada a hora de cumprir o seu dever de cidadão. Ele não negava que o serviço militar obrigatório tivesse os seus méritos, mas tratava-se de uma obrigação, algo que lhe era imposto e não uma opção pessoal. Os pais de Pedro, especialmente a mãe, estavam com medo do que poderia acontecer com ele após a recruta e especialidade. Eles temiam que Pedro fosse colocado no ultramar, onde existia uma guerra que podia muito bem roubar-lhes o filho, definitivamente. Os pais, embora de forma contida, devido às consequências que a manifestação de tal opinião lhes podia trazer, eram contra o serviço militar obrigatório, mas nada podiam fazer senão sofrer em silêncio ao ver o filho partir. Na hora da despedida, a mãe de Pedro emocionou-se e segurou as mãos dele, enquanto dizia:

– Eu sei que tu não escolheste seguir este caminho, meu filho, mas isso não diminui o risco deste, nem a minha preocupação. Eu só quero que tu saibas que estarei aqui, sempre, torcendo por ti e pedindo a Deus para que voltes para casa são e salvo.

Pedro sentiu um aperto no coração ao ver a preocupação da mãe, mas sabia que era preciso seguir em frente e cumprir com as suas obrigações. Ele abraçou a mãe, com carinho e disse:

– Eu sei que o pai e a mãe estão preocupados, mas prometo que farei o meu melhor para voltar para casa. Obrigado por todo o apoio e amor que sempre me deram.

Com lágrimas nos olhos, a mãe de Pedro despediu-se do filho, dirigindo a Deus, uma prece silenciosa, para que o protegesse na sua jornada. Pedro sabia que as orações da mãe seriam constantes e que o amor da família o acompanharia onde quer que ele estivesse. Isso não isentava o seu caminho de perigo, mas deixava-o mais tranquilo.

O cais número três estava apinhado de pais, despedindo-se dos filhos que partiam, tal como o Pedro, para se apresentarem a cumprir o serviço militar. Depois do último abraço, Pedro subiu para o comboio e sentou-se junto à janela comtemplando a plataforma. O comboio arrancou com um solavanco subtil e, de forma lenta, pôs-se em movimento. Ele manteve o olhar fixo no ponto onde os pais se encontravam e foi-lhes acenando ao mesmo tempo que a carruagem se afastava, ganhando velocidade, até os perder de vista.

À medida que a composição se afastava da estação a paisagem foi mudando e as construções urbanas cediam lugar à paisagem industrial e, posteriormente, à serenidade campestre. Pedro fitava a paisagem que se desvanecia rapidamente através da janela. Sentia saudades de casa e da sua rotina na universidade, mas sabia que agora era hora de seguir em frente. Fez a viagem num estado letárgico mirando a paisagem com um olhar perdido. O comboio devorava os trilhos levando-o para o norte e, de forma inexorável, para o seu futuro. Na pressa de chegar ao seu destino a locomotiva voou, ignorando cidades como Santarém, Coimbra, Figueira da foz e Aveiro, até chegar a Campanhã. Estas não lhe deixaram nem memórias nem marcas, ao contrário do que aconteceu com a chegada ao destino.

O desembarque funcionou como um despertar da letargia em que a viagem o tinha deixado. Quando colocou os pés na plataforma viu-se envolvido pelo burburinho dos viajantes, sendo conquistado pelo sotaque do Norte, cujo discurso era intercalado pelo calão, de forma tão natural, que o tornava parte da linguagem. Isso fez com que se sentisse momentaneamente confuso, dando-lhe a sensação de que estava perdido. Alertado por tal sentimento, tomou consciência do peso da bagagem que carregava a tiracolo e concentrou-se na tarefa de encontrar o cais de onde iria partir o comboio para o Douro.

A paisagem tinha mudado radicalmente. De um lado e do outro surgiam montanhas imponentes ou precipícios sem fim, ao invés das planícies que o tinham acompanhado durante a viagem, entre Lisboa e Porto. À medida que se aproximavam da Régua, a paisagem típica do Douro ganhou vida e os socalcos, revestidos de vinhedo, preenchiam a paisagem, pintando-a de verde. A breve paragem na Régua serviu para trocar a locomotiva e ao fim de meia hora, que Pedro utilizou para esticar as pernas, estavam de partida. A Régua é o coração de uma região de vinho demarcada e sobejamente conhecida. Trata-se de uma cidade construída nas margens do rio Douro, que dá o nome à região, onde o renomado vinho do Porto é produzido e oferecido ao mundo como dádiva divina. A paisagem, à medida que a viagem avança vai mudando, embora o enquadramento montanhoso se mantenha presente como uma sentinela. O Douro vinhateiro é substituído por uma paisagem de rochas e vegetação rasteira, típica de serra bravia de baixa altitude, embora as vinhas continuem a marcar a sua presença.

Ao início da tarde, Lamego apresentou-se de forma imponente. Pedro estava cansado, mas curioso para conhecer a cidade. Ao sair da estação ele foi recebido pela brisa fresca que vinha do rio Douro que corria perto da cidade. Pedro olhou em redor e ficou impressionado com a beleza do lugar. A cidade tem uma história rica e está recheada de monumentos, igrejas e casas brasonadas. Antes de se dirigir para o quartel, Pedro aventurou-se pela cidade, caminhando pelas ruas estreitas e antigas e admirando a arquitetura e a história que cada edifício parecia murmurar à sua passagem. Ele passou por muitos monumentos históricos e muitas igrejas, como a Sé de Lamego, que se destacou pela sua imponência. Em Lamego todos os caminhos pareciam conduzir à Ermida da Senhora dos Remédios e os passos de Pedro acabaram de o conduzir para aí sem que ele o tivesse planeado.

A base da escadaria era na avenida Dr. Alfredo de Sousa. A partir daí esta, em estilo barroco, estendia-se, majestosamente, até ao topo de um monte, composta nada mais nada menos que por 686 degraus e culminando num santuário rocaille, destinado à veneração de Nossa Senhora dos Remédios. A sua construção, embora iniciada em meados do século XVIII, só viria a ser concluída em 1905. A geologia inclinada do terreno acentua a grandiosidade do conjunto, rodeado pela mística do denso arvoredo que forma o Parque de Santo Estevão, local de grande deleite.

Lá do alto, a vista sobre a cidade era de tirar o fôlego. Pedro ficou largos momentos, arrebatado pela paisagem, tendo perdido a noção do tempo e do espaço, até que foi trazido de novo à realidade pelo ruido de um grupo barulhento que se aproximou de si.

– Temos de nos apressar senão não chegamos ao quartel a horas – disse um deles.

Pedro olhou o grupo com curiosidade e estes repararam nele pela primeira vez. O jovem que tinha falado adiantou-se e disse:

– Eu sou o Filipe. Não me digas que também vens assentar praça nos Rangers?

– Sim. Eu sou o Pedro – disse ele, estendendo a mão.

Esse foi o primeiro contacto com o homem que viria a tornar-se o seu melhor amigo.

Pedro sabia que a sua jornada no serviço militar obrigatório seria desafiadora, mas ele estava pronto para enfrentar as adversidades. Ele estava confiante de que a sua experiência em Lamego seria única e enriquecedora. E assim, ele iniciou uma nova etapa em sua vida, que se adivinhava cheia de aprendizagem e desafios, mas também plena de novas amizades e descobertas.

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