O CACHORRO

O CACHORRO

A sorte não lhes tinha sorrido e aquilo que podia ser um acontecimento normal na vida de uma família estava prestes a tornar-se numa desgraça e como uma desgraça nunca vem só, antevia-se o pior. Mãe e filha lutavam pela sobrevivência e pela convivência. Será que alguém as poderia ajudar a ultrapassar as dificuldades, no meio de tanta adversidade?

Muitos anos antes…

Paris acolheu-os de braços abertos. Roberto tinha sido nomeado, pela Companhia de Seguros Império, para dirigir a Imperio Assurance et Capitalisation e ele aceitara o desafio. Atrás levava os dois filhos, um casal com dois anos de diferença entre si e a esposa, que tinha conseguido uma colocação numa escola em Paris, para ensinar a língua portuguesa a emigrantes.

Estávamos no ano 1996 e tinham decorrido vinte anos desde que a família se tinha mudado de armas e bagagens para Paris. Em Portugal, apenas tinham deixado um pequeno apartamento, na zona de Setúbal, junto ao porto e na primeira linha de água. A vista de rio era algo espetacular!

Roberto era alto e bem constituído o que fazia dele um homem cobiçado. Joana, por sua vez era uma mulher interessante, sem ser bonita, mas tinha um corpo invejável. No entanto, o que a tornava verdadeiramente atraente, era o sentido de humor, por detrás do qual escondia uma inteligência e uma sagacidade acima da média. Eram ambos pessoas alegres e muito dadas ao convívio social. Roberto acrescentava a estas caraterísticas o seu gosto pela comida, sobretudo a boa comida. Era aquilo que se costuma designar um bom garfo, mas também um garfo exigente. Como fazia acompanhar o prazer da comida com o da bebida, os últimos vinte anos tinham-no tornado num homem corpulento. Eram um casal feliz apesar das divergências, sobretudo devido a uma ou outra aventura de Roberto, que não tinham sido suficientes para abalar a solidez do casamento, sobretudo graças à Joana.

Tinham acabado de regressar de férias em Portugal, fazia uma semana e já Roberto andava num virote. A pressão era cada vez maior, sobretudo desde que tinha sido anunciada a venda da empresa. Ninguém tinha falado com ele, mas era óbvio que seria despedido. Isso tirou-lhe o sono. Eram cinco da manhã quando a dor o atingiu como um raio. Tinha passado a última hora acordado, com uma ligeira indisposição. Isso já lhe tinha acontecido outras vezes, mas aquela dor era novidade. À segunda alfinetada percebeu que se passava algo de muito grave. Acordou a família e foi o filho Pedro que o levou para o hospital. Tinha acabado de ter um AVC de alguma gravidade. Isso foi o princípio do fim!

Embora contra a sua vontade, foi forçado a negociar um acordo de rescisão com a empresa e de um dia para o outro estava no desemprego. Entretanto, Joana conseguiu uma colocação numa escola de Setúbal e eles decidiram regressar a Portugal. Ainda antes de decorridos três anos, período após o qual seria submetido a uma junta médica, Roberto começou a trabalhar com um corretor de seguros. As coisas não correram como ele esperava, por um lado, porque o mercado Português era diferente do Francês, por outro, porque ele tinha ficado fisicamente limitado, depois do AVC. Depois de ter sido convidado a demitir-se do cargo de diretor, no segundo mediador onde arranjou trabalho, desistiu definitivamente. Tinha algumas poupanças, poucas, porque sempre tinha sido muito gastador, mas restava algum dinheiro da indeminização e isso, juntamente com o ordenado da esposa deveria permitir-lhe viver até à reforma.

Essa decisão teve consequências muito mais perversas do que o expetável. Roberto, tornou-se um homem diferente, assim que deixou de trabalhar. Passou a implicar com tudo e com todos. Estava sempre insatisfeito e de mau humor. Para agravar ainda mais as coisas, sentia que não tinha obrigação de fazer nada e eram as mulheres que cuidavam dele e da casa. Joana começou a questionar esse tipo de comportamento e a relação azedou. Entretanto, a filha, apesar de muito inteligente, perdeu completamente o rumo e não conseguiu terminar os estudos nem encontrar um emprego que fosse capaz de desempenhar com interesse e eficácia. Havia uma única coisa para a qual sentia vocação: tomar conta de velhinhos. Como não tinha formação específica para isso, começou a trabalhar com dama de companhia ou empregada doméstica. Quanto ao irmão, esse havia casado, fazia algum tempo e vivia em Lisboa.

