A AMIGA DA ONÇA

A AMIGA DA ONÇA

Sónia e Hugo tornaram-se inseparáveis. Unia-os um segredo. Um segredo que dava uma cumplicidade à relação, incompreendida pelos outros. Comportavam-se como dois irmãos, mas, tendo ascendências distintas, os amigos desconfiavam e achavam a relação estranha.  Naturalmente que o facto de o Hugo passar muito tempo em casa dela dava asas à imaginação dos amigos e colegas. Eventualmente, acabaram por lhes atribuir muitos rótulos, destacando-se o de “amigos coloridos” ou mesmo namorados. Eles sorriam, indiferentes e continuavam a sua vida, sem dar justificações.

Lurdes era uma jovem alta e atlética. Não era bonita, mas era possuidora de um corpo demolidoramente escultural. O que lhe sobrava em físico faltava-lhe em segurança e força mental. Tinha passado um mau bocado com a separação dos pais, tendo inclusive estado à beira de perder um ano. Foi nessa altura, tinha ela dezassete anos, que Sónia se tornou, primeiro colega de turma e depois de equipa. Não eram propiamente as melhores amigas, mas tinha sido através da Lurdes que Sónia conheceu o Pedro.

Tudo tinha começado há quase dois anos. A equipa ia participar num torneio em Évora e o Pedro, que era pai da Lurdes, sendo um homem só, decidiu acompanhar a filha e, consequentemente, a equipa. Lurdes, como adolescente que era, sentia-se incomodada com a presença do pai e afastou-se dele. Era o único pai que tinha ido acompanhar a equipa e isso deixava-a constrangida. Afastava-se não por ter vergonha dele, mas porque queria divertir-se sem estar sob o olhar atento e critico do pai. Pedro parecia um cachorro abandonado, sentado no bar do hotel. Isso funcionou como um duplo íman para Sónia: Um homem mais velho e abandonado. Ela tinha vocação para causas perdidas! Pedro era um ano mais velho que a mãe de Sónia e apesar de ser um homem charmoso, sentia-se o homem mais feio do mundo. Sónia, no entanto, via-o com outros olhos. Não o conseguia ver como um pai: via-o como um homem. Um macho ao lado do qual gostava de estar. O fracasso do casamento tinha-lhe destruído a autoestima e ele ainda não se tinha erguido. Apesar do que lhe ia na alma, Sónia viu uma pessoa completamente diferente. Viu um homem jovial e bem-humorado que conseguia fazer rir quem estivesse à sua volta. Viu um homem bonito. Os cabelos e barba claros, e os olhos azuis, eram uma imagem de marca. O seu rosto emanava uma calma e um charme que exerceram de imediato um grande fascínio sobre ela. A esse fim de semana seguiram-se vários encontros e não tardou nada tornaram-se amantes. Fora ele quem pedira para manter o segredo sobre a realção, com medo da reação da filha e Sónia, embora a contragosto, cedeu.

Apesar de os pais terem decidido juntar-se a convivência não era fácil. Lurdes, ignorante de que a amiga tinha sido a amante do pai, durante mais de um ano, ia-lhe relatando o ambiente lá de casa. Ao princípio Sónia escutou-a sem fazer comentários, mas ao fim de algum tempo aquilo começou a fazer-lhe mal. Sentia-se mal por a amiga lhe contar algo que nunca contaria se soubesse da relação que tinha tido com o pai dela, mas o pior de tudo é que começou a alimentar esperanças. A relação não estava nada bem e aparentemente isso resultava do facto de Pedro não ter esquecido a mulher com quem tinha andado, enquanto estiveram separados. Pelo menos essa era a versão dos factos de Lurdes. Gradualmente, Sónia, foi-se afastando de Lurdes, apresentando desculpas para um afastamento, cuja verdadeira razão não podia apresentar.

Elisa começava a pensar que ter retomado a relação com o Pedro tinha sido um erro. Fora ela que se deixara encantar por um homem mais novo, que tinha acabado por ser uma grande desilusão. Fora ela, também que, depois da relação ter terminado, concluiu que continuava apaixonada pelo ex-marido, que parecia continuar livre, mas com a vida bem resolvida. No entanto, ao fim de alguns meses de vida em conjunto ela percebia que ambos tinham mudado. Ele tinha-se tornado um homem mais exigente e já não aceitava ficar em segundo plano como dantes. Reclamava para si uma partilha das luzes da ribalta que ela tinha dificuldade em aceitar. Elisa, agastada com a desilusão dele, mas também ela desiludida com o desfecho das suas relações encontrou conforto nas amigas. Saía cada vez mais com o seu grupo, sobretudo com a Celeste, que era a mais disponível e aquela cuja companhia apreciava mais. Isso fez com que rapidamente Celeste se tronasse a sua confidente. Chorou várias vezes no ombro da amiga e esta confortava-a carinhosamente. Era uma amiga extremosa.

