Um Poeta Romântico
Aqui fica, de forma conspícua, sem floreados nem agalma, a triste história do poeta Nomikos. De entre todos os poetas líricos de que ouvi falar, este é, seguramente, o mais infausto. Encontrei-o, pela primeira vez, em Londres, no hotel Claridge’s, numa madrugada de inverno, tão regelada quanto regelante.
Tinha eu chegado à ilha, vindo do continente, depois de um par de horas de travessia do Canal… Que travessia! Neptuno, enfurecido, conjugou os elementos e não foi preciso muito para que o Paquete caturrasse a cada cinco minutos. A neve fustigava o convés, obrigando-me a suportar o fétido odor azedo dos gregórios, com que muitos celebravam a fraqueza da tripa. Refugiado a um canto: pálido, exausto e de pernas trémulas, ansiava, mais do que o Paquete, por porto seguro.
Gelado e bêbado de sono, entrei no hotel cambaleante e fui atraído pela imponente lareira, que se erguia no centro da sala, como um monumento. Abandonei-me ao delicioso sabor morno do calor que os restos mortais de uma qualquer árvore, transformados em brasas, exalavam. Embotado pelo entorpecimento do calor, levantei a cabeça e deparei com ele. Estática, do outro lado da lareira, a figura esguia assemelhava-se a uma árvore seca e alta, também ela, pronta para ser consumida pelas chamas, onde fixava o olhar, longínquo e triste, de cegonha pensativa. A casaca longa e a gravata branca davam-lhe um ar taciturno a que o guardanapo, pendurado no braço, conferia uma nota musical.
Junto ao balcão, curvo e alto, que reservava o canto para receção dos hóspedes, o mensageiro aguardava com a minha bagagem. Tinha de fazer o check-in. A loira, por detrás do acrílico, que nos protegia dos vírus que a respiração de ambos pudesse projetar, jogou-me um lindo sorriso de boas vindas e registou a minha entrada com um ar, simultaneamente, profissional e coquete. Transpunha já a porta do elevador quando a figura magra e fatal se inclinou e me murmurou, num inglês de Oxford. «O pequeno-almoço já está a ser servido Sir.» Assenti. O alimento que o meu corpo precisava era o sono reparador.
Quando acordei era hora de almoço. Rejuvenescido pelo sono e pelo banho, entrei no salão e avistei de imediato a figura esguia e triste: plantado junto à janela, olhava para o exterior, com ar ausente e melancólico. O silêncio que reinava na sala rivalizava com o do exterior, onde apenas a neve caía levemente, sem qualquer ruído: era o silêncio de domingo. A sala, parcamente iluminada, aquecida pela lareira contrapunha-se ao frio do exterior e contrastava com a sintonia do silêncio entre os dois ambientes.
Apesar de apenas ver o homem de costas, a silhueta magra e curvada evidenciava uma expressão, de tal desalento, que fez despertar o meu interesse. O cabelo comprido, de artista, que tocava gentilmente os ombros, era, claramente de um meridional. O silêncio lívido, projetado pelos telhados cobertos de neve, fazia toda a sua magreza friorenta encolher-se… instintivamente, passei as mãos pelos braços! Chamei-o. A fisionomia, que apenas vira de relance, na véspera, impressionou-me mais do que a silhueta: o rosto, enorme, era uma pintura de tristeza serena e nobre, emoldurada pelos cabelos, tez morena, nariz adunco, barba frisada e bem cuidada e fronte larga, completavam uma estampa admiravelmente romântica. As olheiras profundas, sinónimo de serões pronunciados, não escondiam um olhar perdido numa indecisão ternurenta e sonhadora. Desviei o olhar. Que magreza! A cada passada as calças enrolavam-se nas canelas, como pregas de uma vela em torno do mastro. A casaca caia-lhe de forma deselegante, com dobras de túnica larga e as abas, longas, eram como duas setas apontando grotescamente para o chão.
Com olhar ausente e albergando um enfado conformado, escutou o meu pedido. Arrastou-se até ao balcão da cozinha, onde o chefe de sala lia a bíblia, coçou a cabeça, como quem rememora algo e debitou em voz baixa.
