A FERA

A FERA

Desta feita deixem-me contar-vos a história de uma antiga vizinha minha. A sua história é uma tragédia, que termina da pior forma possível. Não divulgarei a forma como tomei conhecimento da mesma e deixo de fora alguns dos episódios e detalhes, para não permitir a identificação de Elsa, que naturalmente é um nome fictício. Aqui fica, a narrativa.

A paz não era o apanágio daquela casa, mas e vinda do cachorro, só fez piorar as coisas. Elsa tinha-se apaixonado pelo Golden Retriever. Era um cachorro irrequieto, cujos donos, um casal de velhotes, tinha falecido recentemente e que apenas queria brincar. O canil era uma prisão e quando Elsa lhe afagou a cabeça ele viu a sua oportunidade de ser livre: abraçou-a e lambeu-a com meiguice e entusiasmo. Foi amor à primeira vista! Elsa era uma pessoa impulsiva e quando gostava de alguém, neste caso de um animal, nada a impediria de o amar. Francisco não gostou da ideia e maltratou o animal desde o primeiro dia. Elsa ganhou um companheiro e amigo, para além de alguém com quem repartir os pontapés do marido. O cachorro tornou-se adulto e as coisas tornaram-se diferentes lá em casa. Bastava Francisco levantar a voz e o cachorro colocava-se entre ele e a mulher, rosnando.

«Um destes dias dou fim ao cachorro!»

«Atreve-te e verás como farei queixa de ti.»

A mulher nunca lhe tinha feito frente, mas encorajada pela proteção do cachorro começou a fazer ouvir-se e isso deixava-o vexado. «Onde já se viu uma mulher fazer frente ao marido! Tenho que tratar deste assunto. Uma mulher não tem opinião: obedece e cala-se.» Disse para consigo próprio.

Era final de ciclo e ela ficou a trabalhar até mais tarde, na seguradora. Ligou ao marido, mas este não atendeu. Enviou-lhe uma mensagem a informá-lo, que ele também ignorou. Em todo o caso, o jantar estava pronto, se ele quisesse comer bastava aquecê-lo. Refastelado no sofá ele esperava, impaciente, que ela chegasse.

«Isto são horas de chegar a casa? Não sabes que eu gosto de jantar às sete e meia?»

«São apenas quinze para as oito e o jantar está pronto. Se tinhas muita fome podias ter comido.»

O sapato dele voou de imediato ao encontro dela. Agachou-se evitando-o. Elsa viu, pela expressão dele e pela pistola que tinha à cintura, que as coisas iam ficar feias. Hesitou sobre a atitude a tomar e acabou por ficar parada no hall de entrada. Tejo, o fiel cachorro, colocou-se à frente dela, de dentuça arreganhada, pronto a defendê-la. Francisco puxou da pistola e apontou-a ao cachorro. Elsa, sem pensar bem no que fazia, deu um salto e interpôs-se entre os dois. Ele arregalou os olhos de surpresa, mas era tarde demais. Ainda conseguiu desviar um pouco a pistola, mas o tiro apanhou-a e Elsa caiu no chão inanimada. Tejo, o fiel cachorro deu um salto e mordeu-o na mão. O medo de ser preso sobrepôs-se à dor e Francisco levou as mãos à cabeça, desesperado: estava convencido de que a tinha morto. Debruçou-se sobre ela e viu que tinha pulso. Tinha de pensar rapidamente numa solução! Enrolou um pano na mão dele e chamou uma ambulância. Depois estancou o sangue da ferida de Elsa o melhor que podia. A última coisa que queria era que ela morresse, pois seria condenado por assassinato. A história que contou à polícia foi totalmente diferente. O cachorro tinha de ser abatido porque o atacou e ele disparou em legítima defesa. A mulher colocou-se na linha de tiro e ele ainda conseguiu alterar a sua trajetória, evitando um mal pior. Elsa, depois de socorrida, confirmou a versão dele, sempre acompanhada deste, no papel do marido mais carinhoso e solicito do mundo. O cão esse mais ninguém o viu. O bicho adivinhou o destino que lhe estava traçado e desapareceu. Tempos depois começou a constar que tinha sido avistado no Pinhal. Uns diziam que se tinha tornado num animal perigoso: uma fera, outros que ele apenas atacava para defender os mais fracos.

