Algures, milhares de anos antes da era Cristã
Olá Hades,
Espero que esta missiva te encontre bem, quer estejas sentado no teu trono, no mundo inferior, ou manejes os corcéis negros, que puxam o teu carro real, nas deambulações que fazes pela terra. Espero ainda que o tom da minha missiva não faça despertar a tua ira divina, pois não almejei mais do que ajudar-te.
O clamor é grande e os súbitos de Zeus, homens simples à luz do muito que existe para conhecer, mas verdadeiros sábios, à luz do pouco que se sabe na época em que me encontro, protestam contra a ação de Hades, que, mais uma vez, cobriu a terra com a sua veste negra, lançando a peste sobre os homens, mero artifício para atingir um fim pouco nobre: tornar o mundo inferior o mais populoso.
Aos curandeiros foi dado o conhecimento sobre as ervas, pedras, águas e outros produtos naturais, mas nem investidos desses poderes conseguem reduzir o sofrimento ou a mortandade, imposta pela peste. O fedor pétreo sente-se a léguas de distância, à medida que a peste avança e deixa um rasto de morte. Apenas os poucos que vivem completamente isolados conseguem escapar. Aqui, tal como num futuro muito longínquo, o confinamento parece ser a solução!
Dizes que não és responsável pela desgraça que se abateu sobre as gentes e talvez tenhas razão, mas és tu o único que beneficia com esta, por isso é fácil apontar o dedo. Talvez os deuses nada tenham a ver com isto e sejam os humanos os verdadeiros culpados. No entanto, no seu cardápio existem deuses para tudo, inclusive para provocar desgraças, como a que experimentam neste momento. Os humanos são frágeis, influenciáveis e ignorantes: o muito que existe para saber torna o que se sabe ínfimo, mas na sua soberba julgam-se conhecedores. Será essa mesma soberba que os vai levar à destruição! Mas não falemos do futuro, falemos antes deste momento. Infelizmente é um momento duro para a humanidade, mas as minhas viagens de 2020, apenas me permitirão visitar momentos duros e difíceis. Este é mais um dos que visitei ao longo do ano.
Queres saber do meu nome! Sobre isso apenas te direi que tenho muitos nomes. Um para cada local que visito, no passado ou no futuro. Isso torna o meu nome irrelevante. Eu sou apenas um viajante, um contador de histórias, mas estas nunca são reveladas ao mundo por mim, mas antes pelas pessoas a quem as consigo contar, por isso, o meu nome permanecerá esquecido. Assim, tal como Ulisses disse a Polifemo, eu te direi: quem te conta esta história “é ninguém”.
Perguntas-me por Perséfone, no entanto vejo nessa tua pergunta alguma perfídia. O teu acordo com Zeus e Deméter foi claro: Perséfone reinaria contigo seis meses, em cada ano e passaria os restantes com sua mãe, no Olimpo, onde seria chamada pelos restantes deuses ctónicos, de Koré. Por isso, me pergunto porque sentes necessidade de disfarçar as tuas viagens pela terra sob a capa de uma busca desnecessária? Essa artimanha para enganar os humanos não será o disfarce perfeito para poderes espalhar o mal pelo mundo? Ainda que o não seja, a suspeita é legítima.
Deixo no ar a pergunta a na boca dos humanos a dúvida. Neste momento particular o mal que grassa pela terra não me afeta. Estou no passado e aparentemente todos os males do passado não nos afetam no futuro, seria de outra forma se estivesse no futuro. Assim, caminho entre os humanos, no papel de curandeiro, ajudando todos os que consigo, numa tarefa que tem demonstrado ser inglória. O mal que os afeta dilacera-lhes a carne e o poder antissético das ervas e plantas, sem qualquer transformação química, não é suficiente para resolver o problema. Apenas os que ainda não sofreram na carne o mal que grassa, têm salvação.
Deixas-te no ar uma pergunta curiosa, sobre a justiça que a história faz aos Deuses. Eu concordo contigo, embora por razões distintas. Por aquilo que me tem sido dado observar, nas minhas viagens, os deuses nada têm a ver com o que se passa no mundo. Isso é tudo obra dos humanos, começo, inclusive, a suspeitar que até os deuses são obra dos homens. Inventaram-nos para justificar aquilo que não conseguem explicar e como forma de os mais fortes subjugarem os mais fracos, submetendo-os a uma suposta vontade divina, que mais não é que a sua própria vontade, ditada pela satisfação dos seus desejos. Assim se legitimam, igrejas, reis e outros líderes!
Estou cansado de caminhar, mas, sobretudo, de caminhar por entre mortos e através do cheiro fétido de corpos em decomposição. Preciso encontrar um sítio para repousar. Um sítio onde esteja a salvo dos salteadores que aproveitam a confusão e a desordem para levar tudo o que podem, para em seguida abandonar os despojos, pois a peste venceu-os também.
Antes de me recolher, despeço-me com um abraço.
O Viajante do Tempo