A casa era recente. Tinha sido concluída não havia cinco anos e, tal com era uso, tinha, no piso térreo, um ladrilho para as malhadas, uma adega e várias cortes: para as vacas e para os porcos. As paredes exteriores eram de perpianho duplo até à altura do primeiro piso e de perpianho simples a partir daí. O soalho era de madeira e as telhas suportadas por uma estrutura de feita de carvalhos e pinheiros, que tal como o soalho, tinham sido cortadas nas suas propriedades e aparelhados na serração, de Vila Real.
Decorria o ano de 1967 e Portugal era um país fechado sobre si próprio. Fernando era transmontano, mas apesar do isolamento da terra, já tinha passado dois anos emigrado, um na França e outro na Suíça. Era um homem inconformado, mas tinha-se cansado de ser explorado e, para além disso, tinha saudades da família: a mulher e cinco filhos.
A pequena propriedade, de que era dono, não lhe dava o rendimento de que necessitava para dar uma educação esmerada aos filhos. Ele apenas tinha a quarta classe de adultos, mas queria que os filhos concluíssem o secundário, talvez algum deles pudesse mesmo tirar um curso superior. Apesar da pouca instrução era um curioso: lia tudo o que lhe aparecia à frente, jornais ou livros cuja informação acumulava na sua prodigiosa memória. Fazia cinco anos que a guerra em Angola tinha começado. Ele acompanhava tudo através das notícias mas estas eram muito filtradas e, como tal, ele não imaginava que estava longe de conhecer a verdade. O cunhado, homem com alguns contatos, fez-lhe chegar um pequeno livro onde se narrava a história da revolta da UPA, em 1961 e da primeira incursão dos militares portugueses, na província do Bengo e Uíge, para resgatar os poucos habitantes brancos que tinham sobrevivido à chacina. Devorou com paixão a narrativa sobre incursão do alferes Robles, um jovem ingénuo e inocente, a quem tinham obrigado a trocar a caneta por uma espingarda. Levava na bagagem a revolta que a interrupção dos estudos lhe causara, juntamente com um juízo de valor sobre os movimentos de libertação e sobre os colonos, pré-concebido. Os factos falaram mais alto e bastou uma passagem pelas fazendas desertas e pejadas de cadáveres, para lhe mudar o sentimento: foi a viagem dos horrores! O alferes que regressou era diferente daquele que tinha partido. A história do alferes Robles deixou-o revoltado. Nada do que fosse branco tinha escapado à morte: homens, mulheres, jovens, crianças ou mesmo porcos, galinhas e cabras.
O governo necessitava de voluntários para integrar os quadros da Guarda Rural. Era uma força policial, com comando militar, que dava proteção à população local e aos trabalhadores das fazendas de café garantido o funcionamento normal da economia. Ele não era um revolucionário, mas nem sempre estivera de acordo com o governo. Por várias vezes tinha apresentado reclamações sobre decisões políticas, nomeadamente referentes a impostos agrícolas. Uma das vezes escreveu mesmo uma carta a Salazar, que nunca teve resposta. Como nunca sofreu quaisquer consequências pela sua rebeldia ninguém o convencia de que vivia numa ditadura. Tinha consciência de que a liberdade era limitada e de que existiam coisas que não podiam ser feitas mas, apesar disso, não aceitava classificar o regime como ditadura.
Sentado num banco sem costas, encostado ao gradeamento feito de tijolo, que protegia o patamar superior das escadas, refletia sobre o texto que tinha lido. As notícias dos jornais nunca tinham reportado incidentes com um nível de gravidade como as relatadas naquele livro. Onde estaria verdade? Tinha de ir descansar que o dia seguinte começava cedo.
Era Julho e as culturas necessitavam de atenção. O milho ostentava orgulhosamente as espigas em crescimento e desmelenadas, deixando-se enlear pelos pés de feijão que buscavam um lugar ao sol. As batatas curvavam o caule num sinal de rendição: era tempo de as retirar da terra. O granulado dos cachos das uvas enfeitavam as videiras, quais brincos nas orelhas de uma mulher formosa, prometendo colheira farta. As árvores de fruto, macieiras, pereiras ou ameixoeiras, libertavam-se do excesso da carga, com a ajuda do vento e indicavam aos agricultores quantos cestos iriam precisar para colher o seu fruto. Para um leigo eram apenas árvores ou plantas, para ele era um livro aberto.
