Cartas e depoimentos na pandemia – Carta 4

Lisboa, 16/11/2020 (Portugal)

Olá Rogério,

Tomo a iniciativa de te escrever esta meia dúzia de linhas, na esperança de receber notícias tuas. Fiquei entusiasmado com o facto de seres professor de língua portuguesa, pois ela é a nossa língua mãe e existem poucas coisas que me deem mais prazer do que dar-lhe uso, nomeadamente, através da escrita. Este entusiasmo cresceu ainda mais ao perceber o teu gosto pela poesia e pela escrita em geral. No entanto, a par com este entusiasmo invadiu-me uma grande tristeza. Uma tristeza que resulta desse enclausuramento a que sujeitas o resultado do teu gosto pela escrita. O produto da inspiração que vertes sobre o papel ou sobre a tela branca do computador. Não prives o mundo daquilo que pode muito bem ser uma obra de arte e um oceano de criatividade. Deixa que o mundo beba os teus poemas, para poder apreciá-los e criticá-los e com isso te ajudar a crescer, como poeta e escritor.

Desculpa o atrevimento e a ousadia de te lançar este desafio, mas faço-o porque já passei por uma situação semelhante. Durante muitos anos comportei-me assim: escondi aquilo que escrevia do mundo. Ou pior ainda: fechei-me e não deixei a criatividade crescer dentro de mim, exprimindo-se das mais variadas formas. Era como se uma pandemia se espalhasse sobre a minha escrita, confinando-a. Até que um dia me libertei dessas amarras e escrevi. Escrevi que nem um louco! Coloquei no papel as histórias que tinha guardado apenas para mim e saiu o meu primeiro livro. Foi uma experiência fantástica, a que se seguiu uma grande desilusão, pois, apesar de publicado por uma editora e tinha várias interessadas nessa publicação, não teve grande sucesso.

Cometi muitos erros de escrita, nessa primeira obra, mas o erro maior foi ter a expetativa de alcançar o sucesso. Infelizmente, ser um escritor de sucesso não depende apenas da qualidade da nossa escrita ou da verosimilhança da história que relatamos. Existem fatores completamente externos ao processo criativo, aos quais não vou dedicar nem uma palavra nesta carta. Direi apenas que aprendi uma grande lição: passei a escrever para minha satisfação pessoal e a divulgar o que escrevo sem grandes expetativas. Isso fez nascer o meu blog.

Seguramente que ainda cometo erros, mas estou neste processo também para a prender. Eu próprio, quando volto atrás e releio os meus primeiros escritos, noto que existem diferenças significativas. Isso deixa-me triste pelos erros que cometi, mas simultaneamente, deixa-me orgulhoso pelo quanto aprendi. Naturalmente, que isso se deve a um processo de aprendizagem e evolução que apenas acontece se escrevermos e dermos a conhecer aquilo que escrevemos, mas também se tivermos o cuidado de aprender algumas técnicas.

No meu caso posso dizer-te que tenho cinco livros escritos, dos quais um foi publicado por uma editora e outro no meu blog, ao longo de oitenta e três semanas, pois publicava um capítulo por semana. Para além disso, tenho no meu blog quatrocentos e cinquenta e sete publicações e procuro fazer três por semana. Escrevo um pouco de tudo e a melhor forma de saber exatamente o que escrevo é ir ao blog (O pensamento escrito).

Não estou preocupado com o número de seguidores, que no blog são poucas dezenas. Embora na página do Facebook tenha alguns milhares, a verdade é que são muito poucos os que leem o que escrevo e raros aqueles que o comentam, mas eu escrevo para minha satisfação pessoal e partilho, para me desafiar a mim próprio, quer por ter a obrigação de publicar, quer por me sujeitar à critica.

O meu processo de aprendizagem e melhoria da escrita não passou apenas por escrever furiosamente e publicar o que escrevo. Optei também por tirar alguns cursos de escrita criativa. No princípio, foi um problema, porque não conseguia nunca conciliar a minha disponibilidade com os horários dos cursos. Isso ficou resolvido quando descobri os cursos online. Inscrevi-me no primeiro cheio de dúvidas e reticências, pois não sabia se ia ou não funcionar. Neste momento estou a concluir o quinto curso e estou muito satisfeito com o resultado. Estou na fase de fazer rescrita de vários autores conhecidos, portugueses e brasileiros e isso tem sido um desafio emocionante. Tenho aprendido muito nesses cursos, mas a minha evolução apenas foi possível, porque escrevo todos os dias. Como diz o meu orientador: os cursos apenas nos mostram o caminho, mas são as nossas pernas que têm de o percorrer e só depois de o fazer é que podemos declarar, com propriedade, que conhecemos o caminho

O contexto de quarentena em que vivemos não prejudica a minha criatividade, embora a limite. O problema que se levanta não está nem associado ao tempo que posso dedicar à escrita, nem à minha vontade em fazê-lo, mas antes às minhas musas inspiradoras. A verdade é que são os contactos com as pessoas, aos mais diversos níveis, que inspiram os meus livros e as minhas histórias e o facto de estar confinado à habitação reduz significativamente esses contactos. As minhas musas são as pessoas comuns, são a mulher de limpeza que conta o seu dia de trabalho, a uma amiga, no metropolitano, ou o homem da rua, que me aborda com uma história mirabolante, para me incentivar a abrir os cordões à bolsa, ou ainda a colega de trabalho que me fala das suas desventuras familiares.  A quarentena tirou-me isso e força-me a ir buscar outros motivos de inspiração, mas eu resisto e persisto e teimo em não deixar de escrever e publicar o que escrevo.

Da minha janela olho a cidade, hoje mais sozinha do que nunca. Está triste porque sente a ausência das pessoas. Sente a falta do sorriso das crianças que corriam nos jardins, soltando gritinhos de entusiasmo e excitação. Sentem a falta dos idosos, que jogavam às cartas ou ao dominó, enquanto trocavam umas balelas, sobre a vida ou recordavam, com emoção, o seu passado de sucesso. Sim todos tivemos um passado com sucessos, por mais relativos que estes possam ser considerados pelos outros: foram os nossos sucessos!

Um silêncio estranho invadiu a cidade, sobretudo nas horas de recolher obrigatório. Estranho não por ser diferente de outros silêncios, mas por ser incomum, por a ele não estarmos acostumados. Esse silêncio agride-nos porque está conotado com um vírus que faz soar os alarmes em todos nós. É esse mesmo silêncio que tento usar como fonte de inspiração, por oposição aos ruídos e contactos que outrora a despertaram. É nesse contraste que ancoro a minha inspiração para seguir escrevendo prosas ou poesias.

Espero que estas palavras singelas te tenham motivado a responder, dando-me notícias do que por aí se passa, fazendo com que o conhecimento que agora é apenas meu e teu, inicie o caminho para a universalidade.

Um abraço amigo

Manuel Mota

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