AS LIMITAÇÕES

O resto do dia decorreu de forma tranquila. A família fez algumas atividades em conjunto e à hora do jantar estava toda a gente bem-disposta. Quando o Pedro pegou no livro ela decidiu retirar-se. Sozinha, no quarto, decidiu olhar verdadeiramente o seu corpo. Era uma sensação estranha. Fazia alguns anos que ela não se olhava ao espelho com aquele pormenor. Passou as mãos pelo corpo, como se o estivesse a hidratar ou a acariciar, mas apreciando cada curva. O corpo tinha mudado definitivamente. O marido e até as amigas dela podiam dizer que não estava gorda, mas tinha ganho uns quilos, desde que tinha sido mãe. Pensou na vizinha. A anciã tinha uma forma muito curiosa de olhar a vida e isso estava a ajudá-la. Era tempo de perceber que o facto de não gostar de ter aquele corpo não resolvia nada, antes pelo contrário, era uma limitação. Tinha perdido vários anos escondida atrás de uma revolta, que apenas tinha feito com que as coisas continuassem a evoluir num sentido que não desejava. Tomou uma decisão: se não era feliz com aquele corpo, então tinha de fazer alguma coisa para o mudar. Deitou-se completamente nua.

Pedro, exibindo o esplendor de um corpo másculo, preparava-se para vestir os calções do pijama com que dormia. Assustou-se quando ela jogou os lençóis para trás. Emília estava completamente nua!  Um sorriso de satisfação encheu-lhe o rosto. Deitou-se ao lado dela e acariciou-a. Ela reagiu ao seu toque, de forma instintiva e isso excitou-o ainda mais. A reação dela era completamente nova! Fizeram amor sem ter de apagar as luzes ou tapar-se com o lençol. O clímax foi algo explosivo. Aquela era a Emília com quem tinha casado! Satisfeitos, adormeceram abraçados um ao outro. Emília, mesmo antes de adormecer pensou. «Meus Deus! Aquilo que eu tenho andado a perder…». Só por aquele momento o exercício da aceitação tinha valido a pena.

A semana de trabalho envolveu-os novamente na rotina, mas a entrega diária que aconteceu, entre eles, não teve nada de rotineira. Apesar disso, ainda teve tempo para fazer alguma pesquisa sobre técnicas de emagrecimento e agendar uma consulta médica, com uma especialista em nutrição. Na sexta feira ela saiu mais cedo para ir à consulta. A expetativa era elevada e o resultado foi uma desilusão. Emília chegou a casa e foi diretamente para a varanda. Quando estava irritada, preocupada ou aborrecida, esse era o único local onde se sentia bem. Recostou-se no banco e fechou os olhos. Estava perdida e nada parecia fazer sentido.

«Boa tarde Emília.»

Apanhada de surpresa deu um salto na cadeira e virou-se.

«Boa tarde D. Teresa.» Respondeu depois de recuperar a compostura.

«Assustei-te outra vez…»

«Sim. Estava só com os meus pensamentos!» Respondeu Emília.

«Pela tua cara vejo que estás a enfrentar alguma contrariedade.»

Emília ficava sempre desconfortável com aquele olhar e quando ele vinha acompanhado de um comentário pertinente como aquele, sentia-se despida. Depois de alguma hesitação contou tudo. Tinha ido a uma nutricionista e o resultado não era animador. A reduzida quantidade e o tipo de gordura dela não eram fáceis de perder.

«Nunca mais vou recuperar o corpo de outrora!»

«Essa perspetiva é demasiado negativa. A superação requer uma mente mais aberta e uma postura positiva.»

«Isso é tudo muito bonito, mas não vai resolver o meu problema.»

«A única coisa que resolve um problema é a sua solução…»

Emília interrompeu a anciã e, num tom jocoso, disse:

«Obrigado…»

«A postura perante um problema não o resolve nunca, seja ela qual for, mas pode ajudar ou dificultar o processo de encontrar a solução. O negativismo nunca é a melhor opção, pois mesmo nas situações desesperadas uma mente aberta e positiva tem maior capacidade de encontrar soluções porque está fixada nestas. Por outro lado, o negativismo apenas se foca no problema e nas dificuldades, desprezando a busca da solução, por não acreditar nela.»

Emília ficou a olhar para a anciã, de boca aberta. «Como é que ela consegue sempre ser tão assertiva?» Pensou.

«Entendo o que queres dizer, mas se eu não consigo voltar a ter o corpo que desejo, nada disto faz sentido.»

«Talvez não seja bem assim. Durante a última semana a Emília não precisou do seu corpo de modelo para se sentir bem e viver a vida com prazer, não é verdade?»

A afirmação apresentou-se perante si com a brutalidade de uma chapada. Ela tinha vivido uma semana extraordinária, sem que, de facto, nada tivesse mudado, ou talvez não.

«Aquilo que mudou na semana passada foi a esperança. Ou seja, o meu corpo continuou igual, mas eu vivi em função, não da realidade dos factos, mas da expetativa da sua mudança. Isso faz toda a diferença.»

«É verdade. No entanto, quero que penses no seguinte. Se o corpo não mudou, mas a tua mente sim, então significa que mesmo que não recuperes o corpo de outrora, podes mudar a forma com o vês e, dessa forma, viver com a intensidade e prazer que experimentaste na semana passada, mesmo sem atingir a forma de outrora.»

«Não sei se isso é possível. O incentivo que comandava o meu pensamento, na semana passada, era elevado. Eu estava convencida de que iria recuperar o meu corpo de outrora.»