Pedro tinha deixado Sónia sem hesitação. Elisa era e sempre fora a mulher da sua vida, por isso, quando, após alguns encontros com a mãe da sua filha, em que tudo foi bom, quer a conversa, quer o sexo, achou que lhe tinha saído a sorte grande, pela segunda vez e não hesitou. Agora, passados alguns meses, sentado no café, com o copo de cerveja na sua frente, olhava o infinito com uma expressão plena de dúvidas. Tinha saído do emprego mais cedo, mas ao invés de ir para casa, tinha-se sentado numa das muitas esplanadas da Duque D’Ávila a pensar na vida. O seu coração batia forte cada vez que o pensamento voava para Sónia. Cada dia estava mais convencido que tinha sido um erro deixá-la, mas, apesar disso, estava convicto de que a relação estava definitivamente terminada. Ela até poderia perdoar-lhe o facto de a ter deixado, mas nunca lhe perdoaria a traição. Ter continuado com ela, quando já tinha regressado aos braços da Elisa, tinha sido um erro. Essa certeza doía-lhe muito mais do que tinha imaginado ser possível. No entanto, não era esse sentimento que o afastava de Elisa. Ambos tinham mudado. Ele tinha provado de uma relação mais igualitária e o que Elisa lhe dava deixou de ser suficiente. Por seu turno, Elisa tinha conhecido e convivido, ainda que apenas por um par de anos, com uma alma gêmea de interesses e conviver com alguém que não os comungava tornava-se insuportável.

Nesse dia, quando chegou a casa, tudo terminou com uma conversa amigável que se traduziu numa convivência saudável. Da primeira vez separaram-se sem se divorciar, da segunda nem sequer se separaram: decidiram viver juntos, vidas separadas. Estavam bem ao lado um do outro como amigos, embora não soubessem viver como amantes. Para além de tudo mais, existiam os aspetos financeiros que o divórcio trazia consigo e que eles não pretendiam resolver de momento. Era um compromisso que fazia sentido para duas pessoas que não se amavam, mas se respeitavam.

Lurdes sofreu com a rotura dos pais. Ela tinha a clara noção de que a relação a que os pais se propunham era insustentável e que mais cedo ou mais tarde eles encontrariam alguém que acabaria por os separar. Isso tolhia-a. Faltava-lhe força mental para aceitar os factos e seguir em frente. Este era o tipo de brecha explorada pela sua falta de força mental. Ela enredava-se em pensamentos e cenários negativos cujo desfecho tentava em vão alterar. Criava uma espécie de realidade paralela que lhe absorvia as energias e a transportava para um mundo frágil e, portanto, suscetível a más influências. Era uma realidade perigosa para o mundo atual.

Sónia soube por casualidade. Escutou uma conversa de balneário. As colegas de equipa comentavam a ausência de Lurdes e a razão da mesma surgiu naturalmente. Sónia sentiu um choque. Tinham passado seis meses desde que Pedro a tinha deixado e ela tinha jurado não o querer de volta, mas sabê-lo livre não lhe foi indiferente. Abandonou a balneário à pressa. Não queria saber mais nada. Aquele era um conhecimento que lhe fazia mal! Tinha de esquecer aquele homem. O que ele lhe tinha feito era imperdoável, ou talvez fosse apenas ela que não o conseguia perdoar.

Ao fim do dia o Hugo deu-lhe boleia, pois ia jantar lá a casa. Ele e a mãe dela estavam nas nuvens. Conheciam-se há seis meses, mas era como se se conhecessem desde sempre. Cada dia que passava descobriam que gostavam mais um do outro. A paixão continuava intensa, mas o amor era real. A diferença de idades não era grande, embora as experiências fossem distintas, mas eles nem a sentiam. O destino tinha-os juntado e a comunhão de interesses amarrou-os. Ela não queria mais filhos e Hugo não os desejava. Adorava trabalhar com os jovens, mas não tinha paciência para crianças. Era algo muito estranho, mas interessante. Hugo tinha um jeito natural para lidar com jovens desde que tivessem mais de dezasseis ou dezassete anos, mas não conseguia lidar com as crianças ou os adolescentes mais jovens. Era um facto incontornável e ele não o disfarçava ou escondia, embora não se sentisse propriamente orgulhoso disso.

Foi ao jantar que Sónia deu a notícia. A mãe e o Hugo ficaram em silêncio, até que o olhar de Sónia suplicou um comentário.

«Como estás a lidar com essa informação filha? Estás bem?»

Sónia encolheu os ombros sem saber bem o que dizer.

«Não posso dizer que tenha ficado indiferente. Mas o que o Pedro me fez não tem perdão. Ele traiu-me!»