Eles viviam na zona de Sesimbra, num local perto do imenso pinhal formado pelas herdades da Ferraria e da Apostiça. Era fácil o cão ter-se refugiado nessa zona. Elsa tinha tantas saudades do animal que se pendurou muitas vezes na janela, antes de dormir, esperando vê-lo regressar. Desejava tanto tê-lo de volta que o imaginava a rondar a casa, como se a quisesse proteger de um mal que adivinhasse. Era tão intenso o seu desejo que a mente lhe pregava partidas: via-o por instantes, mas quando atentava melhor ele não estava lá. Quanto ao que o povo dizia, Elsa preferia imaginá-lo da segunda forma: uma espécie de herói de quatro patas.

Depois do incidente as coisas melhoraram um pouco e Francisco fez-lhe juras de amor, prometendo tratá-la com o respeito. Infelizmente foi sol de pouca dura. Passado pouco tempo os maus tratos recomeçaram, causando cada vez danos mais profundos. Elsa pensou muitas vezes em fazer queixa dele ou abandoná-lo, mas no último instante mudava sempre de ideias.

Desta vez ele tinha ido longe demais. Os ferimentos eram muito graves: o braço e as costelas partidos não podiam ser ocultados. Apesar de ter declarado, no hospital, que tinha tido um acidente de bicicleta, disse ao marido que iria apresentar queixa. Francisco ajoelhou-se aos pés dela e chorou baba e ranho.

«Vais desgraçar a minha vida. Eu sei que tenho um problema, mas prometo que me vou tratar se tu retirares a queixa. Por favor!»

Ela não suportava vê-lo naquele estado. Amava-o demais! Olhou para ele e pensou «Nenhum homem chora desta forma se não amar verdadeiramente a mulher!» Retirou a queixa. Apesar da agressão ser óbvia e ter causado danos graves, as autoridades fizeram vista grossa e aceitaram que a queixa fosse retirada. Apesar disso, mantiveram uma vigilância próxima, por algum tempo. Durante os seis meses seguintes Francisco parecia um homem diferente. Cuidou dela como nunca. Ajudou-a com a recuperação do braço e costelas partidos e no tratamento dos ferimentos. Elsa tinha rejuvenescido. Andava feliz! Em consequência, tratava o marido como se ele nunca a tivesse maltratado. Convencida de que ele lhe correspondia, amava-o ainda mais: era tudo o que necessitava! Isso fez com que a primeira chapada lhe doesse duplamente.

As agressões recomeçaram verbalmente e com um ou outro empurrão. Ela protestou. Ele não gostou e deu-lhe uma bofetada. Elsa perdeu as estribeiras.

«Estou farta! Vou deixar-te. Nunca mais me tocas.»

Francisco parou estupefacto. Não acreditava no que acabava de ouvir. Se ela pensava que pelo facto de a ter tratado bem durante seis meses podia dizer e fazer o que queria estava muito enganada. «Amanhã vou tratar deste assunto!» Disse para si próprio. Conteve-se e parou com as agressões. Elsa, ficou surpreendida com o efeito das suas palavras. Talvez tivesse encontrado uma forma de lidar com ele. No entanto, era uma forma dolorosa. Magoava-a ter de o ameaçar. Amava demais aquele homem e viver naquela tensão magoava-a mais a ela do que a ele. Nessa noite pensou muito sobre o assunto, mas não chegou a nenhuma conclusão. Não sabia o que era mais doloroso: viver com ele num ambiente de tensão e agressão ou viver sem ele.

Acordou cansada, pois tinha dormido mal, mas Francisco foi carinhoso com ela e isso fê-la ganhar o dia.

«Hoje à tarde vou ficar em casa para arranjar a lenha da lareira para o Inverno.» Disse ele, à laia de despedida.

Ela estranhou a atitude. «O homem está mesmo mudado!» Pensou. Pouco depois de Elsa chegar a casa o Francisco chamou por ela do barracão e ela atendeu à chamada. Mal entrou no barracão percebeu logo que estava algo errado. Os toros de madeira continuavam inteiros e não havia achas arrumadas no local destinado para o efeito. Estavam no lusco fusco e a luminosidade era reduzida. Ela parou e esperou que os olhos se habituassem à pouca luz do local. A expressão de pânico substituiu o sorriso que trazia pendurado, para entregar ao marido. Deu meia volta e correu para a porta do barracão. Francisco apareceu do nada, de machado na mão e barrou-lhe a saída. Elsa recuou lentamente. Francisco exibia um sorriso tresloucado que cresceu, transformando-se numa gargalhada, alimentada pela expressão de pânico do rosto dela.

