8. SEXO OU AMOR
Pedro vivia com o coração atribulado. Nunca tinha pensado que amasse Sónia daquela forma. Afinal de contas tinha-a abandonado para voltar para os braços da ex-mulher! No entanto, rapidamente concluiu que estava errado e o seu coração ansiava mais por Sónia do que por Elisa. Quando Sónia o rejeitou, logo depois de se ter separado, pele segunda vez, da mulher, ainda pensou que que a dor podia resultar do facto de ter sido rejeitado e de estar só. Isso levou-o a aceitar a companhia de algumas das mulheres que manifestavam interesse na sua. Foram relações curtas e falhadas, uma atrás da outra, que apenas serviram para reforçar aquilo que sentia pela Sónia. Finalmente, tinha tomado uma decisão. Primeiro deveria lidar com aquilo que sentia pela Sónia e dado que ela não tinha interesse nele, deveria tentar esquecê-la. Foi por isso que se focou totalmente na recuperação da filha. Ajudar Lurdes seria sempre uma preocupação como pai, mas ele fez disso o seu foco e parecia estar a resultar até ter dado de caras com a Sónia, naquele fim de tarde.
O resto do fim de semana foi um sufoco. Estava irritadiço e tão obcecado com a sua dor que nem prestou a devida atenção ao facto de ver as amigas todas de Elisa, sentadas na explanada do café em frente da casa. Quando passou de carro a caminho da clínica acenou com a mão, numa resposta automática, ao cumprimento que lhe foi dirigido por algumas delas, que conhecia muito bem.
«Hoje estás muito calado pai.»
«São coisas minhas. Esquece.»
«Pai, tu tens-me ajudado muito, mas eu já não sou nenhuma criança. Para além de filha eu posso ser tua amiga. Queres partilhar comigo o que se passa? Talvez eu possa ajudar-te.»
Pedro levantou a cabeça e olhou a filha. Ela provavelmente não iria entender que ele continuasse a amar Sónia depois da rejeição, mas ele estava decidido a ter uma relação franca e aberta com a filha.
«Gosto da perspetiva da nossa relação ir para além da parentalidade. Também eu quero ser teu amigo.»
Lurdes não disse nada. O pai tinha dado o primeiro passo e a melhor forma de o encorajar era ficar em silêncio. Tinha aprendido isso à sua custa.
«Eu estou completamente apaixonado pela Sónia e não sei o que fazer.»
«Ela também te ama. O problema está no facto de a teres traído. Tens de a fazer acreditar que a amas verdadeiramente e que isso não volta a acontecer.»
«Não me parece que isso seja possível. Ela deixou bem claro que não quer estar ao lado de um velho!»
«Em primeiro lugar tu não és um velho e, depois, se isso fosse verdade ela não teria estado ao teu lado durante tanto tempo.»
«Isso pode ser verdade, mas é como um velho que ela me vê agora!»
«Se gostas mesmo dela tens de ultrapassar tudo isso de a fazer acreditar a sinceridade do teu amor.»
Pedro não respondeu e ficaram ambos em silêncio. Quando retomaram a conversa foi sobre um assunto diferente.
Alberta tinha conseguido mobilizar as tropas e um pouco depois das três o grupo das amigas estava outra vês reunido. A namorada da Patricia voltou a narrar tudo o que tinha dito anteriormente ao grupo, deixando-as a todas apreensivas. Elas sabiam como era Elisa quando estava apaixonada: arrasaria tudo e todos se fosse contrariada. A única forma de desmascararem Patricia era estender-lhe uma armadilha, mas nenhuma delas sabia como fazer isso.
«Existe uma forma infalível.» Disse Lígia.
As mulheres quase se tinham esquecido dela. A preocupação com o que a jovem tinha contado absorveu-as e tentavam entre elas encontrar uma solução. Isso tinha sido um erro, pois Lígia conhecia Patrícia melhor do que ninguém e como tinham um interesse comum era melhor que ela fosse parte da solução.
«Qual?» Perguntou Alberta.
«O golpe que ela quer dar a Elisa está a demorar mais tempo do que ela tinha previsto. Se a expuserem a uma situação onde ela perceba que pode dar um golpe mais rápido ela não irá resistir. Provavelmente até vai querer executar os dois golpes.»
