Lurdes preferiu que fosse a Sónia a levá-la até à clínica, pois queria usufruir o máximo da companhia da amiga, felizmente naquele dia a mãe tinha-lhe emprestado o carro. A verdade é que se sentia envergonhada de estar naquela posição e a presença do pai dava a esse sentimento uma dimensão ainda mais desconfortável. Sónia prometeu visitá-la durante o tempo em que iria ficar internada, mas isso só seria possível ao fim de alguns dias. Entretanto, fez questão de visitar as instalações e de falar com alguns dos técnicos. A médica que a acompanhou, para além de simpática, foi muito prestável.
«O tratamento que proporcionam aos internados tem uma grande taxa de sucesso?»
«Nós garantimos que o corpo fica limpo, mas nem sempre conseguimos garantir o mesmo com a mente.»
«O que quer dizer com isso?»
«Embora dependa muito do grau de dependência das pessoas que acolhemos, a cura está sempre mais dependente da vontade deles do que de nós próprios. Primeiro é necessário que o indivíduo reconheça que tem um problema, depois é necessário que tenha vontade e resolver esse problema e, finalmente, é crucial que tenha a força de vontade para se manter afastado das drogas.»
Sónia percebeu que Lurdes estava apenas a dar o primeiro passo e que iria necessitar de muito apoio para evitar recaídas. Já lhe tinham chamado muitas vezes a mulher das causas perdidas, mas ela esperava ganhar esta.
«Acontece com frequência as pessoas não reconhecerem que têm um problema?» Perguntou Sónia.
O som da voz alterada chegou até elas sem qualquer aviso.
«… eu já disse vezes sem conta que não sou dependente. Eu consumo ocasionalmente, em momentos de maior stress!»
A médica apressou-se a retirar Sónia dali, pois a privacidade dos clientes era muito importante. No entanto, não conseguiu evitar uma expressão que Sónia interpretou como indicativa de que aquele jovem era um exemplo do que estavam a falar. Ela tinha-o o visto apenas de relance, mas o jovem chamou-lhe de imediato à atenção, pela sua compleição física.
Tinha deixado o carro estacionado, numa rua lateral, a uns cinco minutos de distância, pelo que apressou o passo. O telefone tocou quando ainda se encontrava frente à porta e ela demorou-se ali alguns minutos, enquanto falava com a mãe. Quando retomou o caminho viu o jovem, que ouvira gritar lá dentro, sair da clínica, com cara de pucos amigos. Ignorou-o e apressou novamente o passo. Virou à esquerda e o jovem acompanhou-lhe o movimento. Podia ser apenas uma coincidência, mas ela não gostou de o sentir logo atrás dela. Virou novamente à esquerda, entrando na rua onde o carro estava estacionado. Era uma rua estreita e sem grande movimento o que lhe provocou uma sensação de medo que não conseguiu explicar. O medo transformou-se num arrepio de terror, quando os dois homens saíram de entre os carros estacionados e lhe bloquearam o caminho. Olhou para trás e o jovem acabava de virar a esquina, tendo estancado a dois metros dela. Estava cercada! Os homens avançaram para ela com um ar ameaçador.
«Vais aprender a não te meter na vida dos outros!» Gritou um deles, erguendo o pau que trazia nas mãos, acima da cabeça.
Sónia entrou em Pânico. O medo era tanto que a tinha tolhido e, por instantes, encolheu-se e protegeu a cabeça, preparando-se para receber o golpe. O agressor percebeu que ela seria uma vítima fácil e olhou em direção ao companheiro. Esse foi o seu erro. Sónia baixou-se, esquivando-se ao golpe e pontapeou-o no meio das pernas. O outro agressor, não tardou em reagir e ela sentiu o choque da vara nas costas, que a lançou por terra. A pancada foi tão forte que sentia dificuldade em respirar. Quando se preparava para receber novo golpe este foi aparado com estrondo. O jovem que a seguia desde a clínica, estava na sua frente defendendo-a. Sónia estava convencida que ele fazia parte do grupo dos agressores, por isso arregalou os olhos de espanto. Enquanto isso, o jovem manobrava o pau largado pelo primeiro agressor, com mestria, aparado os golpes do outro e desferindo-lhe golpes certeiros, que foram deixando o adversário incapacitado. À terceira pancada ele fugiu, acompanhado pelo outro, que, entretanto, tinha recuperado do pontapé. O jovem estendeu-lhe a mão e ajudou-a a levantar.
