DESPERTAR CRUEL

Ela acordou com uma sensação estranha. O pesadelo deixara-lhe um mal-estar que não sabia explicar. Era como se algo de ruim estivesse prestes a acontecer-lhe. Levantou-se, procurando não acordar o marido e foi lavar o rosto. Eram quase horas de acordar, por isso não fazia sentido tentar voltar a adormecer. Absorvida pelos seus pensamentos, só deu pela presença do marido quando este lhe segredou ao ouvido.

– Sabias que essa camisa de dormir te torna ainda mais sensual?

– Bom dia. O meu príncipe encantado já acordou?

– Bom dia. Acordou com vontade de te levar para o leito do amor.

Ela estremeceu e a uma ereção pilosa percorreu-lhe o corpo. O toque dele, suave e delicado, provocava-lhe estremecimentos de prazer. Deixou-se conduzir, enquanto a sua mente delirava de antecipação pelo prazer que adivinhava.

A caminho do hospital, Camila deixou que o seu pensamento divagasse. A viagem de comboio não era longa, mas permitia-lhe sonhar acordada, sem necessidade de se concentrar na envolvente. Ainda era muito cedo, portanto, o comboio estava quase vazio e isso permitiu-lhe entregar-se aos seus pensamentos sem interrupções.

Recordou a sua infância.

Não tinha conhecido o pai e a única coisa que sabia dele era a icónica expressão que a sua mãe usava para o definir: um sacana de olhos azuis como o céu. Apesar de nunca falar dele, a sua mãe deveria tê-lo amado muito, pois nunca tivera mais nenhum homem na sua vida, nem sequer um namorado. Tinha tido uma infância feliz e nunca lhe faltou nada. A mãe era uma excelente advogada e a avó, que já era viúva quando Camila tinha nascido, cuidava dela sempre que as obrigações profissionais retinham a mãe.

Não tinha seguido as pisadas da mãe e tornara-se médica. Foi no ano em que terminou a especialidade que conheceu o Daniel. Tanto um como outro tinham-se dedicado à sua carreira descurando a vida social, por isso, era natural que se encontrassem, sem companhia, a gozar as delícias do sol, na esplanada do Pé na Água, um restaurante de uma das praias da Costa de Caparica. Nessa manhã, eles eram vizinhos e quando o vento decidiu fazer voar o chapéu, que ela tinha poisado a seu lado, ele apressou-se a recolhê-lo, entregando-lho com uma vénia e um sorriso que derreteu o gelo.

– Obrigado. Eu sou a Camila.

– Encantado. Eu sou o Daniel.

Ela era uma mulher com um rosto muito interessante, mas, sobretudo, com um corpo muito sensual. Os cabelos ruivos e os olhos verdes faziam um conjunto que desafiava os olhares dos homens e Daniel já tinha reparado neles. Ele era um homem alto, com um corpo perfeito e um olhar azul, em cujo infinito ela se perdia. Era nítido que frequentava o ginásio e a magia que emanava daquele corpo bronzeado já a tinha fascinado. Apenas o facto de ser inexperiente com os homens a tinha impedido de falar com ele. Naquele dia o vento fez magia e decorrido um pouco mais de ano estavam casados. Eles formavam um casal unido e apaixonado. Era como se algo intangível, mas muito profundo os ligasse um ao outro.

Pouco tempo depois de eles se terem conhecido, a mãe dela teve um acidente e entrou em coma, sem ter tido a oportunidade de conhecer o Daniel. Foram tempos muitos difíceis e Daniel foi o suporte de Camila, que não tinha outra família. A relação entre eles consolidou-se de forma muito rápida, tendo-se tornado inseparáveis. Ao fim de seis meses de namoro, apesar de a mãe não mostrar sinais de vir a sair do coma, decidiram casar-se, tendo-se casado oito meses depois. A mãe acordou quatro meses depois de eles estarem casados e Camila foi vê-la de imediato, tendo a seu lado Daniel. A mãe de Camila estava incrédula com tudo o que se tinha passado, mas gostou de imediato do marido da filha, embora a união dos dois lhe parecesse estranha. No entanto, isso era natural, pois ela tinha entrado em coma com uma filha solteira e sem namorado e acordara com uma filha casada. Isso não era fácil de digerir! Infelizmente ela não teve tempo de se acostumar à ideia e uma semana depois de ter acordado faleceu de morte súbita. Isso foi um golpe muito duro para Camila.

Era com morte que ela tinha sonhado essa noite, mas uma morte estranha, pois quem morria não era a mãe e nem sequer era uma pessoa, mas uma relação. Uma relação que parecia estar-lhe ligada de uma forma desconhecida, mas profunda.

Regressou ao presente.

Com o regresso à realidade o desconforto voltou também. Ela fez um esforço para o esquecer, fazendo voar o pensamento para o marido e isso fez com que sorrisse de imediato. Ele tinha esse efeito sobre ela. Quando chegou ao hospital esqueceu-se de tudo e entregou-se aos seus doentes com a paixão que a caraterizava. O resto da semana decorreu sem novidades e na sexta-feira, depois de um jantar tranquilo, eles estavam os dois abraçados, no sofá, a ver um filme.

– Eu estava a pensar ir amanhã arrumar as coisas da minha mãe. Quero colocar a casa à venda e não queria que estivesse lá nada dela.

– Ainda bem. Eu preciso de terminar umas coisas da empresa durante o fim de semana e assim faço-o amanhã.

– Fantástico! Depois vamos jantar fora?

Daniel assentiu com um sorriso. Tinha-lhe saído a sorte grande quando conheceu a Camila. Ele amava-a profundamente. Com ela tudo era bom, até as coisas mais simples e insignificantes.

