UCI CORONÁRIOS

UCI CORONÁRIOS

Pedro estava completamente exausto. Não era apenas o cansaço acumulado de um ano intenso de trabalho, era sobretudo o stress a que o seu corpo estava sujeito desde as oito e trinta da manhã, hora a que se tinha levantado. Fazia quatro horas que o corpo lidava com um défice de fluxo de sangue devido à insuficiência de batimentos cardíacos. Já tinha perdido a conta à quantidade de vezes que tinha perdido os sentidos e ao número de convulsões que tinha tido. Já não tinha energia para lutar mais. Era urgente que os médicos providenciassem a tão desejada ajuda.

As enfermeiras do UCI Coronários entraram na sala no UCI das urgências e começaram a prepará-lo para o transporte. Pedro tinha sincopes com tanta frequência que era mais o tempo que passava ausente do que aquele que estava efetivamente presente e percebia aquilo que se passava à sua volta. Era como se estivesse meio adormecido e ouvisse tudo através de uma neblina que toldava a imagem que os olhos viam ao mesmo tempo que funcionava como uma barreira contra o som. Apesar disso, percebeu que o desligaram de alguns equipamentos e que houve uma discussão sobre qual dos equipamentos o acompanharia e onde seria colocado. Acabaram por colocar o monitor que controlava os batimentos cardíacos entre as pernas, junto aos pés. Era um equipamento que emitia sinais sonoros regulares, mas que registava várias paragens. A coincidência entre as paragens e a aflição que tomava conta dele, num abraço letal, era notável. Quando isso acontecia, os seus cuidadores olhavam os equipamentos com ansiedade e ele recebia choques elétricos no abdómen.

As suas novas cuidadoras tinham uma abordagem ligeiramente diferente. Sempre que a máquina deixava de emitir o sinal sonoro pediam-lhe para tossir. Embora isso implicasse um esfoço que nesse momento requeria energias que já escasseavam, ele obedecia. Estava entregue a profissionais, portanto o melhor que tinha a fazer era seguir as suas instruções. O percurso pelos corredores e a escolha do elevador certo, pareceu-lhe uma viagem por um labirinto. As enfermeiras que o levaram estavam no fim do seu turno e quando o deixaram no bloco foram substituídas. Juntamente com as novas enfermeiras chegou o médico que estava de serviço. Era um médico que apenas vinha a Faro fazer os bancos ao fim de semana, dado não existirem médicos regulares suficientes. Foi ele que lhe explicou que deveria tossir sempre que a máquina deixava de apitar, pois isso significava que o coração deixava de bater.

«Eu costumo respirar fundo sempre que sinto que os ataques se aproximam.»

«Isso é exatamente aquilo que não deve fazer.»

A máquina parou outra vez.

«Tussa! Tussa!» Invetivou a enfermeira

Entretanto, a nova enfermeira e o médico trocavam impressões sobre o tipo de pacemaker que deviam usar e sobre o local a escolher para a sua inserção.

«Eu costumo colocá-lo na subclávia direita.» Dizia o médico.

«O Dr. é que sabe, mas aqui os médicos costumam colocá-los na virilha.»

«Então vamos inseri-lo na virilha.» Disse o médico.

Pedro percebeu que tossindo evitava que o mal-estar subisse por ele acima, isso tornou esse ato automático: A máquina parava e ele tossia. A operação demorou uns bons minutos. Enquanto a fazia, o médico foi falando com Pedro, fazendo-lhe as mais variadas perguntas. Pedro foi respondendo o melhor que podia, mas a verdade é que falar o distraia do problema e isso ajudava. Pedro falou-lhe do fim de semana e dos amigos e ele ficou entusiasmado pelo facto de a maioria destes serem médicos. Falou também da sua profissão e do facto de ser professor universitário. Na verdade, falou de quase tudo na sua vida. O monitor deixou de emitir sinais sonoros e Pedro começou de imediato a tossir.

«Não precisa de tossir mais. O pacemaker já está instalado. A partir de agora não vai ter mais problemas.»