«Estás bem?»
O tratamento informal foi como uma bofetada. Ela não o conhecia de lado nenhum, mas sabia que ele era um drogado e aquela familiaridade chocou-a.
«Sim. Obrigado. Salvaste-me a vida.» Disse ela tratando-o com a mesma informalidade.
«Levaste uma pancada muito forte. Talvez seja melhor ires ver se não tens nenhum dano nas costas.»
«Verei isso mais tarde, agora tenho de ir para casa.»
Sentia-se dorida, mas capaz de se movimentar, pelo que não devia ter partido nada. Felizmente a mochila que trazia às costas tinha amortecido parte da pancada. Ele, depois de esperar que ela entrasse no carro, disse:
«Se está tudo bem vou apanhar o meu táxi.»
«Deixa-me dar-te boleia. Afinal de contas devo-te a vida.»
«A vida por uma boleia. É um bom slogan.» Disse ele, soltando uma gargalhada trocista.
«Não se trata de uma troca, porque uma coisa não paga a outra. É apenas um pequeno gesto de agradecimento.» Disse ela, meio sem jeito.
O jovem parou de rir, entrou no carro, sem dizer nada, colocou o cinto e virou-se para ela.
«O meu nome é Xavier.»
«Muito gosto. Eu sou a Sónia.»
Nessa altura ela reparou como o azul intenso dos olhos dele combinavam na perfeição com os cabelos castanhos claros. Tinha um rosto interessante, vincado pela saliência das maças de rosto e por um queixo forte, que ela adivinhava, pois estava escondido pela máscara. A fronte larga transmitia uma mensagem confiável e ela sentiu-se protegida. Apenas as olheiras, profundas, denunciavam que algo não estava bem. Durante a viagem falaram de banalidades, tendo sido ela a fazer as despesas da conversa. Ele adorou saber que ela era uma desportista e elogiou a escolha de curso da Sónia. Ao fim de vinte minutos, ela deixou-o à porta de um famoso escritório de advogados, sem sequer saber se ele trabalhava ali ou não. Pensando bem, apenas sabia o nome dele e o seu número de telefone.
Os quarenta minutos que levaram a chegar a casa passaram sem ela dar conta. Sentia-se leve e feliz, embora desconhecesse a razão. A mãe ficou preocupada ao tomar conhecimento da agressão, mas ela desvalorizou-a.
«Devias apresentar queixa na polícia!»
«Queixa contra quem? Em não consigo identificar ninguém. Eles estavam de máscara como todos nós. Este Covid, faz-nos parecer a todos assaltantes!»
«Ainda assim eles ficariam com o registo da queixa!»
«Não te preocupes que já falei com o amigo do Pedro. Ele vai investigar o assunto.»
A mãe depois de ver as costas obrigou-a a ir a um hospital. Os exames permitiram concluir que ela estava um pouco amassada, mas não tinha nada partido. Eles registaram a assistência e o respetivo motivo e Sónia fez chegar o relatório à judiciária.
Elisa apenas regressou do fim de semana na segunda feira e foi direta para o emprego. Quando chegou a casa, o fim do dia, é que soube das notícias.
«Como é possível tu esconderes uma coisa destas de mim?»
«Eu não escondi nada de ti. Tu é que não atendeste o telefone, durante o fim de semana.»