As mulheres perceberam a intenção da jovem e conspiraram para organizar a armadilha!
Xavier andava na lua. As férias estavam a chegar ao fim e o tratamento também, mas ele sentia-se bem, sentia-se um super-homem! A conversa com a Sónia tinha colocado, definitivamente uma pedra sobre o passado. Por seu lado, o beijo tinha funcionado como um catalisador de energia. A terapeuta quando falou com ele, na segunda feira, nem o reconheceu. Xavier iria precisar de tempo para consolidar o grande passo que dera no fim de semana, mas o passo estava dado. A causa do problema tinha, portanto, sido removida, faltava apenas terminar o ciclo de tratamento da dependência física que ia na terceira e última semana. Na reunião de terça feira ficou decidido que ele terminaria o tratamento na sexta feira, precisando apenas de um acompanhamento periódico e naturalmente de se manter longe do consumo do álcool, durante algum tempo e drogas, definitivamente. O estado psicológico dele evidenciava essa predisposição o que significava que com um apoio diário, não intrusivo, de algum amigo ou familiar, ele seria capaz de se manter no bom caminho. Sónia não tinha podido ir à clínica nos dois dias anteriores, por isso Xavier estava em pulgas. Queria abraçá-la e beijá-la novamente. Tinha tido uma longa conversa com a terapeuta sobre a relação que agora começava com a Sónia e estava consciente de que tudo poderia terminar de um dia para o outro. Era importante ter consciência disso para não se tornar dependente de uma relação, como tinha acontecido com a última e não vir a adotar comportamentos extremos: nem expetativas demasiado elevadas, nem objeções a uma verdadeira entrega.
Sónia tinha estado tão ocupada que nem tinha tido tempo para pensar nos seus dois pacientes. Agora que se encontrava a caminho da clínica, sentada no banco de trás do Uber, os pensamentos invadiram-na como uma enxurrada. Lurdes estava a recuperar bem e de acordo com as especialistas a amizade de Sónia e o acompanhamento do pai deveriam ser suficientes para a manter no bom caminho. Ambos tinham que estar atentos para o aparecimento de novas amizades que a pudessem destabilizar. Quanto pensou em Xavier sentiu o coração apertado e um certo nervosismo. As borboletas no estômago costumavam ser sinónimo de amor, mas no caso dela existia algo mais. Passou a mão pelos cabelos ajeitando-os, sem que estes o requeressem, num gesto destinado a afastar aquele pensamento. Tinha sido muito bom estar com o Xavier, por isso não existiam razões para ficar nervosa.
Tal como na semana anterior foi chamada o gabinete das terapeutas. As notícias eram extraordinárias, no entanto a expetativa da saída de Xavier deixou-a apreensiva.
«O Xavier vive sozinho, não sei se não existirá um risco de recaída.» Disse Sónia.
«Esse risco existe sempre, por mais acompanhado que uma pessoa, nas circunstâncias de Xavier, esteja. Apesar disso, o caso dele é mais simples porque o motivo que o levou à dependência desapareceu definitivamente. Em todo o caso, ele terá a Sónia.»
«Eu tenho a minha vida e não vou estar ao lado sempre ao lado dele.»
«Nem é preciso, mas como têm uma ligação que vai para além da amizade, isso vai ajudá-lo.»
Sónia ficou calada e uma sombra de preocupação escureceu-lhe o rosto, fazendo aparecer pequenas rugas na testa. Isso não passou despercebido á terapeuta.
«Era preferível que a estabilidade dele não ficasse dependente de uma relação amorosa comigo.»
«Não me parece que isso vá acontecer. Apenas comentei o assunto porque nada como a adrenalina do amor para nos motivar!»
Sónia gostava da companhia do Xavier, mas incomodava-a a perspetiva de ele ficar dependente dela. Não gostava da sensação que essa palavra lhe dava. Encontrou Lurdes na sala de visitas e trocaram um abraço de amizade bem sincera. Lurdes estava diferente e isso refletia-se na relação com a Sónia. Era como se a amizade da primeira tivesse deixado de ser um peso para a segunda. Ficaram as duas à conversa durante uma hora e depois Sónia foi ter com Xavier. A antecipação do encontro colocou-lhe um sorriso nos lábios. O amplexo com que ele a envolveu deixou-a rendida e entregou-se ao beijo com fervor. O tempo que passaram junto passou com tanta rapidez que eles nem se aperceberam. Por vezes Sónia ficava pensativa, como se estivesse a milhas de distância.
