A ESCOLHA

A ESCOLHA

Leonor sentia-se confusa. As ideias baralhavam-se e ela não conseguia descortinar muito bem o caminho que a tinha levado até àquele momento. Os acontecimentos tinham-se atropelado uns aos outros abalroando-a e, sem se aperceber do facto, ela tinha deixado que os outros tomassem decisões por si. “Se o arrependimento matasse! Pensou”. Com a cabeça entre as mãos chorou. A incerteza sobre o futuro apertava-lhe o peito de ansiedade e a dor provocada pela possibilidade de não poder prover o sustento do filho, dilacerava-lhe o coração. Fechou os olhos e regressou ao passado.

Tudo tinha começado há dois anos atrás…

A tarde daquele dia de junho ia a meio, quando o telefone tocou. Era dia de solstício e o sol, apesar do adiantado do dia, teimava em desnudar os corpos dos que a ele se expunham, com subtileza, mas firmemente. Estava um dia muito quente!

«Sim, mãe!»

«Boa tarde Leonor. Quem fala é o Doutor João Marques Cruz, do IPO. A sua mãe está aqui connosco e precisamos que a venha buscar.»

Leonor ficou em silêncio. A mensagem tinha sido curta, mas a informação que esta veiculara estava a ser difícil de processar.

«Mas… ela está bem?» Balbuciou.

«Sim, ela está em condições de ir para casa. Apenas precisamos que a venha buscar. Pergunte por mim na receção que eu estarei à sua espera. Falamos sobre os detalhes pessoalmente.» Disse o Doutor, de forma suave, mas firme.

«Vou já para aí.» Respondeu Leonor.

A mãe significava tudo para ela e, desde que tinham perdido o pai, fazia três anos, ela era tudo o que a mãe tinha. Os dois irmãos tinham emigrado para a Austrália, no ano 2012, em plena crise e ainda antes do pai ter falecido. Leonor acelerou como uma louca e nem se lembrava muito bem do caminho que tinha feito para chegar ao hospital. Apesar disso, tinha consciência que tinha ignorado os limites de velocidade e uns quantos sinais de transito, incluindo semáforos. Apesar da rapidez com que chegou ao hospital, durante a viagem, os últimos anos da vida varreram-lhe o pensamento como um filme, em registo flash back. Oscilando entre vários momentos, sem qualquer critério cronológico.

Na receção do hospital, foi de imediato encaminhada para o gabinete do doutor. Este, quando terminou a consulta, recebeu-a com a afabilidade de um pai. Pediu-lhe para se sentar e ausentou-se. Leonor ficou só com os seus pensamentos. Eram mais duvidas e angústias do que pensamentos específicos. Quando a porta se abriu a mãe entrou, amparada pelo médico e por uma enfermeira. Vinha cabisbaixa e com o rosto marcado pelas lágrimas. Quando viu a filha soltou um grito lancinante e jogou-se no seu pescoço, num choro convulsivo. Leonor não conseguiu conter a emoção e choraram abraçadas uma à outra. Quando, finalmente se acalmaram, o médico tomou a palavra.

«A sua mãe tem um cancro nos intestinos, num estado inicial, por isso, é passível de ser curado com o tratamento adequado. No entanto, para isso, tem de começar de imediato o tratamento.»

O médico fez uma pausa para deixar Leonor absorver a informação que tinha acabado de lhe dar.

«O cancro do intestino é dos mais complicados de tratar, mas quando detetado no início, a probabilidade de sucesso do tratamento é aceitável.» Disse o médico, perante o silêncio de Leonor.

Novo silencio. O olhar do médico era interrogador, mas Leonor não sabia o que lhe dizer.

«Entendo senhor doutor, mas não sou eu que tenho que tomar essa decisão.»

«Passou a ser, a partir do momento em que a sua mãe fez depender a decisão dela da sua.»

Leonor virou-se para a mãe com a estupefação estampada no rosto.

«Desculpa filha, mas não me sinto capaz de tomar essa decisão sozinha.»

Leonor poisou a mão sobre as da mãe, que estavam cruzadas sobre o regaço. O olhar era meigo e o sorriso carinhoso.

«Não te preocupes mãe. Eu vou estar sempre ao teu lado.»

