Cartas e depoimentos na pandemia – Carta 15

Lisboa, 03/12/2020 (Portugal)

Olá Hope,

Espero que os exames tenham corrido de acordo com as expetativas e te encontres bem. Por aqui sorrisos e alegria por ter recebido a tua carta.

Aproveito um momento de pausa, no meio do lufa-lufa que é o meu dia, para depositar na tela estas palavras. Escrever é sempre um prazer, mas escrever a pensar numa determinada pessoa, é uma sensação diferente, porque se misturam outros sentimentos. Imagina-se a pessoa que está do outro lado e procura-se, ao mesmo tempo que te dás a conhecer, perceber como podes ajudá-la com as tuas palavras. Ajudar é o termo correto, pois a nossa postura na vida deve ser, efetivamente, ajudar os outros, mesmo quando estes não pedem ajuda ou, de forma ingénua, julgam não necessitar dela. Uma ajuda pode significar despir a camisa para agasalhar quem precisa, mas pode também ser, simplesmente, um ombro para poisarmos uma cabeça atribulada, ou um ouvido para depositarmos aquele alvoroço que nos atormenta. Comecei filosófico, mas se existe alguém com capacidade para me entender és tu.

Está um dia lindíssimo e o sol bate na minha janela, aquecendo o escritório. Trabalho a partir de casa e o espaço que era antes reservado para os momentos de leitura e escrita, são o meu poiso durante doze a catorze horas diárias. O outono convida ao recolhimento, os tempos que vivemos recomendam-no e as autoridades ordenam o mesmo. Tudo somado estamos em casa. Confinados fisicamente, mas com a possibilidade de fazer do mundo o nosso palco, dando asas à nossa imaginação e criatividade.

Gostei de ler a tua carta. Deixei que ela me alimentasse com os pequenos pedaços de informação sobre ti, como um homem esfomeado deliciando-se com uma fatia de pão fresco. Devorando-a e saboreando-a, em simultâneo. Lia e relia, apreciando cada palavra para, entendendo o que dizias, poder perceber o que não escrevias. Foi um desafio interessante. Se o superei? Não sei. Tu me dirás.

Dizes que te vi por dentro e sem preconceitos, ainda bem. Para mim é o que vai dentro de cada um que o define, mas percebo as questões que muitas vezes se levantam em relação à “embalagem”. Será que quando as pessoas vêm a tua imagem criam esse preconceito, que mencionas e deixam de ver o interior com a clareza que eu vi, ou és tu que o sentes dessa forma? Num diálogo ou numa relação existem sempre duas leituras: aquela que o emissor pretende transmitir e a que o recetor escuta. O problema pode não estar na mensagem, mas na descodificação da mesma. Podemos falar um pouco sobre isso?

Eu não tenho problema nenhum em conviver com a idade, raça, cor de pele, “conceito de beleza” ou mesmo deficiência física. Nos primeiros tempos em que lecionei, ainda na licenciatura (hoje só leciono no mestrado), tive um aluno invisual, integrado numa turma de alunos não invisuais. Foi um desafio monumental, mas nunca foi um problema para mim. No entanto, foi um problema para os colegas. Eles tiveram dificuldade em aceitar que existia uma grande diferença entre ele ser beneficiado, pela sua deficiência e essa ser reconhecida e integrada na sua avaliação. Por outro lado, ele também teve de entender que se estava integrado numa escola, que não era especial para invisuais e se queria o diploma dessa escola, tinha de cumprir os requisitos para o ter. Resultado final: tive a melhor avaliação do ano, entre todos os professores, dos cinco anos de licenciatura (a avaliação é dada pelos alunos). Aceitar as pessoas, com as suas caraterísticas e a sua personalidade, requer um grande esforço de nós, mas nunca deverá passar por palmadinhas nas costas ou outro facilitismo. Estou pronto e disponível para ver o exterior com a mesma clareza de espírito com que admirei o interior, mas apenas quando estiveres pronta para isso.

Deixa-me efetivamente muito feliz que tenhas gostado da minha carta e que, de alguma forma, ela tenha sido portadora de satisfação e prazer. Espero continuar a fazê-lo com esta e outras cartas, mas sobretudo, espero que entendas, que apesar da distância que nos separa eu te ajudarei no que puder e quando puder, se assim o desejares. Essa é a minha missão: ajudar. No entanto, devo dizer-te que é muito mais difícil do que parece. Por incrível que possa parecer o maior obstáculo não está na disponibilidade da pessoa que ajuda, mas na da pessoa ajudada. Já me aconteceu muitas vezes, quer com alunos meus, quer com alunos do programa de mentoring. Infelizmente, a disponibilidade de muitos só vai até ao ponto em que tu estás disponível para os ajudar através da famosa “cunha”. Quando lhes dizes que isso não é possível, mas que estás disponível para os ajudar a crescer, profissionalmente e lhes mostras o quanto isso exige deles, a disponibilidade desaparece, como que por milagre. Quando tens a sorte de ter alguém que te ouve, mas que argumenta contigo, te faz ver o seu ponto de vista e que trabalha para o pôr em pratica, como é o caso de uma mentee, que tenho neste momento, a sensação de realização é algo indescritível.

Dizes que gostavas de me ter tido como mestre, eu respondo: Não estou seguro de te poder ensinar muita coisa, mas se queres que eu te ajude na caminhada da vida, podes contar comigo. Via carta, email ou videoconferência. Eu consigo perceber a tua força interior quando dizes que não perdeste a capacidade de ir atrás dos doces que a vida te pode dar, ainda que carregando com o peso das cicatrizes com que ela mesma te marcou. Essa demonstração de força faz de ti uma grande pessoa. Se essa pessoa também será capaz de realizar coisas grandes, depende, em grande parte, das tuas escolhas. Nota que não caminhamos nunca sozinhos e que todos os grandes homens ou grandes mulheres se rodearam de uma equipa que os apoiou e aconselhou. Eu gostaria de acompanhar-te na tua caminhada pela vida, enquanto tiver clarividência para o fazer.

Terminou o intervalo do almoço. Fico por aqui hoje, despedindo-me com um abraço carinhoso. O mesmo que eu daria a uma filha. (espero que não leves a mal esta associação).

Manuel

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