O primeiro grito saiu-lhe alguns segundos depois, embora lhe tenham parecido uma eternidade. Francisco, com movimentos rápidos e ágeis, tapou-lhe a boca e amarrou-a. O grito chegou longe, mas os poucos vizinhos ignoraram-no, em função da tranquilidade que se seguiu. Francisco exibia um sorriso divertido, ao mesmo tempo que a amarrava mesmo em frente ao jovem, cuja cabeça tinha sido atingida por uma machadada, mas ainda estava vivo. Apesar de amordaçada ela perguntou.

«Quem é ele?»

«Um ladrãozeco da aldeia aqui ao lado. Já foi preso por vários furtos e agressão.»

«O que vais fazer?»

«Vou matar-te. Ninguém me abandona a não se por uma razão?»

«Qual?»

«A morte!»

«Podes matar-me, mas não vais escapar à prisão.»

«A história que a polícia vai ouvir será outra. Tu surpreendeste o jovem ladrão e ele alvejou-te. Eu vim em teu socorro e atingi-o com a machada. Agi em legítima defesa!»

Ela ficou muda de terror. Ele tinha pensado em tudo. A história podia levantar dúvidas, mas era plausível. Viu o marido aproximar-se lentamente do jovem, que gemia sem parar e colocar-lhe a arma na mão, segurando a mesma. As luvas iriam impedir que tivesse resíduos de pólvora nos dedos e o fato de mecânico na roupa. Em contrapartida, seriam abundantes na mão e roupas do ladrão. Era o fim! Elevou o pensamento para os pais que tinham falecido há alguns anos. Finalmente, ira encontrar-se com eles. Felizmente não tinha filhos, mas apesar disso, custava-lhe partir deste mundo tão cedo. Tinha sede de viver e morrer às mãos do homem que amava era irónico. Mais irónico ainda era o facto de, mesmo naquele momento, não conseguir odiá-lo. «Que amor é este meus Deus. Eu devia odiá-lo!» Pensou. Francisco segurou a mão do ladrão e apontou a arma. Pretendia atingi-la no peito com dois ou três tiros. Nó último instante hesitou. Sorriu. Era um sorriso triste.

«Tenho pena que não tenhas aprendido a ser uma mulher obediente. Podíamos ter sido muito felizes.»

Naturalmente que o conceito de felicidade dele incluía a possibilidade de bater na mulher, sempre que lhe apetecesse e a subjugar à sua vontade. Definitivamente era um homem com alguns problemas.

«Adeus.» Disse ele.

Elsa fechou os olhos e aguardou o som do estampido. Tinha-se entregue nas mãos de Deus. O som era estranho e vinha do exterior, aproximando-se rapidamente. Francisco desviou o olhar para a entrada e Elsa, tendo aberto os olhos, imitou-o. Aconteceu tudo tão rapidamente que nenhum dos dois teve tempo para reagir. O cão entrou no barracão, como um relâmpago, saltou sobre Francisco, desviando o braço deste. A arma disparou-se e a bala foi embater numa viga de ferro, por cima de Francisco, fazendo ricochete. Elsa estava em estado de choque: parecia que estava a ver um filme. Era tudo tão surreal! A bala que lhe estava destinada foi caprichosamente alojar-se no peito do marido, junto ao coração. Ele caiu, inanimado, no chão, embora ela não soubesse se estava morto. Elsa olhava para a cena num estado de assombro e letargia. Quando o cachorro a lambeu Elsa desatou a chorar convulsivamente. Os vizinhos, atraídos pelo tiro, acudiram ao local e, quando viram a cena macabra, chamaram a polícia. O seu querido Tejo lambia-lhe as lágrimas e abraçava-a como se fosse uma mãe consolando um filho. Tinha escutado o grito dela e tinha vindo em seu auxílio. Nunca mais se separaria daquele cachorro! Elsa mudou-se para outra localidade. Queria apagar o passado e isso não era possível se continuasse ali. O jovem ladrão não conseguiu sobreviver aos ferimentos e Francisco foi condenado por vários crimes, incluindo o de homicídio. Elsa refez a sua vida, mas não esqueceu aquilo porque passou, por isso mesmo, dedicou parte do seu tempo a fazer voluntariado, numa organização de apoio às vítimas de violência doméstica. Era necessário que elas soubessem que a violência, assuma ela a forma que assumir, não é desculpável, por mais profundo e genuíno que seja o sentimento que se nutre em relação ao parceiro que a exerce. Sobretudo, era importante saber quando tomar a decisão de colocar um fim a uma relação que nos violenta, para evitar que seja a violência a colocar esse fim: este é normalmente bem mais trágico

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