«Um cêntimo pelos teus pensamentos.» Dizia Xavier, acariciando-lhe o rosto.
Nesas alturas, Sónia deixava que o pensamento se reunisse ao corpo e lançava-lhe um sorriso delicioso e meio trocista.
«Hum! Hum! Os pensamentos são secretos, para além do que os meus são muito mais valiosos que isso!»
Xavier estava verdadeiramente feliz. O tempo que passou com a Sónia deixou-o num estado beatifico e ausente da realidade. Vivia os momentos sem a preocupação de ter de garantir determinado resultado, isso fazia com que apreciasse melhor o presente. Ainda bem que iria sair dali e poderia estar com a Sónia, gozando de uma maior privacidade. Essa felicidade apenas era toldada por uma coisa que soube nessa manhã. Quis o destino que se cruzasse com a Lurdes e depois de trocarem meia dúzia de palavras perceberam que ambos conheciam a Sónia e que, cada um à sua maneira, tinha sido levado para ali por ela. Xavier foi discreto no que diz respeito à sua relação com a Sónia, mas Lurdes não esteve com meias medidas.
«A Sónia e o meu pai viveram um grande amor. Eu acho que ela ainda está apaixonada por ele, apesar dele a ter deixado para voltar para a minha mãe. O mais caricato é que os meus pais acabaram separados!»
«Isso não constitui forçosamente uma traição!»
«Foi porque o meu pai já tinha voltado para a minha mãe e continuava com a Sónia, sem lhe dizer que tinha deixado de ser livre!»
«Se os teus pais não continuam juntos, porque é que ele e a Sónia não reataram?»
«É complicado! A Sónia sabe disso, mas não consegue perdoar-lhe a traição.»
A possibilidade de Sónia estar com ele apenas para esquecer o Pedro passou-lhe pelo pensamento e isso deixou-o desconfortável.
Sónia saiu da clínica com um sorriso nos lábios. Tinha passado uns momentos maravilhosos com o Xavier e o mundo parecia-lhe cor de rosa. Quando saiu para a rua a tarde caía e o sol tinha tingido o céu de vermelho. Junto à linha do horizonte o disco amarelo espalhava a luz em círculos que pintavam de vermelho a fina camada de nuvens que se colara ao azul do céu. A cor de tijolo tornava-se mais ocre e ia escurecendo, à medida que os círculos aumentavam de diâmetro, acabando por assumir a cor do sangue. Aqui e ali as nuvens assumiam um tom mais escuro e formas estranhas, como se monstros, disformes, se de gladiassem nos céus, pelo domínio do mundo. «Que por do sol guerreiro!». Esse pensamento deixou-a angustiada, como se tivesse tido a premonição de que algo ruim estava para acontecer. A angústia cola-se mais facilmente que a felicidade e foi com essa sensação que regressou a casa. O toque do telefone roubou-a aos pensamentos. Era o Hugo.
«Olá Sónia. Tudo bem? Já estás em casa?»
«Olá Hugo. Esta tudo bem. Olha estou mesmo a chegar.»
«Preciso de falar contigo. Podes ir ter ao Chez Marina?»
«Claro, mas passa-se alguma coisa?»
Sónia denotava preocupação no tom de voz. Apesar a angústia ter desaparecido, a situação não tinha melhorado.
«Não se passa nada de mau. Não te preocupes. Apenas preciso de falar uma coisa contigo.»
O ar descontraído de Hugo e a felicidade que o seu rosto transparecia deixaram-na, simultaneamente, surpreendida e bem-disposta. Quando percebeu de que se tratava soltou uma gargalhada sonora que deixou o Hugo encabulado.
«Não te rias que isto é um assunto sério. Eu quero casar com a tua mãe, mas não tenho a certeza de que ela queira casar novamente.»
«Não achas melhor preguntar-lhe? Vocês gostam o suficiente um do outro para terem essa conversa sem criar problemas.»