Esta circunstância, benéfica para a Mariana, veio agravar o estado das coisas lá em casa. A verdade, é que as duas mulheres chegavam a casa cansadas do trabalho e ainda tinham que fazer a lida da casa e as refeições, para além de aturar o mau humor do Roberto. A filha discutia abertamente com o pai e Joana, fazia um esforço monumental para conviverem debaixo do mesmo teto em harmonia. Bom era mais em desarmonia! A situação de conflito acabou por levar Roberto a descurar o seu estado desleixando-se a tomar a medicação e teve novo AVC. Isso aconteceu por volta da altura em que tinha atingido a idade da reforma. Depois de uns dias de sofrimento e incerteza a família recebeu a notícia: Roberto tinha ficado paralítico! Era um mau resultado, mas para quem tinha estado às portas da morte era uma vitória. Roberto não via isso dessa forma e declarou guerra ao mundo. A vida tinha-lhe definitivamente virado as costas. Ele tinha sido um homem importante e tinha ganho muito dinheiro o que lhe permitiu ter muitos amigos. Quando perdeu o emprego percebeu que os amigos não eram mais do que companheiros de oportunidade, ou seja, uns oportunistas. Foram duas derrotas em simultâneo: foram-se os amigos e o emprego. Ficar em casa, sozinho, enquanto a mulher e a filha iam trabalhar trouxe ao de cima o pior de si, mas quando ficou preso a uma cama a revolta tomou conta dele. A esposa de Pedro, que era assistente social, recomendou que trouxessem um cão lá para casa, tanto mais que Roberto adorava cães. Foi assim que o Neo, um pudle macho, se tornou o quarto habitante da casa, no ano 2007.

O cão, nos primeiros tempos, foi mais uma dor de cabeça para as mulheres, pois tinham de cuidar deste, para além de cuidar do Roberto. Surpreendentemente, o relacionamento entre eles melhorou muito, pois Roberto afeiçoou-se de tal forma ao pudle, que a sua companhia o acalmava, tendo-se tornado uma pessoa muito mais conformada e menos rezingona.  Como que por milagre, a harmonia tinha voltado aquela casa e as mulheres bendiziam a hora em que cão tinha entrado porta adentro. Joana, sendo três anos mais nova do que ele, quando Roberto ficou acamado, tinha começado a pensar em antecipar a sua reforma, mas, com o serenar das coisas lá em casa, preferiu manter-se a trabalhar: era bom para a sua sanidade mental, embora fosse exigente fisicamente. No entanto, o destino é um novelo que se enrola e desenrola dando nós que não conseguimos nem antecipar, nem entender, mas, sobretudo, não conseguimos desatar.

Mais ou menos por volta da mesma altura, Mariana começou a sentir algumas dificuldades de locomoção e iniciou uma peregrinação pelos médicos. No entanto, por mais exames que fizesse, não conseguia perceber o que se passava com ela. As culpas caiam sobre o pé esquerdo, que já tinha sofrido várias intervenções, por causa dos joanetes, mas a verdade é que, fosse essa ou não a causa verdadeira, os médicos não conseguiam encontrar a cura. Era mais uma preocupação para Joana.  A situação da Mariana foi-se degradando ao longo do tempo e de forma acelerada. Quando chegava o fim do dia, altura em que estava mais cansada, ela tinha crises, onde dizia coisas sem nexo, que a família associou à bebida. Quando ela começou a cair com frequência o pai foi inexorável!

«Essa rapariga chega ao fim do dia bêbada e depois é isto!»

Mariana protestava. A verdade é que lhe sabia bem beber umas cervejas, mas também era verdade que a quantidade que bebia, não justificava o nível de alcoolização implícito nos sintomas.

«A minha irmã tem algum problema para além do identificado no pé. Ela não bebe o suficiente para ter esse tipo de comportamento.» Dizia Pedro.

«Dizes isso porque não és tu quem tem de a aturar!» Dizia o pai irritado.

Pedro ignorava-o. Era o melhor a fazer, pois na verdade ele não aturava ninguém o resto das pessoas da casa é que tinham de o aturar. Entretanto, os factos sucederam-se em avalanche. Joana reformou-se no final de 2010. Ter tempo para ficar em casa e cuidar do marido e da filha, sempre lhe tinha parecido algo que resolveria todos os problemas, mas quando isso aconteceu o resultado não foi o esperado. Estar em casa desocupada e ter de responder às solicitações de Roberto tornou-se um pesadelo.  Três meses depois de se ter reformado o problema de Mariana foi, finalmente, diagnosticado: tinha esclerose múltipla degenerativa. O diagnóstico veio quando ela já estava num ponto em que não conseguia trabalhar de forma sistemática. Em consequência, passou a ser, de forma ocasional, dama de companhia de pessoas idosas. Nessa altura a família compreendeu muitas das reações da Mariana, que até aí tinham sido incompreendidas ou, simplesmente, atribuídas à bebida. Tinham sido todos muitos injustos com ela, pois era a doença que provocava essas reações.