Camila entregou-se à tarefa de arrumar as coisas da mãe, de forma sistemática, em três grupos: as coisas que eram para doar, as que eram para vender e as que ficariam para si. A casa onde vivia com o Daniel era sua e estava completamente mobilada, por isso ela apenas iria ficar com uma ou outra peça de decoração e com os álbuns de fotografias. Já depois de ter tudo arrumado descobriu, no fundo de um baú, um álbum de fotografias que ela nunca tinha visto antes. As fotografias diziam todas respeito a um período muito específico da vida da mãe: a altura em que ela frequentou a universidade. Camila folheou o álbum com lentidão e deixando o pensamento voar, para imaginar como teriam sido aqueles tempos. A mãe falara muito pouco sobre a universidade, tendo-se referido sempre a esses anos como um período de estudo intenso. Era bem possível que o tivesse sido, pois ela tinha terminado o curso com uma excelente média, mas aquele álbum dizia-lhe que também tinha sido um período de diversão. Uma das coisas que lhe chamou à atenção foi a presença, constante, de um homem com uma constituição física invejável e uns olhos azuis lindíssimos. Tratava-se efetivamente de um jovem muito belo e que aparentava ser mais velho que a mãe. O olhar fazia-lhe lembrar o de Daniel, mas o rosto era-lhe completamente desconhecido. Ao fim do dia a casa estava vazia. As várias entidades que iam receber ou adquirir os bens tinham vindo retirá-los e tudo o que reservara para ela estava no porta-bagagens do carro.

No domingo de manhã, a seguir ao pequeno-almoço, ela mostrou o álbum ao Daniel e este ficou a olhar para as fotografias boquiaberto. Camilha fitou-o com um olhar interrogador.

– Mas… este é o meu pai.

– Como é possível? Ele é totalmente diferente destas fotografias!

– Isso é porque ele fez uma cirurgia de reconstituição facial quando sofreu o acidente. Os médicos fizeram um bom trabalho, mas o rosto não ficou igual.  O tempo fez o resto!

– Quer dizer que o teu pai e a minha mãe se conheceram na faculdade?

Daniel não respondeu. Não sabia o que dizer, mas a fotografia do pai, ao lado da mãe de Camila, deixou-o incomodado. Eles iam almoçar a casa dos pais de Daniel e levaram o álbum com eles. Pedro tinha perdido a esposa há uma meia dúzia de anos e viva agora com uma brasileira, que era um pouco mais nova que ele. Depois do desgosto de ter perdido a esposa, parecia ter encontrado novamente a felicidade. Terminado o almoço, estavam todos à mesa fazendo piadas com tudo, pois eram uma família muito divertida. Daniel tinha mais um irmão e uma irmã, ele mais velho e ela mais nova, mas ambos casados e com filhos. Quando Camila lhe mostrou o álbum Pedro ficou estático, com toda a família a olhar para ele.

– Eu conheci a tua mãe e namoramos durante quase dois anos. Na noite da celebração do fim do curso dela, estivemos juntos pela primeira e única vez.

Pedro interrompeu-se. O silêncio era tão intenso que se tornou incomodativo, mas ninguém se atreveu a interrompê-lo, pois o drama que o rosto dele refletia era tão intenso que os dominava.

– Partimos para férias no dia seguinte e eu afastei-me dela. Ela não sabia que eu já era casado e tinha um filho. Eu tinha feito algo imperdoável quer à Camila, quer à vossa mãe. Para o remediar e a esquecer, abandonei a docência na faculdade de direito para me dedicar exclusivamente ao escritório em Coimbra.

Nova pausa.

– Apenas nos encontramos dez anos mais tarde, por mero acaso do destino, quando eu me mudei para Lisboa. Foi nessa altura que eu soube que tínhamos uma filha em conjunto. Eu ainda tentei conhecer a minha filha, mas ela recusou e mudou-se para fora de Lisboa. Eu nunca mais soube dela.

Esta revelação deixou os presentes de rosto branco como a cal. Os mais novos colocavam mil questões às quais ninguém queria responder. Daniel e Camila saíram à pressa e durante todo o caminho de regresso a casa não disseram uma palavra um ao outro. Quando chegaram a casa, choraram nos braços um do outro, sem encontrar explicação para o facto, depois conversaram. Falaram muito sobre o assunto durante o resto do dia e toda a semana seguinte. Apesar de continuarem juntos, várias coisas tinham acontecido. Sexualmente eles não tiveram nenhum contacto durante toda a semana o que era bastante frustrante, pois eles continuam a sentir o mesmo desejo um pelo outro. Apesar disso, o fenómeno da consanguinidade tinha erguido uma barreira entre eles. Ao mesmo tempo que se amavam de uma forma tão intensa que até doía, não conseguiam estar intimamente juntos. A separação parecia ser a única opção. Apesar disso, decidiram ficar juntos e tomar medidas para que ela não engravidasse, talvez dessa forma conseguissem manter a relação, pois o amor que os unia era suficientemente forte para os ajudar a enfrentar as dificuldades que se anteviam. A decisão foi tomada no sábado seguinte e nessa noite entregaram-se um ao outro. No entanto, foi um momento muito diferente do que esperavam. O carinho e a doçura foram substituídos por um sentimento selvagem e até violento, que os conduziu a um clímax estranho e despido de amor.

Exaustos, viraram-se cada um para seu lado e tentaram adormecer. Quando se tornou óbvio que isso não ia acontecer eles decidiram falar sobre o assunto. Era óbvio que se amavam, mas também era óbvio que não podiam ficar juntos. Depois de conversarem várias horas, choraram abraçados até à exaustão.

Aquela seria a última noite que passariam juntos!

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