Durante alguns instantes, ela acariciou o rosto da mãe e depois depositou-lhe um beijo carregado de amor. O médico teve que fazer um esforço para conter a emoção perante uma cena tão pura, de amor filial.

«Senhor doutor, a minha mãe vai fazer todos os tratamentos que forem prescritos por si e está disponível para começar de imediato.» Disse Leonor.

O médico sorriu e acenou com a cabeça, num ato de plena compreensão e bondade infinita. Ele era um profundo conhecedor do drama humano, quer dos doentes oncológicos, quer dos seus familiares. A pequena reunião prolongou-se por mais algum tempo, para que eles combinassem todos os pormenores do tratamento, que implicava uma deslocação semanal ao IPO. Seria a tarde do tratamento.

O caminho para casa foi feito em silêncio. Ela tinha, previamente, falado com o marido para ele ir buscar o filho ao infantário, que tinha nessa altura dois anos, e avisado que iria passar a noite com a mãe. No dia seguinte, falou com o escritório de advogados onde trabalhava e passou a trabalhar apenas durante a parte da manhã, em teletrabalho. Falou também com o marido e foram todos viver para a casa da mãe. Isso iria permitir-lhe acompanhá-la dentro e fora de casa. A mãe, para além de beneficiar do apoio da filha e do genro, teria o seu neto todos os dias ao seu lado. O médico regozijou-se com essa solução, pois o suporte da família era critico no sucesso do tratamento desse tipo de doença e um neto era sempre uma grande motivação para viver.

Enquanto a saúde da mãe não se degradou, eles viveram com ela. No entanto, quando esta começou a evidenciar sintomas da doença o marido começou a questionar a bondade da solução. Leonor usou todos os argumentos que conseguiu para defender a permanência deles na casa da mãe, mas o marido tornou-se intransigente. Tinha decorrido um ano ela passou ater uma vida dupla. A mãe deixou o apartamento dela e arrendou um T1, no mesmo prédio da filha. Leonor, acompanhava a mãe em todas as refeições do dia e não deixava de a aconchegar antes de dormir, com os lençóis da cama e com palavras de amor. As tardes eram passadas com a mãe, quer fosse no hospital, a passear ou a arrumar-lhe a casa. Os últimos meses foram um pesadelo. Ver a mãe a definhar, de forma acelerada, ao ponto de acabar internada no hospital, representou um teste à sua capacidade. Ver a mãe naquele estado e sentir-se impotente para o alterar, representava um sofrimento muito maior do que ela antecipara. Um sofrimento contido, para não incomodar o marido e filho e para não deixar a sua mãe perceber o que lhe ia na alma. Ela fingia que não sofria e a mãe fingia que acreditava nisso! Quando, finalmente, a mãe faleceu ela viveu o momento com sentimentos contraditórios. O seu desaparecimento representava, simultaneamente, um alívio e uma perda. No entanto, a perda era bem superior ao alívio!

A mãe tinha deixado duas casas e um negócio de flores. Por isso, ela nem teve tempo de fazer o luto. Os irmãos regressaram à Austrália logo após o funeral e cabia-lhe a ela desfazer-se do património, embora tudo carecesse do acordo dos três. Isso, impediu-a de aceitar algumas ofertas de trabalho que lhe permitiriam voltar a entrar no mercado e realizar-se profissionalmente. O marido foi um dos grandes incentivadores dessa solução.

«O melhor é resolveres tudo o que necessitas de resolver antes de aceitares outros compromissos.» Disse ele.

Ela acabou por concordar. Talvez assim, o trouxesse novamente para mais perto de si. Ele tinha-se afastado dela, no último ano e ela culpava-se por isso. Tinha-se dedicado à mãe em detrimento do marido e do filho. O que era estranho é que o filho, com apenas quatro anos, dizia-lhe exatamente o oposto. A criança admirava a forma como a mãe tinha tratado a avó e adorava as duas. Isso, só por si, dava-lhe forças para enfrentar o mundo. Vender as casas e o negócio demorou nove meses. Por sugestão do marido, usaram uma parte substancial do valor da herança dela para pagar o financiamento da casa e o empréstimo do escritório de arquitetura dele. Quando todos os assuntos ficaram arrumados e ela começou à procura de um trabalho a tempo inteiro, percebeu que a crise económica tinha tornado tudo mais complicado e que os empregos, para além de terem ficado mais escassos, eram pior remunerados. Para agravar a situação, o escritório de advogados tinha-a substituído por uma pessoa a tempo inteiro. Agora, apenas lhe restava a família: o marido e o filho. Foi por isso que a notícia caiu como uma bomba!