Ele tinha-lhe ligado depois da situação estar resolvida, embora até aí a tivesse mantido na ignorância, mas ela não tinha atendido. Não quis deixar que ele lhe estragasse o fim de semana, mas já deveria saber que Pedro apenas lhe ligava quando tinha uma razão muito forte.
«Podias ter insistido!»
«Deixa-te de tretas. Eu não vou andar a mendigar que atendas os meus telefonemas!»
Já lá ia o tempo em que ele a ouvia e engolia em seco, para bem da relação. Ela não gostou da resposta, mas sabia que ele tinha razão. No entanto, ao invés de o reconhecer, saiu dali, bufando de raiva e batendo violentamente com a porta. Viver sob o mesmo teto era cada vez menos pacifico! Tinha que saber algo mais da filha, mas não lhe podia ligar e também não queria perguntar mais nada ao Pedro, por isso estava sem alternativas. Nessa altura lembrou-se da Patricia. Tinha gostado imenso dela e sentia que tinham algo em comum, apesar de não ter atendido o telefonema que esta lhe tinha feito, no fim de semana. Era altura de retribuir esse telefonema e ter uma conversa longa com ela. Patricia ficou entusiasmada com o telefonema, mas disse que preferia falar com Elisa pessoalmente. Esta concordou e ficaram de se encontrar, na sexta feira seguinte. Elisa gostou da abordagem da amiga da filha. Pareceu-lhe mais uma vez uma jovem sensata e ponderada, que subia a olhos vistos na sua consideração. Recostou-se na cadeira e deixou a sua mente deliciar-se com esse pensamento.
Pedro ficou sozinho na sala a sentir-se um cachorro abandonada. Não era a saída rude da mulher que o tornava pesaroso, era o abandono da mulher que amava e da sua própria filha, que lhe apertavam o coração. Sentia uma angústia que não conseguia controlar e que lhe consumia todas as energias. Ligou ao amigo da judiciária e foram tomar um copo. Quando este lhe fez o relato da agressão de que Sónia tinha sido alvo ele entrou em parafuso.
«Tu não podes mandar prender esses energúmenos?» Disse exaltado.
«Calma. Já está a ser feito tudo o que podemos. Não existe uma descrição adequada deles, o que torna a sua identificação quase impossível.»
Pedro passava as mãos pelos cabelos, em prefeito desespero. Era irónico, mas doía-lhe mais aquilo que tinham feito à mulher que amava, do que ter a filha internada.
Sónia dormiu mal. O enigmático Xavier tinha mexido com ela. Não tinham falado muito, mas o olhar dele tinha-a hipnotizado. Ela tinha consciência que tinha falado demais e até dito alguns disparates: era o que acontecia quando estava nervosa. Sentia que aquele homem a atraía de alguma forma. Não podia dizer que estava apaixonada, mas não podia negar a atração que sentia. Talvez nunca viessem a ser mais do que amigos, mas ele tinha aparecido no seu caminho por alguma razão. A descoberta dessa razão, fosse ela qual fosse, tinha tomado posse dela e a reserva que este demonstrava deixava-a ansiosa, sorvendo as parcas palavras com que ele lhe respondia às mensagens, com sofreguidão. Depois de alguma insistência ele aceitou encontrar-se com ela.
A explanada estava quase vazia apesar da tarde estar quente. A aragem do rio bafejava-lhes o rosto enquanto o som dos cabos de aço, tinindo nos mastros dos barcos, ancorados na marina, lhes enchiam os ouvidos de uma melodia tipicamente marítima. As gaivotas esvoaçavam por cima deles soltando os seus gritos de guerra, numa disputa secular.
«Afinal o que queres de mim?» Disse ele, de forma abrupta.
Sónia não queria nada de especial, por isso foi apanhada de surpresa o que a fez hesitar na resposta.
«Apenas quero ajudar-te.» Disse de forma simples.
«Essa é nova. Uma mulher que não quer nada de mim e apenas me quer ajudar. As mulheres têm sempre uma agenda, um propósito em tudo o que fazem, por isso não me digas que queres apenas ajudar.»