«Eu sei o quanto amo a tua mãe e sei que ela me ama também, por isso é que não quero fazer a conversa para ela não se sentir obrigada a casar comigo, ainda que contra a vontade.»
«Já devias saber que a minha mãe nunca casaria contigo só para te agradar. Fala com ela e se ela te disser que sim é porque quer mesmo casar contigo.»
«Mas achas que lhe faça logo um pedido tradicional de casamento, com anel e tudo?»
«Não me parece. Fala primeiro com ela sobre a possibilidade de ela voltar a casar e se ela disser que sim fazes a surpresa.»
Hugo não confessou à Sónia que já tinha o anel de noivado no bolso. Tinha-se antecipado, mas não estava arrependido. Se ela não quisesse casar oferecia-lhe o anel no aniversário. Foi assim que entraram os dois, em simultâneo, em casa. Júlia ouviu-os chegar e sentiu-se beijada e abraçada pelos dois.
«O que é que vocês andam a tramar?» Perguntou júlia.
«Já não posso abraçar e beijar a minha mãe sem andar a tramar nada?»
«Sim! Sim! Quem não te conheça que te compre!»
«Precisas de ajuda mãe?» Disse Sónia, mudando de assunto.
«Não. Está tudo no forno e o Hugo pode por a mesa.»
«Então vou para o meu quarto estudar um pouco. Podem arrulhar à vontade!» Disse em tom de gozo.
Hugo aproveitou a oportunidade para introduzir o tema do casamento e percebeu que Júlia estava algo cautelosa em relação à ideia.
«Casar é importante para ti?» Perguntou Júlia.
«Sim, mas o que é mesmo importante é viver a teu lado. Se a ideia de casar novamente te agradar, então eu gostaria de casar, mas a nossa relação é muito mais importante do que essa cerimónia.»
«Olha eu tinha decidido que não iria voltar a casar, mas agora já não sei bem.»
«Quer dizer que ponderas voltar a casar?»
«Pensando bem sobre o assunto, casar contigo é uma ideia que me agrada.»
«Não está a dizer isso só porque achas que o casamento para mim é importante, pois não?»
«Não, não estou. Definitivamente, a ideia de casar contigo é algo que me agrada.»
Hugo abraçou-a e beijou-a, ao mesmo tempo que mudava de assunto. Júlia achou o comportamento estranho, mas rapidamente esqueceu o assunto. Entretanto, o jantar ficou pronto e sentaram-se os três à mesa. Hugo tirou do congelador uma garrafa de vinho branco que tinha comprado no dia anterior e que o Chez Marina lhe tinha guardado, refrescado-a. Júlia ficou a ver Hugo a abrir a garrafa boquiaberta. Era o seu vinho favorito! «Será que vai acontecer aquilo que eu penso?» Sónia percebeu tudo e sorria de satisfação. Hugo serviu o vinho nos flutes gelados e antes de erguer a taça ajoelhou aos pés de júlia, retirou o anel do bolso e fez o pedido.
«Júlia, eu amo-te de uma forma tão intensa e tão profunda que não encontro palavras para descrever esse amor. Sei que já partilhamos tudo na vida e que este ato não irá mudar nada na rotina das nossas vidas. Apesar disso, quero declarar publicamente que te amo e que o mundo testemunhe a beleza e a grandeza do nosso amo. Queres casar comigo?»
Júlia, depois da conversa antes do jantar, estava à espera que o pedido de casamento chegasse, mas não lhe tinha passado pela cabeça que ele tivesse tudo organizado de forma a que isso acontecesse de imediato. Se ele não tinha tido ajuda da Sónia, então significava que a conhecia muito bem. Isso era bom sinal. Olhou para a filha interrogando-a com ao olhar e ela encolheu os ombros e estendeu os braços com as palmas da mão abertas, apontando para o Hugo. Hugo movia o olhar entre a mãe e a filha e durante as frações de segundo que decorreram, passaram-lhe pela cabeça de Hugo tantas coisas que ele se sentiu estonteado, ansiado por uma resposta que colocasse um ponto final às suas dúvidas.
«Sim. Aceito casar contigo, sobretudo quero casar contigo!» Disse Júlia com a voz embargada e estendendo-lhe a mão.