«Número 307: Um rosbife, chá …»
O chefe de sala declinou a bíblia, tomou nota e eu acomodei-me e dei toda a atenção ao companheiro de almoço: o volume de Tennyson. – Julgo já ter dito que era domingo, dia em que não há jornais, nem pão fresco – A neve continuava a engrossar o manto branco que cobria a cidade e impunha o silêncio. Ao fundo, na outra mesa ocupada, um ancião, que acabara de almoçar, dormitava, com as mãos entrelaçadas no abdómen e as lunetas caprichosamente na ponta do nariz, exibindo um contraste gritante entre cabelos e suíças bancas e rosto escarlate. Lá fora, na esquina defronte, um pedinte trinava um salmo, que a neve abafava, chegando-me aos ouvidos apenas um sussurro gemente… era Londres, num domingo de inverno.
O almoço chegou pelas mãos do magro garçon. Por instantes o olhar pareceu ganhar vida, um relâmpago de luz, fugaz, disparado pelo olhar, trespassou-lhe o rosto e eclipsou-se, no momento em que poisou o tabuleiro de chá. O motivo de tal obséquio foi o volume de Tennyson que as minhas mãos ostentavam. Completado o serviço, rodou os calcanhares, num movimento autómato, e foi plantar-se junto à janela, meditabundo. A neve, alva, refletia o olhar triste que lhe lançava, num diálogo surdo e melancólico. Eu atribui a expressão de efémero deleite à magnificência da encadernação do volume: Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de Lançarote do Lago – o pelicano de ouro sobre um mar de sinopla.
Ao fim do dia dirigi-me para a vivenda vitoriana onde teria lugar o retiro literário. Enlevado com o lauto e cerimonioso jantar de receção, rapidamente me esqueci do romântico garçon do restaurante do Claridge’s. Foi só daí a quinze dias, ao voltar ao hotel, quando me deparei com a figura inelutável que, de forma pachorrenta, atravessava a sala, com um prato de costeletas numa mão e um puré de batata na outra, que o antigo interesse recrudesceu. Quis o acaso do destino que, nessa mesma noite, eu ficasse a saber o seu nome e tivesse um vislumbre do seu passado. Ao regressar do Royal Opera House, um pouco a desoras, cruzei-me de forma inopinada, entre portas do hotel, com o meu grande amigo Bartoreli: abastado e majestoso.
Querem conhecer Bartoreli? Acreditem que ficariam impressionados! A magnificência da sua presença transporta-nos para o ambiente de um salão turco e convida-nos a admirar a pança opípara, a solene lentidão dos movimentos e a braba negra e serrada de um paxá gordo. No entanto, esta ponderosa circunspeção turca é suavizada, em Bartoreli pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, com o mesmo enternecimento de um leão sírio. No mar do seu fluído lustroso, parece vaguear a religiosidade afetuosa das raças que geram os messias… Mas o sorriso! O sorriso de Bartoreli era a mais efetuosa, a mais primorosa, a mais rica das expressões humanas. Era um sorriso pleno! Existia astúcia, subtileza, bonomia, abandono, ironia doce, convicção, naqueles lábios que revelavam o alvo virginal do esmalte quando se desirmanavam. Atenção! Esse sorriso era a verdadeira fortuna de Bartoreli!
Bartoreli era um hábil, moralmente falando. Tudo o que revela é que nasceu em Esmirna, filho de pais gregos. Quando questionado sobre o passado recebe-se um abanar de cabeça de amplitude umbral, que ele torna inofensivo, com uma expressão de candura: esconde o olho maometano por detrás das pálpebras, cerradas com bonomia e faz desabrochar um sorriso, de uma suavidade que nos massageia o rosto e, como que envolvido num oceano de inocência e compaixão, exclama:
«Eh! Mon Dieu! Eh! Mon Dieu…»
Selam-se os lábios. Tem a sabedoria de um homem viajado. Conhece o Peru, a Criméia, o Cabo da Boa Esperança, os países exóticos, tão bem como Regent-Street. Mas, mesmo para o observador mais incauto, é óbvio que não experimentou os extremos da vida dos vulgares aventureiros do Levante, da cambraia à estopa e da glória à vilania. É um gordo! Portanto, um prudente. O seu magnifico solitário apenas conhece a realidade do seu anelar e as agruras do tempo jamais o surpreenderam sem uma parka de dois mil francos. Quanto à sorte: nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Clube, de que é um membro querido e frequentador assíduo, dez libras ao whist. É um forte!