Levantou-se cedo mas o corpo pesava-lhe mais que o habitual. Tinha dormido mal. Os sonhos, melhor dizendo os pesadelos, povoaram-lhe o sono e, embora dormisse, não descansou. Era África a chamar por ele! Ainda o sol não tinha nascido e já ele lançava sobre as videiras o enxofre, coisa que tem de ser feita aproveitando a hora calma da manhã, pois qualquer aragem joga-o para o chão, impedindo-o de se depositar nos cachos. De chapéu de palha na cabeça, óculos tipo mergulhador e rosto coberto, parecia um assaltante: protegia-se do malfadado pó, que apesar da calmaria, teimava em esvoaçar. Quando terminou era hora do almoço. Sim no campo o almoço é pelas nove horas. Até ao meio dia, hora a que iria jantar, fez as tarefas mais pesadas. Guardou as leves para a tarde, período em que o calor aperta. A sesta, a seguir ao almoço, permitiu-lhe retemperar as forças e depois das quatro voltou ao trabalho.
A agitação da mente contrastava com a calma campestre onde apenas as cigarras entoavam o canto do verão. Até a passarada se havia recolhido, protegendo-se do calor. A ansiedade que tomava conta dele estava a deixá-lo desconcentrado. «Tenho que resolver isto, senão não vou ter paz» Pensou. Não queria tomar uma decisão precipitada e, não tendo pai, decidiu falar com o homem com quem partilhava este tipo de assuntos: o vizinho. Ezequiel era um homem sábio. Daqueles homens que parecem iluminados. Sabia ler a natureza e as pessoas de uma forma extraordinária, mas singela. Dividia o seu tempo entre o trabalho e a leitura. Para ele não existiam feriados nem dias santo, embora não faltasse à missa de domingo. Ao fim do dia foi ao encontro do amigo.
Fernando partilhou com o amigo aquilo que lhe ia na alma. As notícias, os factos de que tinha tomado conhecimento e a inquietude que os mesmos lhe tinham causado.
«Todos temos a obrigação de tomar uma posição e de defender a pátria onde ela é atacada. Não acha ti Ezequiel?»
O amigo olhou para ele com expressão grave e disse, num tom de quem repreende um filho.
«Olha Fernando, isso são tudo tretas. Tu tens obrigação de sustentar a tua família e dar uma boa educação aos teus filhos. Deixa a pátria em paz. O que se passa contigo é que sempre foste irrequieto e desejas-te algo diferente para ti. Sempre que surge a oportunidade de abalares questionas aquilo que fazes.»
Fernando ouviu em silêncio. Quis protestar mas no fundo ele sabia que o que estava a ouvir era a mais pura das verdades.
«Se queres ir para Angola porque achas que isso pode ser melhor para ti e para a tua família, então vai. Um homem deve sempre procurar melhorar a sua condição. Se isso implica mudar de hemisfério, pois que assim seja.»
A conversa prolongou-se por várias horas. Eram ambos conversadores e tinham sempre tema de conversa: a política. Para além de ler os jornais de forma ávida, ouviam, quando podiam, a BBC, de forma clandestina, naturalmente. Temas como a criação da UNITA, a entrevista de Salazar ao New York Times, o bloqueio do porto da Beira, a classificação de Portugal no mundial, onde Eusébio foi considerado o melhor jogador do mundo, a construção da ponte para atravessar o tejo, eram temas abordados. No entanto, era a política internacional que lhes fazia brilhar os olhos, O comportamento da Rússia ou a grande revolução na China, como evidências de uma tentativa de domínio do comunismo sobre o mundo, eram escalpelizados por eles vezes sem conta. Quando se foi embora Fernando já tinha tomado uma decisão.
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