O APÓS

O APÓS

Tinha estado tanto tempo à beira do abismo que ainda não tinha interiorizado que estava a salvo. Estava exausto! Fazia três dias que estava deitado, praticamente na mesma posição, por isso ficar de pé tinha-se tornado estranho. Tinha dificuldade em equilibrar-se. Doía-lhe a cabeça e o corpo, não em resultado da intervenção a que fora sujeito, mas devido à posição em que tinha estado setenta e duas horas. Era estranho, mas doía-lhe mais a virilha, onde tinha estado ligado o pacemaker provisório, do que o corte necessário para a implantação do definitivo. As costas, essas não tinham parado de doer desde a primeira noite.

Era tudo novo para ele! Tinha que digerir as mil recomendações feitas pelos médicos e pelas enfermeiras, as informações do manual sobre o pacemaker e a pressão dos cuidados e recomendações das pessoas que o rodeavam.  Todos tinham uma opinião e uma sugestão e ele era o último a poder tê-la. O pior de tudo era gerir as mensagens que o corpo lhe enviava. Pedro tinha bem presente o custo de ter desvalorizado as mensagens do mal-estar, sentido na semana anterior e as primeiras quedas, mas não podia deixar que isso o transformasse em refém do próprio corpo. Muito daquilo que sentia era resultado do cansaço acumulado durante várias noites sem dormir, alimentando-se mal e sem poder mover o corpo. Mas, o desconhecimento de como se comportaria o organismo, agora que tinha, dentro de si, uma componente eletrónica, introduzia um parâmetro novo: o receio de não saber interpretar os sintomas. Tinha que aprender a viver com um pacemaker. Resolveu falar com a enfermeira que lhe deu alta.

«Sinto algumas tonturas e dificuldade em equilibrar-me. Acha que está tudo bem?»

«Mas é algo parecido com os sintomas que tinha antes de ter o pacemaker?» Perguntou ela.

«Não. São apenas tonturas.»

«Isso deve resultar do facto de ter estado muitos dias deitado, mas fique atento! Se sentir que algo não está bem, já sabe…»

O conforto da resposta da enfermeira foi nulo. Afinal tinha de ser ele o juiz. Enquanto esperava que a família o viesse buscar, já depois de ter tido alta, ensaiou uns passos pela enfermaria, alternados com a posição de sentado na cama. Sentia-se enjoado e isso preocupou-o. Decidiu explicar à D. Louise, a francesa que estava na cama ao lado, que ela ia fazer o mesmo que ele, tranquilizando-a. Enquanto falava com ela, estava tão concentrado na conversa que, os sintomas quase desapareceram. «Que estranho!» Pensou. «Isto está tudo na minha cabeça…» Disse a si mesmo. Sentou-se novamente. Estava muito cansado, mas a vontade de sair dali era tão grande que a ansiedade o tornava irrequieto. Perguntou a uma das enfermeiras se a enfermeira Patrícia estava de serviço ou não. Explicou que tinha ficado de analisar uns documentos que ela deveria ter ido buscar aos bancos, no dia anterior. A enfermeira não lhe soube dizer, mas também não procurou saber.

Finalmente eles chegaram. A auxiliar que o levou até à saída, sugeriu que fosse numa cadeira de rodas e ele aceitou de bom grado. Estar de pé obrigava-o a um esforço que ele dispensava. Quando estava a sair a Rita veio, à porta da enfermaria, despedir-se dele e isso deixou-o sensibilizado. A mulher e os filhos estavam à sua espera, mas todos guardaram a emoção do encontro dento de si para não se contagiarem. Era estranho estar a ser conduzido pelo filho, mas era recomendável que esperasse trinta dias até voltar a conduzir. Tomou o primeiro banho, verdadeiro, dos últimos três dias e isso deu-lhe grande satisfação. Apesar de continuar a ter alguma dificuldade em manter-se de pé, não o deu a conhecer a ninguém. Fizeram uma refeição frugal e partiram para Lisboa.