Tem, no entanto, uma debilidade notória e publica. É um viciado por rapariguinhas: adolescentes entre os doze e os quinze. Gosta delas enxutas, excessivamente loiras e praguentas. Coligi-as, metodologicamente, percorrendo os bairros pobres de Londres. Instala-as em casa e alimenta-as. Alimenta-lhes o corpo, mas sobretudo os vícios, deliciando-se com o seu recrudescimento naquelas flores da lama londrinas. Fingindo-se incauto, abre-lhes as algibeiras e coloca ao seu alcance o gin, para que os anjinhos ganhem garras e se transformem em demónios. Depois deleita-se a vê-las, excitadas pelo álcool, com ar estouvado, de faces escarlate, soltar obscenidades, injuriando-o e arrepelando-lhe a barba. O bom do Bartoreli, encruzado no sofá, com ar beatífico e mãos cruzadas na pança, rebola os olhos enquanto murmura, por entre um riso aberto, no seu italiano emprestado: «Piccolina! Gentilletta!»
«Querido Bartoreli!»
Foi, realmente, um prazer envolvê-lo num amplexo, nessa noite, em Charing- Cross. Saboreamos o momento. Tinham decorrido muitas luas desde o último encontro, pelo que decidimos cear juntos no restaurante. O sorumbático criado, debruçado sobre o Journal de Débats, na sua bancada, teria passado incógnito não fora a entrada de Bartoreli com a majestade de um obeso. O homem apresentou-se na sua frente e estendeu-lhe, silenciosamente a mão, ao mesmo tempo que inclinava ligeiramente o tronco. Foi um aperto de mão solene, emotivo e sincero. «Bom Deus eles são amigos!» Pensei. Arrebatei Bartoreli para um canto da sala e interroguei-o com uma ansiedade sôfrega. Primeiro que tudo quis saber o nome.
«Chama-se Nómikos.» Disse Bartoreli, com ar grave.
Depois quis a história toda! No entanto, Bartoreli refugiou-se na vaga reticência que lhe era tão comum, qual deus, refugiando-se de um embaraço mundano, no Olimpo.
«Eh! Mon Dieu! Eh! Mon Dieu…»
«Não, não e não. Bartoreli, desta vez não! Quero-lhe a história… Aquela face byroniana tem de ter uma história…»
Bartoreli encheu-se de candura, tanto quanto lhe permitiam as barbas e a pança e confessou-se. Deixou cair frases, como gotas num oceano: tinham viajado juntos pela Bulgária e Montenegro… Nómikos foi seu secretário… Boa letra… tempos amargos… Eh! Mon Dieu…
«De onde é?»
Bartoreli desta vez não hesitou e, baixando a voz, fez um gesto de grande desconsideração.
«É um grego de Atenas!»
O meu interesse sumiu-se como água em areia no deserto. Quem viajou no Oriente e nas escalas do levante, adquire com facilidade o hábito, talvez injusto, de suspeitar do Heleno: Os primeiros encontros, sobretudo se nos cruzamos com gente de educação universitária e clássica, fazem acender a chama do entusiasmo. Pensa-se em Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre e perfilam-se na imaginação as linhas augustas do Pártenon. Tudo se desvanece quando privamos com eles nas mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, principalmente depois de ter escutado as histórias de solércia que tem semeado desde Esmirna a Túnis. Os que se nos apresentem, depois disso, despertam em nós apenas uma reação: Um passo atrás para nos dar tempo de proteger os bolsos e os metais preciosos e o aguçar do intelecto para rebater a desonestidade intelectual.
É uma reputação infausta. Causada, em muito, pelo facto de os gregos que emigram para as escalas do Levante, constituírem, na sua maioria, uma plebe torpe: parte pirata, parte laica. São um bando de rapina engenhoso e imoral. Quando soube que Nómikos era grego, recordei o olhar de cobiça e de predador que ele cravara no meu belo exemplar de Tennyson e imediatamente associei-o ao seu desaparecimento. Coincidências? Não, era um bandido! Durante a ceia não falamos mais de Nómikos. Serviu-nos outro criado, tez alva e cabelo ruivo: honesto e são. O soturno Nómikos manteve-se fiel à sua bancada, mergulhado no Journal de Debáts.