Era segunda feira e sendo ela uma lutadora, tinha passado o dia a bater a todas as portas que conhecia, à procura de emprego. Quando olhou para o relógio eram horas de ir buscar o filho à creche. Abriu a porta de casa com um amplo sorriso no rosto: o filho tinha esse efeito sobre ela. O marido estava sentado no sofá e no hall de entrada estavam duas malas de viagem fechadas. Leonor lançou-lhe um olhar interrogador. Ele falou sem esperar que ela dissesse alguma coisa e, sem qualquer preâmbulo, disse:

«Eu vou sair de casa e vou viver com outra pessoa. Os últimos anos deram cabo da nossa relação.»

Leonor olhou para ele estupefacta. Ela sabia que a sua dedicação à mãe tinha feito com que se tivesse afastado, mas tinham falado muito sobre isso, nos últimos tempos e tinham decidido que fariam uma tentativa séria de se aproximarem. Para isso, ela investiu dinheiro, tempo e amor na relação. Ele correspondia-lhe de forma um pouco distante e, agora, ela percebia porquê. Tinha-se culpado a si própria por isso, mas a realidade era outra. Leonor manteve-se em silêncio, com o filho a chorar, agarrado à sua cintura. Por isso, foi ele que quebrou o silêncio.

«O meu advogado entrará em contacto, por causa da partilha dos bens. Dividimos tudo em dois e arrumamos o assunto dessa forma. Quanto ao Luis, eu não vou ter tempo para uma guarda partilhada. No entanto, gostaria de vê-lo dois fins de semana por mês.»

«Agora percebo a tua insistência em liquidar as dívidas da casa e do escritório, com a minha herança. Querias ir-te embora, mas levar uma boa parte da minha herança.»

Ele encolheu os ombros e encaminhou-se para eles.

«Dá um abraço ao pai, filho.» Disse, agachando-se à sua frente.

O filho não se mexeu e agarrou-se à mãe ainda com mais força.

Ele ficou especado a olhar para o filho, com a contrariedade espelhada no rosto. Leonor agachou-se e segurou o filho pelos ombros, olhando-o nos olhos.

«Filho, dá um abraço ao teu pai.»

Contrariado, o filho deixou-se abraçar pelo pai, sem corresponder à saudação.

Depois de colocar o filho na cama ela abandonou-se ao sofrimento, deixando que as lágrimas funcionassem como uma espécie cura. Tinha sido muito ingénua em relação ao marido e isso tinha um preço. Arrependia-se dessa ingenuidade como se arrependia de não ter refeito a sua vida profissional, quando teve oportunidade, mas nunca se arrependeria de ter estado ao lado da sua mãe quando ela precisou. A vida era feita de escolhas e ela tinha feito as dela. Ele tinha partido e tinha levado tudo consigo, menos o filho. Ela, apesar de sofrer com a partida do marido, estava feliz por ter ficado com o filho. O seu drama, agora, era arranjar forma de tomar conta dele. Estava desempregada, sem retagurarda familiar e quase sem dinheiro da herança. «Como vou fazer para sustentar esta família?» Pensou.

Leonor era uma lutadora e no dia seguinte levantou-se, cuidou do filho e, depois de o deixar no infantário, voltou à luta.

A separação foi rápida e a divisão de bens simples: ele ficou com o gabinete de arquitetura e ela com o apartamento. O Passo seguinte era arranjar um trabalho, o que parecia ser cada vez mais complicado à medida que o tempo passava. Os dias passavam rápidos e ela não tinha muito tempo para pensar no seu sofrimento, mas quando a noite caía os fantasmas juntavam-se no seu quarto, para lhe recordar as suas perdas. Tinha perdido a mãe para uma doença medonha e o marido para uma loira, dez anos mais nova que ela. Independentemente das razões, eram duas perdas e lidar com elas não estava a ser fácil.

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