O SIGNIFICADO DE UM OLHAR
Finalmente ele tinha tomado uma decisão. Tinha havido avanços e recuos, recusas e afastamentos, mas o convite tinha surgido: eles iam jantar.
A história tinha começado fazia algum tempo e de forma completamente insólita. Helena era uma mulher dos subúrbios. Não no sentido pejorativo tantas vezes usado, mas porque vivia nos arredores de Lisboa e adorava o local onde vivia. Assumia isso com uma frontalidade e convicção pouco comum. De facto, seria muito difícil convencê-la a trocar o subúrbio pela cidade, apesar de trabalhar em Lisboa. Tinha uma história de vida complicada, mas enfrentava as dificuldades com um sorriso. Mulher de resposta pronta e língua afiada, não levava desaforo para casa. A ironia era a sua melhor arma. Morena, de olhos castanhos e vibrantes, era possuidora de um sorriso demolidor e uma gargalhada esfuziante. Tinha uma beleza egípcia de maças vincadas e nariz perfeito, colocados geometricamente, num rosto longo. Tinha um metro e cinquenta e seis de altura, e um corpo elegante e harmonioso, mas a ausência de um abdómem liso deixava-a infeliz. O que lhe faltava em altura sobrava-lhe em charme e sensualidade. Tinha o chame de uma mulher de quarenta e três! Por detrás de tudo isto escondia-se uma mulher extraordinária, mas para o saber era preciso conhecê-la.
Após um primeiro casamento, que a marcou profundamente, tinha uma nova relação. Hesitou muito quando conheceu Paulo, mas estava só fazia muito tempo e a persistência dele acabou por vencer a sua relutância: viviam juntos há dez anos. Era, como muitas, uma relação com altos e baixos, que estava a passar por um mau momento. Apesar disso, Helena tinha muito recentemente evitado a partida do Paulo pois não podia viver sem ele. Talvez não fosse bem assim, e o seu trauma de ficar sozinha tivesse dado uma ajudinha. Era uma mulher carente e custava-lhe ficar só. O medo de terminar uma relação era apenas igualado pelo receio de apostar numa nova. Isso tinha ficado patente numa relação, recente, que nunca chegou a sê-lo: Afastou um homem que se apaixonou de tal forma por ela que estava disposto a tudo, apenas com receio do insucesso. Isso conduz-nos ao insólito dos acontecimentos recentes.
Secretária de profissão, isso levava-a muitas vezes ao banco, para fazer depósitos ou entregar documentos que exigiam maior sigilo. Não era a primeira vez que se cruzava com aquele caixa, embora ele fosse novo na agência e ela já tivesse reparado nele, mas naquele dia os seus olhares encontraram-se de uma forma diferente e as pernas tremeram-lhe. Apenas um olhar, porque o COVID-19 obrigava-os a esconder o rosto por detrás de uma máscara, bastou para a tornar completamente dependente daquele homem. Helena era uma mulher sensível e nervosa e aquele homem conseguiu tocar nos dois botões, em simultâneo. Era uma situação ridícula e inexplicável, quase alienável. Como podia um desconhecido, com quem não tinha trocado mais do que meia dúzia de palavras, quase sempre de caráter circunstancial, exercer aquele domínio sobre ela?
Trocaram algumas mensagens, embora ele se colocasse sempre numa posição algo distante, oferecendo mesmo alguma resistência a ter qualquer tipo de relação. Helena estava obcecada pela ideia de o conhecer. Na verdade, estava tão encantada com ele que bastaria um estalar de dedos para ela correr atrás dele. Apesar de dizer a si própria o contrário faria tudo o que ele quisesse, desde que não envolvesse fazer menos pela sua filha, que adorava. O seu foco era ele. Tudo o resto se tinha tornado secundário: Os amigos, a família, com exceção da filha e até o trabalho, que adorava, sendo inclusive uma grande profissional. Um dos seus melhores amigos, homem mais velho, com uma forma de pensar muito especial e que gostava dela de uma forma também especial, tinha-a avisado: antevia que desse homem não vinha nada de bom. Apesar disso, apoiou-a quando ela lhe deu a novidade.
«Hoje à noite vou jantar com o Roberto.»
Afinal o jantar era a três. Helena levaria consigo a melhor amiga. Não era a situação ideal, mas tinha sido ideia do Roberto. Ela seria a “quebra gelo” do encontro, mas também existia o risco de desviar o foco de Helena. Teria que dar o seu melhor e não sabia se era capaz de o fazer, pois estava demasiado nervosa.
Ele chegou um pouco depois das oito e não ficou muito satisfeito por o restaurante ser um “antro de benfiquistas”. Ainda por cima o Benfica estava a jogar e a ganhar. Obviamente ele não era benfiquista! Perto do fim da refeição tornou-se óbvio que eles tinham expetativas diferentes para aquele encontro. Ela esperava ver uma manifestação de interesse por parte dele, ainda que fosse apenas o desejo de a conhecer melhor. Ele não tinha interesse numa relação, para além disso escondia, de forma manifesta, uma parte da sua vida. Ele não estava disposto a partilhar tudo com ela. Teria todo o interesse em estar com ela e partilhar momentos íntimos, mas não em partilhar a vida. Roberto fazia questão de manter parte da sua vida reservada. Não deu nenhuma justificação para isso, nem entendia que tinha de dar. Limitou-se a dizer.
«Eu quero estar contigo socialmente e intimamente, até com alguma frequência, mas tens de aprender a dar-me espaço. Existe uma parte da minha vida que é só minha.»
Helena ficou a olhar para ele sem saber o que dizer. O pensamento estava vazio. Não lhe ocorria nada, tal era o choque provocado por aquelas palavras. Ela tinha adorado aquelas duas a três horas de convívio, mas o desfecho era pura e simplesmente chocante. Ela não era esse tipo de pessoa. Algo a ligava muito profundamente àquele homem, algo muito forte, que ela não sabia classificar, mas receber aquele tipo de proposta era algo inaceitável. Isso punha em causa a possibilidade de existir qualquer tipo de relação. Ainda assim, insistia em arranjar desculpas e pensar que ele apenas não estrava pronto para ter uma relação. Talvez se se conhecessem melhor o pudesse fazer mudar de opinião. A amiga demonstrou ser muito mais sensata.
«Ele não é homem para ti. Se não estava pronto para ter uma relação devia tê-lo dito, de forma direta e franca. A proposta que fez é simplesmente indecente.»
Helena concordou com a amiga, pois não tinha força nem argumentos para a contrariar, mas, intimamente, arranjava desculpas para o comportamento dele e fazia planos para um novo encontro. «Se tivermos a oportunidade de nos conhecer melhor ele pode mudar de opinião.» Pensou. Era um argumento fraco, mas ela tinha de se agarrar a alguma coisa, pois sentia que o seu mundo estava prestes a desmoronar-se. O resto da noite foi de insónia e choro. O companheiro, apesar de saber com quem tinha ido jantar, não sabia a razão do seu desespero, mas podia adivinhá-la. Apesar disso, tentou confortá-la, mas nessa noite ele era a última pessoa que ela queria a seu lado.