A primeira noite na sua cama foi algo indescritível: dormiu! Apesar de apenas se poder deitar sobre o lado direito e de costas, conseguiu repousar, embora ainda não estivesse totalmente recuperado. Tinha perdido um quilo e meio e precisava de recuperar forças. Na quinta feira, depois de duas noites bem dormidas, fez o primeiro teste à sua capacidade. Foi andar na passadeira durante cinquenta minutos. Fez uma média de quatro quilómetros e meio por hora e isso deixou-o satisfeito. Era o verdadeiro início do processo de recuperação!

Os dias que se seguiram foram de uma grande aprendizagem. A primeira realidade que teve de enfrentar foi o trauma interiorizado pelo seu próprio corpo (ou talvez pela mente!). Ao menor sintoma, ainda que perfeitamente irrelevante, por exemplo um pouco mais de calor, o coração parecia querer disparar. Foi dessa forma que o corpo garantiu a sobrevivência quando tinha as síncopes, daí o automatismo da reação. Pedro tinha de se mentalizar a si próprio que estava tudo bem e que não ia ter nenhuma síncope. Este processo foi repetido vezes e vezes sem conta. Ao primeiro alerta o corpo reagia e ele tinha de o tranquilizar. O problema é que este procedimento exigia que ele tivesse a certeza de que estava a interpretar corretamente os sinais, o que fazia com que houvesse momentos de dúvida e hesitação. Durante mais de cinquenta anos ele tinha aprendido a interpretar os sinais do corpo e a adotar o comportamento mais adequado. Essa experiência acumulada, apesar de preciosa, não tinha evitado o erro cometido na interpretação das primeiras quedas. Como poderia estar seguro de que, em meia dúzia de dias, tinha aprendido a interpretar os sinais, agora que o pacemaker fazia parte de si?

A recomendação era de que apenas ao fim de um mês podia voltar a fazer exercício, normalmente, nomeadamente com os braços. Isso significava uma quase imobilização nos primeiros dias e uma evolução gradual nos restantes até atingir o ponto desejado. Apesar disso, não estava impedido de exercitar as pernas ou o abdómen. Foi por aí que começou, aumentando o ritmo de forma a testar a sua resistência. Assim, na passadeira, em circuitos predefinidos ou na praia, procurou andar, todos os dias, cinco quilómetros. À medida que foi ganhando confiança a capacidade de ignorar o stress traumático foi aumentando, mas ao fim de um mês este ainda se manifestava. Por vezes bastava pensar na manhã fatídica, do dia oito de agosto, para o corpo reagir. Outra das coisas que lhe provocava o reviver do trauma, era passar pelos os sítios onde tinha vivido experiências negativas. Foi isso que o levou a visitar a farmácia que o tinha atendido depois da queda, em Lisboa. A seu tempo, quando o calor fosse um pouco menor, faria o percurso à volta do Instituto Superior Técnico, local onde se tinha registado a primeira queda, mas só de pensar nisso, o coração sobressaltava-se.

Tinha percorrido um caminho bastante longo, mas tinha a noção de que havia muito mais para percorrer. Em paralelo com a recuperação física e o trabalho para fazer desaparecer o stress traumático, existia o “outro” lado. Um lado que Pedro ainda se recusava a reconhecer e de que não tinha falado a ninguém, mas que se inquietava dentro de si, num movimento crescente. Ele tinha experimentado, ou pelo menos imaginou que isso aconteceu, coisas que não sabia explicar e cujo resultado prático se materializava através de uma nova curiosidade. Um tema que ele sempre tinha desvalorizado: a espiritualidade. A prioridade era a recuperação física e psicológica o resto viria com calma, até porque era algo que despertava sentimentos contraditórios: ao mesmo tempo que lhe despertava a curiosidade, intimidava-o. Na verdade, era mais do que uma curiosidade. Eram perceções. Algo para descobrir e aprender a perceber!

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