Ainda não tinham digerido completamente a notícia da doença da filha, pois tinham apenas decorrido dois meses, quando Roberto foi internado de urgência. Os médicos não conseguiam perceber o que se passava com ele, mas a verdade é que tinha desenvolvido uma septicemia. Ao fim do primeiro dia de internamento ele foi colocado em coma induzido e as máquinas passaram a assegurar as suas funções vitais. Foram três dias se sofrimento e angústia. Joana não conseguia dormir, sem sonhar com os piores cenários e a morte do esposo ensombrava-a, apesar de ele ainda estar vivo. O quarto dia de internamento colocou um ponto final no sofrimento, embora o fim não tivesse sido o mais desejado. Roberto tinha falecido devido à ação de uma bactéria, apanhada no próprio hospital, onde tinha dado entrada em busca da cura. Mãe e filha fizeram o luto. A dor foi intensa e profundamente sentida, mas quem estava mais inconsolável era o Neo.

O cachorro não tinha comido desde que Roberto tinha sido internado e deitava-se à entrada da porta, aguardando pelo seu regresso. A ligação entre os dois era de tal forma profunda que o animal queria morrer com o dono. Mariana deitava-se ao lado do cachorro e chorava com ele, partilhava a sua dor com este, de tal forma que o cachorro acabou por dividir a sua com ela. Antes de Roberto ir para o crematório elas levaram o cachorro para ver o dono. Neo estava ao colo da Mariana. Cheirou o dono durante algum tempo e depois virou-se para esta, colocando as patas dianteiras à volta do seu pescoço. Desde esse dia não voltou a dormir junto à porta de entrada e concentrou as suas atenções na Mariana.

Mãe e filha tiveram de aprender a viver sem o esposo e o pai, o que foi mais difícil do que seria expetável, dado que este representava um peso morto para elas. Lidar com o sofrimento ao nível psicológico representou uma dor muito superior ao alívio do trabalho físico que a partida de Roberto tinha proporcionado. Com o tempo ultrapassaram a dor da perda, mas uma maior sobreveio. Elas tiveram de aprender a viver uma com a outra.

As crises de lucidez de Mariana, aumentaram de frequência e de gravidade. O pior de tudo era que ela dizia e fazia coisas de que depois não se recordava, tornando-lhe impossível perceber o porquê da reação da mãe, no momento em que recuperava a lucidez. Esse era um dos efeitos da doença e, por sinal, o mais complicado de gerir, pois punha em causa um relacionamento são entre as duas. Neo parecia compreender o que se passava e fazia de elo de ligação entre as elas. Era impressionante a forma como tentava colocar as duas na mesma divisão, quando elas estavam zangadas uma com a outra. Parecia um ser humano, fazendo a ponte entre elas. O resultado era quase sempre positivo.

Os últimos nove anos tinham sido muito difíceis. Mariana piorava a olhos vistos e, recentemente, tinha ficado numa cadeira de rodas, ao mesmo tempo que Joana envelhecia física e mentalmente, inibida de fazer férias ou passeios com as amigas, porque tinha de ficar em casa e cuidar da filha. O ano de 2020 tinha sido especialmente difícil, não só por ter sido o da imobilização definitiva de Mariana, mas por causa da pandemia. Eram ambas pessoas de risco e estar literalmente confinadas em casa estava a ser muito difícil. Neo, continuava o seu trabalho incansável, saltado alegremente entre as duas e puxando-as uma para a outra. Quando a doença foi diagnosticada a casa veio abaixo: o pudle tinha um cancro nos intestinos, que já se tinha espalhado pelo resto do corpo. Elas estavam demasiado frágeis para conseguir resistir a mais uma perda. Pedro comentou o facto com a esposa e a resposta surgiu no mesmo momento.

«Tens de lhes oferecer outro cão.»

«Mas eles já têm o Neo!»

«Não estás a perceber. Tens de lhes oferecer um cachorro e elas têm de se afeiçoar a ele antes do Neo morrer. Elas não podem olhar para o novo cachorro como um substituto do Nero, mas como mais um animal para cuidarem.»

«Estou a entender. Assim quando o Neo morrer elas vão continuar a cuidar do cão e não vão associá-lo à morte do Neo.?»

Era exatamente essa a ideia. Pedro não perdeu tempo e no Natal de 2020 a mãe e a irmã receberam um cão d’água que se chamava Prime. Os dois cães entenderam-se muito bem. O Pudle parecia saber que o Prime era o seu substituto e tratou de o educar na sua tarefa. Por sua vez o Prime entregou-se de alma e coração à tarefa, embora, sendo ainda bebé, tivesse muito que aprender.

O ambiente em casa tinha-se tornado pesado e Mariana estava impossível de aturar. Joana chorava pelos cantos da casa. Chorava de desespero por não conseguir a melhor relação com a filha, mas chorava também, em antecipação, a morte de Neo. O cachorro foi recebido com alguma resistência, sobretudo pela Mariana, mas ao fim de duas semanas estavam ambas apaixonadas pelo animal. Joana adorava a raça e recebeu o cachorro como uma bênção. A alegria que aquele animal trouxe à casa era indescritível, sendo apenas superada pela harmonia que passou a reinar entre aquelas duas almas desesperadas.  O cão não tinha sido barato, mas Pedro considerava-o como um investimento para a saúde mental da mãe e da irmã e consequentemente da dele. Mais uma vez, tinha sido um cachorro a salvar a situação. 

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