Olá Jaqueline,
O pouco que escreveste sobre ti diz tanto que me motivou de imediato a escrever-te esta carta. No entanto, o ato de a escrever não foi imediato, pois a riqueza do que sinto que existe em ti é tão grande que não queria sentir que te desiludi com o conteúdo da minha carta. Tentarei corresponder à profundidade e intensidade daquilo que transmites, embora esta seja uma carta singela, que pretende apenas iniciar um ciclo de troca de conhecimentos e informações, que espero seja duradouro.
A paixão pelo poder da palavra é algo que partilhamos. O uso da palavra, quer seja para conversar entre amigos, expor os meus argumentos ou transmitir conhecimentos, é algo em que acredito profundamente, mas, sobretudo, é algo que pratico com frequência. Uso-a sob a forma escrita e verbal com a mesma paixão e o mesmo preciosismo. O seu uso verbal é mais intuitivo e tem nuances que a escrita só com muita arte e domínio da língua consegue alcançar. No entanto, nada substitui o entendimento que os nossos interlocutores usufruem do uso simultâneo da visão e da audição, associado à linguagem verbal. Por sua vez, a linguagem escrita permite criar imagens e estimular a imaginação de quem lê, criando múltiplos cenários possíveis: um para cada leitor. O exercício da arte da escrita é algo que me dá um prazer indescritível, embora ainda tenha muito, mesmo muito, que aprender a seu respeito.
Sou originário de uma aldeia e vivi uma boa parte da minha vida numa quinta, tendo vindo para a capital para frequentar a universidade. Por motivos profissionais nunca mais deixei a cidade. Apesar desse percurso, adoro viver na cidade, mas anseio pelos momentos campestres, tanto quanto tu. Os fins de semana, sempre que possível, são passados na casa de campo, onde o silêncio apenas é interrompido pelo chilrear dos passarinhos ou o longínquo ladrar dos cachorros, som tão característico dos ambientes campestres. Não posso dizer que exista silêncio em absoluto, mas os ruídos do campo têm uma musicalidade que nos embala e estimula a criatividade. Não precisamos de nos fechar ao exterior para criar, basta incorporar a musicalidade em nós e deixar a pena correr.
O bulício da cidade não impede a criatividade, mas obriga a um determinado recolhimento em busca do tal silêncio que permite a nossa imaginação voar e a criatividade caminhar à solta. Os tempos que vivemos têm trazido para as cidades o silêncio, mas é um silêncio de morte. Trata-se do silêncio imposto por um vírus perigoso que nos condiciona, quer pelo medo que incute às pessoas, quer pelas restrições socialmente impostas. É um silêncio estranho que não combina com as cidades. Uma cidade quer-se viva, agitada, com cores e sons que nos estimulam, ao mesmo tempo que nos esgotam. São assim as cidades. É essa a sua natureza!
Para mim o recolhimento, ditado pelos tempos que vivemos, tem colocado alguns desafios à criatividade e tive de buscar outros motivos de inspiração para me obrigar a escrever todos os dias. Quando digo que tenho de me obrigar a escrever, não significa que isso não me dê prazer. Escrever é algo que me dá prazer em todos os momentos, mas para que escrever seja uma arte, temos de arranjar motivos e construções diferentes para cada história. Temos de buscar formas de nos expressar distintas, inovando em cada publicação. Para isso, é necessário que existam motivos de inspiração variados e também eles distintos.
Assim, o desaparecimento dos contactos fortuitos, gerados pela convivência diária, com a diversidade do público anónimo, foram substituídos pela busca de projetos, factos ou noticias, online, que me deem motivos para escrever. Esse contacto diário ainda que fosse apenas na ida e no regresso do trabalho, ou no passeio da hora do almoço, era como que uma quebra na rotina do trabalho. Tal como tu, necessito dela para tornar o meu dia mais curto. Isso leva-me a encarar o projeto de escrita de cartas muito aliciante, pois para além de ser, em si próprio, um motivo de inspiração, representa uma quebra na monotonia. De facto, conhecer pessoas novas, ainda que seja através daquilo que elas se predispõem a escrever em cartas, desperta em mim um entusiasmo que me levou a planear a escrita de várias.
Sentado no escritório do meu apartamento e em regime de teletrabalho, olho a cidade. As ruas estão calmas, demasiado calmas! A época do ano não favorece os passeios ou as brincadeiras ao ar livre, mas a pandemia remeteu à reclusão os poucos que se atreveriam, em condições normais, ao salutar exercício de esticar as pernas. Apenas as filas dos supermercados, devido à restrição do número de pessoas que pode estar no seu interior, dão alguma animação aos passeios que, também eles, anseiam por sentir os saltos dos sapatos acariciar-lhe a pele. A ausência do ruido dos aviões, que passavam, por cima da cidade, a caminho do aeroporto, contribui para um silêncio que nos desassossega. Esse desassossego tem estimulado a minha criatividade de uma forma diferente da habitual e alterado o tema sobre que versa, sobretudo a minha poesia, levando-me as escrever mais sobre temas introspetivos. Os carros passam, espaçados, sem fazer fila e sem as buzinadelas tão características do excesso de trânsito. Esta é a fotografia de uma Lisboa, sem turistas, com os hotéis vazios e os restaurantes a meio gaz. É a fotografia de uma cidade contida, fechada sobre si própria e receosa de acolher os seus admiradores. Apenas o Cristo Rei mantém os braços abertos, pois a cidade cruzou-os, esperando por dias melhores.
Não sou nostálgico, caraterística que te atribuis, mas confesso que tenho saudades de ver a minha cidade vibrante. Com os dias cheios de uma vida que se prolonga pelas noites, no Bairro alto ou na Mouraria e apenas se aquieta pela madrugada. Tenho saudades das celebrações e das festas. Anseio pelos concertos e pelos teatros cheios. Sim tenho saudades…. Tenho saudades de ver a minha cidade viva!
Tenho saudades de receber os meus amigos em minha casa e de viver a amizade e a festa da partilha, sentados à volta de uma mesa farta e regada com um bom vinho. Tenho saudades das conversas fúteis ou das discussões acesas, mas sem vencedor, que terminam numa gargalhada amiga.
Enquanto espero por tudo isso escrevo cartas, na expetativa de criar novos amigos, com quem partilhar, embora à distância, o prazer de escrever e comunicar.
Espero pela tua resposta, na volta do correio e despeço-me com um abraço amigo.
Lisboa, 17/11/2020
Manuel Mota