«Que mais poderia eu querer de ti.»
«Não sei. As últimas mulheres que se aproximaram de mim queriam o meu dinheiro, mas não contentes com isso levaram também um pedaço de mim e olha que qualquer uma delas foi menos ostensiva que tu, na aproximação.»
Sónia estava escandalizada com o que ele disse. A primeira reação foi ir-se embora e deixá-lo ali plantado.
«Eu devia ignorar que tu existes, pois numa conheci ninguém tão grosseiro e que me tivesse tratado tão mal. Mas não me vou embora, sem antes te dar uma lição.»
Xavier recostou-se par trás e soltou uma gargalhada. Parecia divertido com a reação dela. No entanto, não fez qualquer comentário, apenas se dignou a dispensar-lhe um olhar irónico. Isso ainda a irritou mais.
«Eu não faço a mínima ideia de quem tu és nem quem é a tua família. Na verdade, estou-me nas tintas para o facto de terem muito ou pouco dinheiro. Quanto ao teu pobre coraçãozinho, podes ficar com ele, pois não me interessa: serve uma mente demasiado atrofiada para o meu gosto.»
«Deixa-te de filmes. As mulheres são todas iguais. Não dão ponto sem nó.»
«Eu não sei o que é que as mulheres te fizeram, para teres essa opinião sobre elas. No entanto, não posso falar por aquelas que conheceste, mas apenas por mim. Eu só quero ajudar-te. Tenho uma amiga que foi internada no início da semana na mesma clínica onde foste, no dia em que nos encontramos. Ela é dependente da heroína, e acredito que tu também és. Eu só quero ajudar-te.»
A menção da cínica fez com que o rosto dele se contraísse num esgar, como se tivesse sido atingido por um punhal.
«Eu não tenho nenhum problema ao contrário da tua amiga!»
«Então não é verdade que consomes drogas?»
«Sim eu consumo heroína, mas de forma controlada. Posso deixar quando quiser.»
«Seja qual for a regularidade com que consomes a verdade é que quando está perante uma dificuldade ou um problema, em vez de lidardes com ele, consomes droga; isso torna-te dependente.»
Xavier sabia que ela tinha razão. A dependência estava a fazer com que até a sua própria carreira começasse a estar em risco.
«Tu não me conheces de lado nenhum, para me estares a julgar. Como posso confiar numa pessoa que diz querer ajudar-me sem ter obrigação fazê-lo ou ganhar algo com isso? Tu tens uma agenda escondida, mas a mim não me enganas.»
«Já te disse que apenas te quero ajudar. No entanto, não estou disposta a isso a qualquer preço. Não quero o teu dinheiro, mas exijo o teu respeito. Uma vez que tu nem disso és capaz, vou-me embora.»
Xavier encolheu os ombros, mas a sua expressão era de desilusão. Estava à espera que ela tivesse resistido um pouco mais. Ficou a olhar para a sua silhueta à medida que esta se afastava, caminhando com sensualidade. «Não devia ter sido tão bruto com ela!» Pensou.
O encontro tinha sido na quarta feira e eles não voltaram a falar nessa semana e na seguinte, apesar de ela lhe ter enviado três ou quatro mensagens a perguntar se ele estava bem. Xavier respondia com um monossílabo: Sim! Era sexta feira e a mensagem dele caiu com um raio.
“Preciso de ajuda.”
Seguiu-se nova mensagem com a morada dele. Sónia não hesitou um segundo e foi ao encontro dele. Xavier estava num estado lastimável. Tinha injetado alguma heroína, mas sobretudo tinha bebido muito álcool. Sónia fê-lo vomitar, deu-lhe um banho e encharcou-o de café. Apenas quando recuperou alguma lucidez ele percebeu o que ela tinha feito.
«Tu deste-me banho?»
«Não te preocupes que contínuas virgem.» Disse ela em tom jocoso.