As palavras são como as cerejas e a conversa prolongou-se um pouco mais para além do jantar. Acontece que ao recolher-me ao meu quarto me perdi. O alojamento que me foi atribuído era numa extensão do hotel, naqueles altos de Charing-Cross e chegar lá era uma aventura topográfica. As escadas, corredores e recantos sucediam-se tornando o percurso labiríntico. De castiçal na mão dei por mim num corredor bafiento, com cheiro de viela do cais. As portas ao invés de números tinham nomes: John, Smith, Charlie, Willie… seguramente que se tratava do alojamento da criadagem. A claridade que saía de uma porta aberta prendeu a minha atenção. Apressei-me e, da entrada, vi logo Nómikos. Envergava ainda a casaca, mas estava absorvido a gatafunhar, debruçado sobre uma mesa, inundada de papéis.
«Pode indicar-me o caminho para o número 508?»
Ele dirigiu-me um olhar confuso de quem desperta de um enlevo idílico e repetiu:
«O 508… 508?»
O meu olhar estendeu-se e avistei, entre papeis, lenços sujos e um crucifixo, o meu volume de Tennyson. O seu olhar intercetou o meu e acusou o toque, o bandido! A face pálida e chupada tornou-se purpura. O primeiro pensamento foi benevolente: não reconhecer o livro como meu. Era um ato bom, condizente com uma moral superior. Reprimi-o. Com ar proprietário, apontei o volume e disse, num tom ofendido:
«É o meu Tennyson!»
Não sei que resposta ele balbuciou. Arrependido do meu comentário e com renovado interesse sobre a burlesca figura do grego, acrescentei logo, num tom impregnado de perdão e justificação.
«Trata-se de um grande poeta. Concorda? Estou seguro de que se entusiasmou com ele…»
Nómikos corou ainda mais, mas não em resultado da humilhação de ladrão surpreendido: era, julguei eu, resultado da dissonância entre a farpela, gasta, de empregado de restaurante, que envergava, e o reconhecimento de uma inteligência poética, implícito nas minhas palavras. Ficou mudo. Ao invés as páginas do Tennyson, que, entretanto, abri, falavam por ele. As margens, outrora alvas, estavam pejadas de comentários: Sublime! Majestoso! Divino! Era uma escrita hesitante, como se a mão vibrasse juntamente com alma que a sonhou, com uma sensibilidade poética superior.
Respeitoso, quase militar, Nómikos manteve-se de pé, cabeça baixa, ar culpado e desalinho total: o nó da gravata apontando o ombro. Pobre Nómikos! Movido por uma atitude que revelava um passado de infortúnio e dependente, quis falar-lhe ao coração… Não! Lembrei-me que entre o afeto e o drama, o segundo é muito mais eficaz para impressionar o homem do Levante. Enfunei o peito, qual bujarrona em dia de vento, estendi-lhe as mãos, num gesto teatral e exclamei!
«Eu também sou poeta!»
Esta afirmação, caída de paraquedas, incompreensível e absurda, para um homem do Norte, foi de imediato entendida pelo levantino como a manifestação de uma alma gémea. Confusos? Pasmem então! O que Nómikos estava gatafunhando, numa tira de papel, eram estrofes: o homem desenhava uma ode.
Já de porta fechada fui confidente da sua história, ou melhor, espasmos desirmanados de uma biografia errática: Nómikos abriu a alma. Condenso-a, poupando o leitor à sua tristeza, até porque as lacunas da narrativa são muitas e dar lógica ao emaranhado de factos sentimentais é tarefa inglória. Tudo é vago e, portanto, suspeito. Nasceu em Atenas, filho de um estivador do Pireu. Aos dezoito anos servia em casa de um proprietário das explorações mineiras de Laurion, com gostos poéticos e, nos intervalos, frequentava a universidade ateniense. «Estas coisas são frequentes por lá!» Dizia ele. Formou-se em línguas e literatura: isso habilitou-o mais tarde a ser interprete numa empresa de turismo. Datam dessa época os primeiros trenos, trazidos à luz do dia por um semanário lírico: Ecos da Ática. A literatura catapultou-o para a política e com esta nasceram as ambições parlamentares. O infortúnio do amor pela mulher errada, nascida em berço nobre, um pai brutal e ameaças de morte, ditaram o expatriamento.