«Eu sei filha, mas o que é realmente importante é saber o que sentes por ele e o que ele sente por ti. O amor é algo muito poderoso e lutar contra ele é um erro que normalmente se paga muito caro.»

Ninguém disse mais nada e Hugo segurou-lhe uma das mãos secundando Júlia, que segurava a outra.

A noite foi muito intranquila. Sónia levou tempo a adormecer e quando isso aconteceu foi tomada por um sono agitado que não lhe permitiu descansar devidamente. A seguir ao almoço não tinha aulas e por isso decidiu ir até ao lago do Campo Grande. O ISCTE ficava ali ao lado e ela gostava de dar uma volta ao lago no barco a remos, quando precisava de pensar. Os barcos estavam todos ocupados e ela sentou-se na relva. Não era a mesma coisa, mas tinha de servir. Abandonou-se aos pensamentos sem se preocupar com o que a rodeava. A primeira vez que ouviu o nome dela foi como se estivesse num sonho e alguém o pronunciasse lá ao longe. Depois a voz soou mesmo ali ao seu lado.

«Sónia!»

Pedro estava mesmo à sua frente com a surpresa estampada no rosto. Tinha pensado nela a manhã toda e decidiu matar saudades de um lugar que para ele estaria para sempre associado a ela. O que não estava à espera era de a encontrar ali. Sónia corou até à raiz dos cabelos. Estava a pensar nele, sonhando acordada e quando despertou ele estava mesmo à sua frente.

«Olá Pedro. Estava longe de te encontrar aqui.»

«Também eu, mas ainda bem que te vi. Preciso de falar contigo.»

«Pedro, nós não temos nada para falar. O que existia entre nós morreu no momento em que me traíste, estando comigo depois de teres voltado para os braços da tua mulher.»

Era triste, mas era a verdade. Ele percebeu a convicção dela, apenas pela expressão do seu rosto.

«Espero que sejas verdadeiramente feliz, ainda que não seja comigo.»

Depois destas palavras Pedro deu meia volta e desapareceu. Sónia ficou a olhar para ele parada. As pernas tremiam e o coração chorava, mas era melhor assim.

Lurdes tinha visto o pai a passar ao lado do edifício do ISCTE e seguiu-o para ver onde ele ia. Ela estava desconfiada que ele tinha arranjado uma namorada. Quando chegou ao Campo Grande ele estava a conversar com a Sónia. Eles sempre se tinham dado bem por isso o facto não tinha nada de extraordinário. Aproximou-se rapidamente e quando estava quase ao pé deles, tendo apenas uma árvore de permeio, escutou algo que a fez estancar. Seria possível que Sónia fosse a amante do pai? Então era ela a causadora da separação deles? Deu meia volta e desapareceu, sem ser vista.

Quando chegou à escola espalhou para todo o mundo a notícia. Sónia tinha sido amante do pai dela. Ela era a causadora da sua separação. A maioria das pessoas nem sequer questionou aquilo que ela dizia e simplesmente acreditou e de imediato julgou. No final do dia, quando Sónia chegou ao pavilhão, para treinar, notou que a maioria das colegas de equipa se afastaram, deixando-a isolada. As únicas duas que se juntaram a ela esclareceram-na. Elas tinham percebido que aquilo que a Lurdes contava não podia ser verdade. Sónia confirmou que tinha namorado com o pai de Lurdes, mas isso aconteceu muito depois dele estar separado. Elas perceberam pela expressão da colega o quanto a relação tina significado para ela que esta ainda o amava.

Lurdes foi muito mais longe e na faculdade apelidou-a de prostituta. Muitos tomaram o partido da Lurdes, mas outros tantos ficaram do lado da Sónia. Em todo o caso, o ambiente ficou estranho e nada ficou como dantes. Os amigos e conhecidos estavam divididos, como se fossem um país que se preparava para uma guerra civil.

À hora do jantar Lurdes não resistiu e acusou o pai de trair a mãe com uma colega dela. Elisa era uma mulher justa e esclareceu o que se tinha passado. Na verdade, tinha sido ela a apaixonar-se por um homem mais novo e com uma posição de poder semelhante à dela. Tinham tudo a ver um com o outro, apesar da diferença de idades. Fora ela que traíra o Pedro e isso fora a causa da primeira separação. Lurdes era mentalmente pouco forte, mas não era uma jovem má. Nessa altura percebeu o mal que tinha feito, mas já era tarde demais. Ainda assim, a mãe obrigou-a a contar a verdade ao maior número de pessoas possível.

As pessoas que a ouviram retratar não mudaram de opinião em relação à Sónia.

«A Sónia é uma prostituta, pois para andar com o teu pai de certeza que ele lhe pagou bem, mas tu és uma amiga da onça!»

O mal estava feito e era impossível de remediar. É fácil difamar alguém, mas quase impossível restaurar-lhe o bom nome.

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