Ele riu-se a piada. Poderia muito bem ser um dos seus comentários. Tinha ligado a várias pessoas a pedir ajuda. Todas elas se diziam suas amigas, mas apenas ela, uma pessoa que tinha conhecido há apenas duas semanas, o socorreu. O álcool tornava-o sentimental, foi o que aconteceu a partir de determinado momento. Ela tinha conseguido, com sucesso, reduzir o efeito da quantidade de álcool ingerida, mas ele continuava bêbado. Chorou baba e ranho. No meio do choro e das confissões acabou por reconhecer que era dependente da heroína. Isso representava um progresso, mas Sónia queria ouvi-lo dizer isso, estando completamente sóbrio. Finalmente ele acabou por adormecer e ela hesitou sobre a decisão a tomar. Ligou para a mãe a explicar o que tinha acontecido e ambas concordaram que ela devia ficar
Ela ficou de vigília, sentada no cadeirão de leitura, que ela tinha junto à cama. Já de madrugada, inclinou o cadeirão e colocou uma manta sobre as pernas. Depois, quando o cansaço a venceu, caiu num sono profundo.
Xavier foi o primeiro a acordar. Apesar de não se lembrar com detalhes de tudo o que tinha acontecido, lembrava-se o suficiente para saber que fora Sónia a cuidar dele. Olhou em seu redor com ansiedade e deparou-se com ela no cadeirão. Tinha adormecido vestida, provavelmente vencida pelo cansaço da vigília. Uma grande ternura invadiu-lhe o coração e as lágrimas afloraram nos seus olhos. «Isto é uma estupidez. Ela é uma estranha para mim!» Pensou. Em todo o caso, era a estranha que o tinha socorrido.
Levantou-se e tomou um duche prolongado. Sentia-se com uma energia pouco comum. Foi até à cozinha e preparou um bom pequeno almoço, embora já fossem onze horas. Era sábado e ele não tinha nenhum compromisso. Regressou ao quarto para a acordar, mas ela estava trancada na casa de banho. Ele anunciou-se com umas pancadas suaves na porta.
«Sim?»
«O pequeno almoço está à tua espera, Bela adormecida!»
Sónia tinha passado o rosto pela água fria, repetidamente, para acordar. Depois tinha retirado o pente da mala e passou-o pelos cabelos. Tirando o facto de a roupa estar toda amassada, até estava bem apresentável. Para sua surpresa, num dos armários, encontrou um perfume de mulher que correspondia ao que estava a usar. Ele bateu à porta no exato momento em que ela espalhava o perfume no cachaço e os sovacos. Felizmente trazia sempre consigo umas calcinhas lavadas, o que lhe tinha permitido fazer uma higiene contida, mas adequada. Abriu a porta e o odor a perfume invadiu as narinas de Xavier, causando-lhe, simultaneamente, uma sensação de surpresa e prazer. Ele adorava aquele perfume, mas a mulher a quem o tinha oferecido tinha-se recusado a usá-lo. «Ainda bem que assim foi…» Xavier sorriu com o pensamento.
Tomaram o pequeno almoço acompanhado de banalidades. Quando terminaram ficaram em silêncio. Ele esperava que ela tomasse a iniciativa, pois sabia que, se a vontade de ser sua amiga fosse sincera, ela seria implacável, enquanto ela avaliava se ele valia ou não apena: mas ela era a mulher das causas perdidas! Falaria. Se ele não gostasse era porque a amizade não valia a pena.
«Tu tens consciência de que tens uma dependência séria, não tens?»
«Dependência de que?»
«Diz-me tu. Até ontem e depois de te ver na clínica, pensava que era da droga. Agora não sei se é do álcool, ou se é dos dois.»
Ele ficou em silêncio. Custava-lhe reconhecer a dependência, mas custava-lhe ainda mais verbalizá-la. Era como se depois de o fazer ficasse escrita na pedra como uma verdade, com cujas consequências tinha de lidar. Mordeu o lábio inferior com violência e depois relaxou e falou.