Viajou, não por lazer, mas por necessidade. Esteve na Bulgária e no Montenegro. Em Salónica foi empregado numa sucursal de um banco Otomano, detido por judeus, remeteu romancilhos a um jornal da província – a trombeta da Argolida. Dá-se um salto no tempo: um buraco negro na sua história. Sem saber como nem porque reaparece em Atenas, de fato e gravata, liberal e deputado. Este período teve tanto de efémero como de esplendoroso. Deslumbrava a camara dos deputados com a sua palavra colorida. Usava a linguagem de forma criativa, bordando-a de imagens engenhosas e magníficas, encantando Atenas. Não existia assunto tedioso que ele não abrilhantasse com a magia das suas palavras: fossem os impostos ou a circulação as bucólicas de Teócrito, estavam sempre à mão. Tinha o condão de fazer florir os terrenos mais áridos com as suas palavras, dizia ele. Em Atenas era talento bastante para o levar ao poder. Sem surpresa, a sua nomeação para a alta administração do Estado, foi sugerida. Porém tudo se desvaneceu: A maioria, de que Nómikos era o tenor mais querido, perdeu o ministério e juntos caíram, sem lógica, nem glória, num daqueles terramotos políticos tão comuns na Grécia. Aluíram-se como casas sem razão aparente. Falta de alicerces, decrepitude de materiais e de moral, ausência de individualidades… tudo tende para a ruína feito em pó…
De novo um vazio, um salto na história de Nómikos… Emerge em Atenas, membro de um clube republicano, pleno de sabedoria: pede num jornal a emancipação da Polónia e a Grécia governada por um concílio de génios. Faz a primeira publicação: os Suspiros da Trácia. Segue-se nova aventura amorosa… Enfim – isto foi dito, assim, sem explicações – é obrigado a deixar a Grécia e vem para Inglaterra.
Experimenta várias posições, em Londres, até se estabelecer no restaurante de Charing-Cross.
«É um ancoradouro firme.» Disse-lhe, apertando-lhe a mão.
A amargura transformou o sorriso num esgar. É decerto um bom local para manter a âncora ferrada, e com algumas vantagens. A alimentação é boa, as espórtulas são razoáveis, tem acomodações… enfim. Mas a delicadeza da sua alma poética não suporta aquele definhar. São dias inteiros de sofrimento! Um poeta lírico, condenado a servir, a burgueses estabelecidos e glutões, bifes e copos de cerveja! Não o incomoda a dependência nem a falta de fortuna. A sua alma grega contenta-se com pouco: basta-lhe que o patrão o trate com respeito. Ele próprio reconhece, com gratidão, que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer “if you please” e quando saem, ao passar por ele, dirigem-lhe um cumprimento gestual. Isso satisfaz a dignidade do Nómikos, como humano.
O que torturava Nómikos, o poeta, era o contacto permanente com o alimento. Se ele fosse escriturário de um grande industrial ou guarda livros de um banqueiro. A força do metal precioso ou a estratégia de conquista dos mercados, são exercícios da mente, feitos com alma, onde o lirismo pode encontrar parceria. No restaurante, o ventre é Deus! Serve-se a pança e satisfaz-se a mais básica das necessidades humanas. O que ali entra são autómatos, corpos em busca de alimento para a tripa: a alma fica de fora, tornando impossível a originalidade artística. E as palavras que são o alimento da alma? A troca de experiências tão necessária para o processo de criação artística? O comentário mais arrojado que escuta é um pedido de sardinhas de Nantes! Mais pão? Mais bife? É a privação total da eloquência, antes manifestada perante plateias eruditas, cuja ausência é tão dura e penosa. O serviço amesquinha-lhe a alma e impede-lhe a criação. A sós, bastam duas voltas, na cadeira ou em pé e saltam-lhe as odes da alma para a pena: tudo de memória. Mas ser interrompido por uma voz glutona… Existem momentos em que, isolado num canto ou fixando a vidraça, ignora o freguês, enleva a mente e a alma cria.
«Bife e batatas!» Grita uma voz faminta e grossa.
Atropela-se a elegia e cobre-se de nuvens o céu poético. Morrem os sonhos que antes galopavam de estrela em estrela. Desvanecem-se as fantasias. Nómikos cai do seu corcel mágico e infeliz caminha lento e pesaroso. O peso da casaca parece insuportável e as palavras saem abafadas, daqueles lábios, no meio de um sorriso lívido. «Bem ou malpassado?» Ah! É um destino cruel! A pergunta sai-me sem filtro:
«Porque não busca outra posição, uma que se compadeça da delicadeza da sua alma?»