Pedro experimentou a felicidade de estar mais de cinco minutos seguidos sem ter uma síncope. Era uma sensação indescritivelmente boa.

«Eu sou a Rita. E vou cuidar de si nas próximas horas.» Disse a enfermeira, enquanto o transportava do bloco para a UCI.

Nessa altura Pedro estava muito bem disposto e o seu sentido de humor manifestou-se.

«Então estava de férias no Algarve?» Perguntou a enfermeira.

«Não, vim apenas passar o fim de semana, mas como não gostei do hotel onde estava, decidi mudar-me para um de cinco estrelas.» Disse, provocando uma gargalhada na enfermeira.

«Neste momento estamos a usar este andar de empréstimo. Quando as obras terminarem e voltarmos ao oitavo andar, vamos ter instalações de primeira.»

Pedro perdeu a hora do almoço por isso teve de esperar pelo lanche para comer alguma coisa. Tinham colocado a sua cama mesmo em frente à secretária do médico e das enfermeiras de serviço ao UCI. Deitado na cama, de costas, e obrigado a manter-se nessa posição, podia ouvir tudo o que eles diziam. Tinha-lhe sido permitido ficar com o telefone e ele aproveitou para ligar para a esposa. Nessa altura já o médico tinha falado com ela. Pedro estava numa posição muito desconfortável e ligado a dois monitores. Um, controlava exclusivamente o pacemaker e estava ligado a vários fios cujo conector se encontrava na virilha direita. O outro, controlava uma série de coisas todas relacionadas com o sistema circulatório. Era um écran cheio de gráficos, em movimento e de números. O peito e parte do abdómen estavam repletos de conetores, onde tinham sido ligados dezenas de fios. O braço esquerdo tinha uma braçadeira, que se enfunava de hora a hora, qual vela de barco e plena regata, e media a sua tensão arterial. Não podia mexer-se, para a esquerda ou para a direita sem esbarrar num conjunto de fios que lhes marcavam as costas, quando acontecia de ficarem debaixo de si. Apesar disso, sentia-se no paraíso! O desconforto proporcionado pelos equipamentos era incomparavelmente inferior ao mal-estar que sentia quando o coração deixava de bater. Recebeu alguns telefonemas e trocou algumas mensagens, e o seu discurso era sempre o mesmo: Depois de uma manhã no inferno, agora estou no paraíso.

Quando lhe disseram que tinha de dormir de abdómen para cima, ficou preocupado. As costas já lhe doíam um pouco e a perspetiva de passar uma noite naquela posição, fez com que descesse do paraíso ao purgatório. Foi uma noite horrível e de manhã as dores de costas eram tão intensas que as lágrimas lhe vinham aos olhos. O enfermeiro que o acordou de manhã adicionou ao antibiótico um panasorbe. Foi uma ajuda, mas não resolveu o problema. Quando falou com o médico sobre o assunto este autorizou-o a ficar um pouco sobre o lado direito, desde que a perna direita ficasse sempre estendida. Isso aumentou ligeiramente o seu conforto, mas não lhe retirou as dores de costas.

Depois do mau bocado que tinha passado ele não sabia como interpretar os pequenos sinais que o corpo lhe ia dando. Qualquer ligeira pressão no peito ou pequena tontura era logo interpretada como a possibilidade do mal-estar voltar. O médico tranquilizou-o. A enfermeiras simpatizaram com ele e Pedro tentou facilitar-lhes a vida. Apesar da posição difícil em que estava, sempre deitado, propôs alimentar-se a si próprio. Era essa a sua postura na vida, facilitar a vida dos outros e ajudar sempre que podia. Apesar de deitado numa cama na UCI coronários, ofereceu ajuda a uma das enfermeiras para analisar as propostas de crédito à habitação e aconselhou-a sobres as propostas a obter. Pedro era assim mesmo. A Patrícia prometeu que na segunda iria aos bancos e traria a documentação para ele analisar. Um dos melhores momentos era o banho. Primeiro pela sensação de leveza, segundo porque as enfermeiras lhes esfregavam as costas, numa espécie de massagem, o que era muito reconfortante, considerando as dores de costas que sentia. A alimentação foi uma experiência muito desagradável. O pão com manteiga, servido ao pequeno almoço e lanche, era difícil de engolir, sobretudo para quem não gostava de manteiga. Mas o almoço e o jantar eram intragáveis. A verdade é que a falta de apetite não ajudava!