«Dependo dos dois. Eu sou um dependente.»
Ela segurou-lhe a mão com carinho e olhou-o com ternura. Ele ficou surpreendido. Estava à espera de um outro olhar qualquer. Um olhar de pena ou de condenação, mas não daquele olhar. Era um olhar que o desarmava completamente.
«Também sabes que precisas de ajuda, não é verdade?»
«Sim.» Disse ele, com sinceridade.
«Estás disposto a encarar um processo de cura dessas dependências?»
«Sim.» Repetiu ele, com a mesma sinceridade.
«Então se quiseres a minha ajuda eu estarei a teu lado.»
Ele sorriu. Foi um sorriso envergonhado que lhe dava um ar sensual, ao qual ela resistiu muito a custo. Não era momento para confundir os sentimentos. Ele tinha que curar-se por vontade própria e não em função de um sentimento que podia não passar de uma ilusão. Foi isso mesmo que ela deixou claro.
«Agora sei qual é a razão porque os nossos caminhos se cruzaram. Tu precisavas de uma mão amiga que te ajudar a encontrar o teu caminho. Eu sou essa mão amiga.» Disse ela, apertando-lhe a dele.
Xavier entendeu a mensagem. Era dizia ser apenas sua amiga. Essa informação era importante para que ele não criasse ilusões, de que mais tarde se poderia vir a arrepender. Apesar de a cabeça pensar com essa clareza, o coração dizia-lhe outra coisa, mas não era altura de o deixar falar. Nesse momento ele levantou-se e disse:
«Espera aqui um pouco.»
Ela anuiu, sem dizer uma palavra e sem perceber muito bem o que ele queria. Quando o viu aparecer, com uma pequena mala, olhou-o interrogadoramente.
«Vamos?» Perguntou ele.
«Para a clínica?»
«Sim. Eu sempre tomei os meus compromissos muito a sério!»
Sónia estava abismada. Aquilo era um milagre! Só esperava que ele tivesse tomado aquela decisão por ele próprio e não por ela, porque o mais provável era que eles não tivessem futuro.
Patricia encontrou-se com Elsa numa das explanadas da Duque D’Avila, eram dezoito e trinta. A dieta rigorosa que estava a seguir, fazia quase dois meses, tinha feito milagres e Patricia, apesar de não ser uma mulher bonita, tinha-se tornado uma jovem bastante interessante. Elsa arregalou os olhos de surpresa.
«Bem! Vejo que tens cuidado de ti!»
«O meu treinador fez-me um ultimato, mas a verdade é que não me sentia bem com o meu corpo. Agora sim, estou feliz com o corpo que tenho.»
«Parabéns. A qualidade que mais admiro em ti é a tua beleza interior, mas não nego que te tonaste uma jovem muito interessante.»
Patricia sentiu que tinha ganho terreno suficiente, para poder recuar um pouco. Era tudo uma questão de estratégia.
«Obrigado Elisa. Falamos da Lurdes?»
«Claro. O que me podes dizer da minha filha?»
«Infelizmente não posso dizer muito, porque ela manteve uma boa parte da sua vida escondida de todos.»
«Sabias que ela andava metida na droga?»
«Sim. O que eu não imaginava era que a sua dependência era tão profunda.»
«Mas com é que isso começou?»
Patricia colocou o seu ar mais ingénuo, respirou fundo e lançou uma tirada de mestre.
«Isso eu não sei. Faz algum tempo que eu a vi, pela primeira vez, injetar-se. Na altura zanguei-me com ela e ela prometeu nunca mais o fazer. Apesar disso, eu percebi, que uma ou outra vez, ela tinha voltado a consumir, mas não me pareceu muito grave. Agora arrependo-me, amargamente, de não ter sido mais dura com ela. Eu também tenho culpa de ela ter chegado ao ponto onde chegou.»
O último comentário foi tão sincero e sentido que Elisa se comoveu.