«Entendo. No entanto, também é verdade que tudo se passou na tua cabeça, como tal, caso não seja, efetivamente, possível recuperar o corpo de outrora, na totalidade, podes sempre tentar criar um estado mental que te permita sentir confortável com o teu corpo.»

«Não estou a entender.»

«Imagina que apenas consegues perder uma parte do peso que pretendes. Nessa altura terás atingido uma forma intermédia, entre a atual e a de outrora. Se aceitares essa limitação poderás ter encontrado a solução.»

«Não estou a ver como. Isso significaria desistir de atingir a minha forma de outrora!»

«De certa forma é assim. Mas, na verdade não é simplesmente desistir. É tomar consciência que fizeste tudo o que era possível, mas que existem limitações que são irremovíveis e não te deixam atingir o objetivo inicial. É como fazer um plano no início do ano e, cumprida metade desse período, perceber que o plano inicial não pode ser atingido. O que se faz nessas circunstâncias?»

«Normalmente refaz-se o plano, assumindo os novos objetivos como válidos.» Disse Emília, sem necessidade de pensar.

«Exatamente!» Respondeu a anciã.

 Emília ficou a olhar para ela de boca aberta, tentando assimilar tudo o que se tinha dito. Apesar de o argumento fazer sentido aquilo estava a deixá-la um pouco confusa. Não se sentia confortável a definir um objetivo abaixo do que tinha projetado. Ela queria o corpo de outrora!

«Eu não consigo fixar um objetivo diferente. Quero o corpo de outrora!»

«Parece-me razoável essa abordagem desde que mantenhas a mente aberta para a existência de limitações:»

«Teresa, agora fiquei baralhada. Não acabou de dizer que eu devia aceitar definir um objetivo diferente e aceitar que não podia a voltar a ter o corpo de outrora?»

«O que eu disse foi que era tudo uma questão mental e que deves manter a mente aberta, para a aceitação de que existem limitações. Não te digo para definires um novo objetivo, logo à partida. Podes e deves perseguir o teu objetivo até à exaustão. No caso de isso não acontecer e te encontrares numa posição de perceber que as limitações são inultrapassáveis e que tens de as aceitar, então é importante a existência de uma mente aberta e disponível para, nessa altura e apenas nessa altura, reconhecer que tens de mudar o objetivo»

«Acho que entendi melhor, mas ainda estou um pouco baralhada.»

«Tu tens um problema: o teu corpo hoje e uma solução para o problema: o teu corpo de outrora. A superação é o processo que te vai levar do problema até à sua solução. Durante esse processo podem surgir dificuldades ou obstáculos, esses são as nossas limitações. Quando essas limitações se tornam inultrapassáveis, então a melhor forma de resolver o problema é incorporar essas limitações na solução. A implementação deste processo conduz, regra geral, à alteração os objetivos.»

«Então neste processo existem sempre limitações?»

«Sim existem sempre limitações, elas são diferentes de pessoa para pessoa, ou de situação para situação. No entanto, as limitações são, muitas vezes, perfeitamente ultrapassáveis. Assim, é importante manter uma mente aberta, para aceitar as duas faces da moeda.»

«Mas… se eu aceitar que existem limitações não estou a condicionar, à partida, o resultado?»

«Não. Aceitar que existem limitações é diferente de aceitar as limitações. À partida apenas devemos reconhecer que no processo de superação podem existir limitações. Reconhecer e aceitar as limitações é um dos passos do próprio processo, que apenas acontece quando estas são identificadas, mas isso ainda não significa aceitar as mesmas. Isso só acontece quando, finalmente, se conclui que as limitações são incontornáveis e têm de ser incorporadas no processo.»

Era a hora de ir tratar do jantar. Pedro deveria estar a chegar e fariam isso em conjunto. Emília estava um pouco triste e até desiludida, mas o sentimento de revolta tinha desaparecido. Depois do jantar partilhou com o Pedro a sua desilusão.

«Apesar das reservas da médica, apenas vais saber o impacto do tratamento depois de o concluíres. A minha sugestão é que deves lidar com o resultado depois de o conheceres e não sofrer por antecipação.»

Emília segurou-lhe o rosto com gentileza e beijou-o.

«O que seria de mim sem ti?» Disse ela.

O rosto iluminou-se com um sorriso que era um misto de amor, felicidade e admiração.

Ao fim da tarde foi até à varanda apreciar o maravilhoso fim de dia. A anciã deu-lhe as boas vindas e ouviu o relato dos últimos acontecimentos, depois ficaram em silêncio.

«A sugestão do Pedro pareceu-me ótima, mas eu ainda estou um pouco indecisa.» Disse Emília, interrompendo o silêncio.

«A sugestão do Pedro é extraordinária e demonstra uma excelente lucidez. Ela significa, embora dito por outras palavras, que o processo tem de ser encarado fase a fase e, apenas alcançada cada uma, se pode lidar com o seu resultado e avançar para a fase seguinte.»

«Fico sempre com sensação que ao entrar no processo estou a limitar as minhas opções.»

«Um processo não limita as opções. Quem limita as opções são as pessoas e tu és única pessoa que pode fazê-lo, neste caso. O processo é como um mapa, mas tu és a condutora e portanto escolhes o caminho, podendo voltar atrás as vezes que necessitares, para optar por um caminho distinto.»

Ficaram novamente caladas. Emília estava em paz com a opção de tentar emagrecer com o objetivo de recuperar a forma de outrora. Como isso poderia não ser o suficiente, decidiu inscrever-se num ginásio. Estava a fazer tudo o que era possível e isso deixou-a confortável.

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