O domingo foi pejado de momentos dramáticos. Uma das senhoras que estava internada, atingiu o ponto terminal. A equipa médica decidiu informar a família e autorizá-los a virem despedir-se. Pedro apercebeu-se de tudo. Ver os filhos, ambos adultos, a desejar as melhoras à mãe e desabar em lágrimas mal viraram as costas, foi muito emotivo. Durante a noite foi acordado por um grande reboliço. Um dos internados teve um problema qualquer tendo a UCI sido invadida por médicos e enfermeiros que apenas ao fim de uma hora declararam a situação controlada. Assim era difícil descansar, ainda que autorizado a virar-se de lado.

Finalmente, chegou a segunda feira. Um pouco depois das nove foi levado para o bloco e por volta das dez e trinta tinha um pacemaker definitivo implantado. O procedimento foi feito com uma anestesia local e muito ligeira. Pedro sentia tudo. O final da incisão foi particularmente estranho porque o efeito da anestesia estava a passar e o cirurgião não queria anestesiar a zona da veia onde os cateteres iam ser inseridos, por isso o corte foi quase a sangue frio. No entanto, a surpresa estava guardada para o fim. Os pontos foram dados depois do efeito da anestesia ter passado por completo. Ele sentiu a agulha entrar-lhe na carne, três vezes, para dar passagem ao fio e fechar a ferida. Foi um final épico! Apesar disso, ele estava feliz. Infelizmente não voltou para o UCI, onde tinha toda a atenção das enfermeiras. Foi para uma enfermaria onde elas só apreciam se chamadas, mas com um timing muito próprio. Foi mais um dia de fome e de sede! Para agravar a situação tinha de ficar outra vez de costas pois agora não podia pressionar a virilha direita, donde tinha sido retirado o cateter do pacemaker provisório, nem o ombro esquerdo, pois era aí que tinha sido implantado o pacemaker definitivo. A prazo tinha o problema resolvido, mas em termos imediatos tinha a vida muito mais complicada. Para agravar a situação, fazia 48 horas que respirava através de uma máscara, que usava vinte e quatro horas por dia. Ultrapassado o risco de vida, esse tipo de inconveniente, até então considerado menor, assumiu uma importância crítica.

Na segunda feira, ao fim do dia, deu entrada na enfermaria onde estava, uma senhora, de nacionalidade francesa, que só falava francês. Ela ficou mesmo a seu lado e Pedro apercebeu-se da confusão. No hospital ninguém falava francês e a senhora estava sozinha quando foi internada, sendo que o marido não fazia ideia do local onde ela estava. Ele percebeu rapidamente que ninguém entendia o que ela dizia e ela não entendia, nem os médicos, nem as enfermeiras. Pedro fez de tradutor. Na verdade, fez muito mais do que isso. Para além de traduzir o que a francesa dizia e vice-versa, conseguiu obter um número de telefone para ela ligar ao marido. Como ninguém sabia o que fazer Pedro pediu que a francesa dissesse a sua morada e ligou para o 118, obtendo o número desta. Foi uma boa ação. A verdade é que a francesa, que se chamava Louise, não sem lembrava de nada e no dia seguinte, quando falou com ela, antes de ter alta, ela não fazia ideia do que se passava, mas agradeceu o conforto que ele lhe deu, pois, nessa altura, Pedro explicou-lhe o que ela ia fazer, informando-a que tinha sido alvo do mesmo procedimento cirúrgico. Finalmente, saiu do hospital. A assistente que o levou até à saída insistiu que este fosse numa cadeira de rodas o que facilitou o percurso, pois sentia-se ligeiramente tonto, devido ao facto de ter estado três dias seguidos deitado. Sentia-se vivo, mas cansado. Desejava ardentemente duas coisas, para além de ver a família: um banho e uma refeição decente.

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