«Tu não tens culpa dos pecados da minha filha. Diz-me, por favor tudo o que sabes.»
Patricia descreveu, com pormenor, como Lurdes a tinha obrigado a ir aquela festa no fim de semana e a ir à casa dos pais, para os convencer a deixá-la ir. Narrou ainda como ela desapareceu mal chegaram à festa e só apareceu às duas da tarde, do dia seguinte e com umas companhias muitos estranhas.
Nessa altura, era óbvio que ela estava completamente dopada. Patricia tentou dissuadi-la de andar com as más companhias e de continuar a drogar-se, mas de nada valeu: Lurdes mostrava-se irredutível na sua posição. Era estranho, mas parecia sentir um prazer especial em prostituir-se daquela forma! Apesar de Lurdes não querer regressar juntamente com ela, a Lisboa, Patricia tinha-a obrigado, dizendo que tinham ido juntas, pelo que deveriam regressar juntas. A rotura deu-se pelo caminho. Patricia ameaçou romper com ela se ela não abandonasse tudo. Mas Lurdes preferiu romper a amizade com ela.
«Agora vejo que deveria ter insistido com ela ou deveria ter falado convosco. Eu também sou culpada por ela ter chegado onde chegou.»
Patricia tinha descoberto o ponto onde devia tocar para abrir o caminho do coração da Elisa e o truque estava a funcionar na perfeição. Depois do último comentário ficou em silêncio, de cabeça baixa, aguardando a reação da mãe da Lurdes.
Elisa olhou para Patricia, ponderando o que dizer. Invadida por um misto de sentimentos fortes, teve dificuldade em articular as palavras. Sentia ternura, carinho, admiração e respeito por aquela jovem, mas sobretudo sentia que ela a arrebatava de um jeito estranho.
«Não ter martirizes por isso. Tu não tens culpa de nada. Na vida é assim mesmo, por vezes, se voltássemos atrás, agiríamos de forma diferente, mas isso não que dizer que tenhamos agido mal da primeira vez, mas apenas que não conhecíamos as consequências na nossa ação.»
O silêncio voltou a instalar-se.
«Sabes se a Sónia terá mais informações sobre a minha filha?»
Patricia ficou alerta. A pergunta podia ser uma armadilha. Olhou Elisa nos olhos e disse com emoção:
«Não sei. Não conheço muito bem a Sónia, mas pelo que sei é uma excelente pessoa, que se pudesse teria ajudado Lurdes, mas elas tinham-se afastado uma da outra, devido a um julgamento precipitado da Lurdes…»
Neste ponto a emoção foi demasiado forte e Patricia interrompeu-se a si própria. Elisa deixou-se contaminar pela emoção.
«Não chores minha filha. A Lurdes vai recuperar, se Deus quiser.»
«Eu choro por mim e não pela Lurdes.»
«O que queres dizer?»
Patricia narrou, com detalhe, a sua vida, fazendo dela um filme bem negro. Depois concluiu com um toque de génio. Fazia algum tempo que tinha descoberto que era homossexual. Quando contou aos pais estes só não a puseram fora de casa pela vergonha que isso traria, para a família, mas obrigaram-na a esconder esse sentimento e, como castigo, cortaram-lhe a mesada. Durante algum tempo ela aguentou a situação, mas recentemente tinha descoberto que estava apaixonada por uma mulher mais velha e tinha dito aos pais que queria assumir essa relação.
«Sabes qual foi a resposta deles? “No dia em que isso acontecer deixas de ser nossa filha!”»
Patricia chorava abundantemente e Elisa segurou-lhe as mãos, consolando-a.
«Embora consiga perceber a reação dos teus pais, quero que saibas que penso de forma diferente e podes contar comigo para tudo o que precisares.»
«Obrigado Elisa, mas acho que quando souberes quem é a mulher por quem me apaixonei a tua opinião vai mudar!»
Elisa olhou para ela perplexa. Não estava a ver como isso poderia mudar a opinião que tinha sobre Patricia.