Baixou poeticamente a cabeça e disse-me a razão. Com a emoção no rosto e os olhos brilhantes de água, suportou o corpo, dobrado, no tampo da mesa e confessou: Era por amor.
Ama uma camareira de nome Fanny. Ama-a desde a primeira vez que a viu, num longo corredor do hotel, dobrada sobre o carrinho, em busca dos lençóis que iriam forrar a cama de algum hóspede. Sob a alvura da vestimenta branca, os olhos azuis como um céu aberto e os cabelos loiros, com o reflexo dourado de deusa nórdica, ganhavam uma dimensão celestial: era um anjo. E o tom de pele? Era como se os seus braços nus enlaçassem os lençóis, com um ramalhete de rosas.
Que sofrimento! Que desassossego de coração este de Nómikos. Exprime a dor, na sua mais profunda intensidade, em odes, imortalizando-as em papel alvo, no dia do senhor. Dos altos de Charing-Cross, qual ameias do castelo da alma, lança para um mundo gélido, que o ignora, gritos de uma alma desprezada, numa linguagem auto mutilante e com lances de desespero, sem que estes saiam do papel. Leu-mas: Pude constatar o transtorno que uma paixão pode causar num ser mais débil.
Nómikos morre de ciúmes. Ele, um poeta romântico, sentimental e delicado, é ignorado pela desgraçada da Fanny, que entregou o coração a outro.
Ama um polícia. Um monte de músculos. Um Sansão. Uma massa de carne onde se eriça uma floresta de pelos. Com o tronco como flanco de couraçado e com pernas como colunas de Dagon. Este animal, como diz Nómikos, presta, regularmente, serviço no Strand e a infeliz Fanny passa os dias a admirá-lo. Colocou o tempo livre e as economias ao serviço dele. Gasta-as em quartilhos de gin e de brandy, que lhe leva à noite, várias vezes, em copinhos, escondidos debaixo do avental. Mantém-no preso pelo álcool!
Imóvel, a uma esquina, o colosso recebe o copo em silêncio. Num movimento brusco, fá-lo desaparecer na bocarra, que se abre qual vulcão, por entre a pelagem negra da barba, arrota cavamente, bate no peito de satisfação, dá meia volta e segue em silêncio, assinalando a passada, no lajedo, com as enormes solas cardadas. A Fanny, coitada, segue-o com o olhar babado… Ao mesmo tempo, na esquina oposta, talvez, o mirrado Nómikos, plantado no meio do nevoeiro, qual pé de candeeiro, esconjure a dor com soluços, sem conseguir afastar pensamentos tenebrosos.
Nómikos esvaía-se em lágrimas e o corpo definhava com elas. A alma esmorecia incompreendida por Fanny. Ela não sabia grego, mas seguramente entenderia o significado se lhos declamasse, sugeri eu. Deixei-o entregue a uma tristeza profunda, mas cismado nas minhas palavras. Fanny que ele julgava bruta de sentimentos beijou-lhe o rosto no fim da declamação. O beijo foi simples, mas o rubor das suas faces e o brilho dos olhos mostravam uma compreensão de alma bem mais profunda, que a da língua grega. Nómikos ajoelhou-se e confessou-lhe o seu amor. Fanny sorriu tristemente e afastou-o. Estava presa ao polícia. Era um homem ciumento e capaz de uma desgraça se ela o abandonasse. Pobre Nómikos! Depois de provar o mel, voltava a sentir o gosto do fel. Soube tudo isto antes de abandonar o hotel.
Passando por Londres, tempos depois, lá estava Nómikos olhando a janela pensativo. O corpo esguio parecia mais direito e o olhar refletia uma esperança, quase impercetível. Fanny, que passava com o carrinho de lençóis brancos, lançou um olhar para a janela, procurando o polícia. Ou seria para Nómikos? A verdade era que não tinha visto o polícia, em frente ao Strand, desde que havia chegado. Soube mais tarde que tinha desaparecido. Foi tudo o que Nómikos me disse, pendurando uma expressão enigmática.
Nota:
Este texto é um exercício de rescrita do conto de Eça de Queirós, Um Poeta Lírico. Foi rescrito no âmbito de um seminários de escrita criativa.