«Então diz-me quem é essa mulher.»
A estratégia do encontro tinha sido desenhada para proporcionar aquele momento. Patricia ia fazer a sua jogada final. Se essa jogada não resultasse tudo estaria perdido. Olhou Elisa nos olhos, procurando colocar nesse olhar todo o amor e o desejo de que era capaz e respondeu.
«Essa mulher és tu. Desde que te conheci que não consigo deixar de pensar em ti, de te desejar, enfim, de querer estar a teu lado, agora e sempre!»
A primeira reação foi de choque. Elisa tinha percebido que entre elas existia uma química qualquer, mas nunca lhe passou pela cabeça que fosse esse o sentimento que Patricia nutria por ela. O mais estranho de tudo era que isso lhe agradava. A verdade, é que lhe agradava mesmo muito.
«Eu também me estou a redescobrir apesar de ter quarenta anos de idade.»
«Isso quer dizer o que?» Perguntou patricia, com ansiedade.
«Quer dizer que acho que já tive a minha quota de homens e que estou a chegar à conclusão de que gosto mais de mulheres.»
«Mas isso não quer dizer que gostes de mim.»
«Aí é que tu te enganas. Foste tu que despertaste em mim esse sentimento no dia em que nos conhecemos. Sim eu gosto de ti e quero estar contigo.»
Subitamente o mundo era só delas. Tudo à sua volta tinha desaparecido ou perdido o significado. Elas olhavam-se nos olhos com um desejo que não conseguiam conter.
«Queres ir para um hotel comigo?» Perguntou Elisa.
«É tudo o que eu quero!»
Foi uma noite maravilhosa. Patricia mostrou a Elisa um novo mundo. Apesar de ter tido muitos parceiros homens, esta era a sua primeira experiência com uma mulher e era o suficiente para saber que era isso que ela queria. Depois de várias horas de sexo ardente, Patricia dormia, tranquilamente a seu lado. Ela olhou a jovem com ternura. Tinha-lhe saído a sorte grande. O carinho e o amor que sentiu crescer dentro de si, por aquela jovem, era tão reconfortante e, simultaneamente, tão profundo que ela seria capaz de tudo para o manter. Nas duas semanas seguintes, elas encontraram-se todos os dias e estiveram juntas em todos os fins de semana. Elisa dava a Patricia uma semanada generosa e esta desfazia-se em agradecimentos e numa recusa fingida. Ao fim de duas semanas Patricia insinuou que seria mais fácil ir ter com ela se tivesse um carro e Elisa alugou um com a promessa de lhe oferecer um novo.
«Gostava de ser eu a escolher o carro!» Disse Patricia fazendo beicinho.
«Escolhe o carro que dentro de quinze dias devo ter o dinheiro.»
Patricia sabia que tinha que lhe extorquir tudo o que pudesse rapidamente, pois ela podia descobrir o logro. Quinze dias era demasiado tempo, sobretudo porque a relação já durava há duas semanas. Primeiro escolheria o carro e depois tentaria apressar a sua aquisição. Entretanto, fazia tudo para a prender e a precaver contra as pessoas que as rodeavam e que, fatalmente, as julgariam.
«Tu tens consciência que as pessoas irão fazer de tudo para nos separar, julgando-nos e que me vão considerar uma oportunista.»
«Esquece isso. Eu sou uma mulher adulta e sei bem aquilo que quero.»
«Não te esqueças que eu tenho aceite o teu dinheiro, por isso, não é descabido que possa ser considerada uma oportunista!»
«Isso só seria verdade se tu não me amasses.»
«Disso nunca duvides!» Disse Patricia, calando-a com um beijo.
Elisa estava completamente apaixonada e, portanto, nas mãos de Patricia. Quem não estava a gostar muito da brincadeira era a namorada da Patricia que, embora tendo alinhado, inicialmente, no jogo, começava a mostrar alguma impaciência com as ausências desta.