Hugo colocou o anel no dedo dela, levantou-se e selaram o compromisso com um beijo. Sónia ergueu o copo e disse.
«Brindemos, pois, aos noivos, à sua felicidade e à eternidade do amor.»
Tocaram os copos e sorveram um golo daquele néctar divino. A temperatura era a adequada e o sabor delicioso. Sónia voltou a tomar a palavra para um segundo brinde. Erguendo o copo perguntou:
«Posso?»
Eles assentiram ambos com a cabeça.
«Uns podem, mas não têm. Outros têm, mas não podem. Nós que temos e podemos, bendizemos ao senhor!»
Era um brinde adequado para a ocasião e os noivos ficaram emocionados. Júlia levantou a mão exibindo o anel. O anel de noivado era lindo e deveria ser muito valioso. Hugo tinha um amigo ourives que tinha utilizado uma peça antiga, pertencente à sua avó e a tinha transformado, encastoando um brilhante de dimensões consideráveis no suporte de prata. O resultado tinha sido fantástico! Era uma peça única e de uma beleza rara, onde se misturavam a arte antiga e a moderna, de forma sublime. Depois do jantar, Sónia retirou-se para o seu quarto e deixou-os entregues aos mimos próprios de dois apaixonados.
Sónia apenas regressou à clínica na sexta feira para uma visita à Lurdes e para acompanhar o Xavier até casa. Xavier tinha insistido que ela fosse buscar o caro dele, mas ela recusou-se. Na verdade, o Xavier não precisava dela para regressar a casa, apenas tinham combinado que assim seria. Ela, como queria visitar a Lurdes, chegou à clínica uma hora antes e foi logo interpelada pela receção.
«Os terapeutas da Lurdes quem falar consigo!»
Sónia ficou intrigada pois era a primeira vez que eles queriam falar com ela. Tanto quanto sabia tinham existido outras reuniões com o pai dela. Esse pensamento fê-la experimentar uma contrariedade. Ao transpor a ombreira da porta, viu o perfil da pessoa sentada em frente à terapeuta: era o Pedro. O coração disparou e ela hesitou. A terapeuta levantou a cabeça e saudou-a.
«Boa tarde Sónia. Entre!»
Pedro virou-se para a porta com a surpresa estampada no rosto. A terapeuta ignorante da história comum de ambos, falou sem rodeios.
«Vocês são os dois pilares que sustentam o equilíbrio da Lurdes, sendo que o terceiro é ela própria.»
Eles permaneceram em silêncio, embora a expetativa da terapeuta fosse diferente.
«E fundamental que cada um de vocês desempenhe o seu papel, para assegurar que a Lurdes não tem nenhuma recaída.»
«Qual é o meu papel?» Perguntou Sónia.
«Como amiga tem que a apoiar quando ela precisar.»
«Eu tenho a minha vida e vão existir muitas vezes em que ela vai precisar de apoio eu não vou poder lá estar.» Disse Sónia.
«A minha sugestão é que vocês os dois se mantenham em contacto e quando um não puder estar, que fale com o outro para se articularem»
«Isso vai ter de ser sempre assim?» Perguntou Pedro.
«Não. O ideal era que isso acontecesse durante um ano, depois disso ela deverá dispensar esse apoio. Naturalmente que se ela arranjasse um namorado a situação mudaria drasticamente.»
Sónia suspirou. Manter um contacto regular com o Pedro durante um ano podia vir a tornar-se um problema.
«Farei o que for possível para ajudar a Lurdes, embora pense que isso deverá ser uma tarefa que caiba predominantemente ao pai.»
«Neste caso não é bem assim. Por um lado, a ausência da mãe, por outro a forma idolátrica como a Lurdes vê a Sónia, conferem-lhe o papel principal nesta recuperação.»
Sónia suspirou novamente. A vida teimava em dar-lhe tarefas difíceis, muitas vezes mais difíceis do que julgava capaz de suportar. Lembrou-se do comentário da mãe: «A vida nunca nos dá mais carga do que aquela que conseguimos carregar!» Seria verdade? Ela não se considerava assim tão forte.
«Como já disse, farei o meu melhor.»
O encontro com a Lurdes foi mais breve do que tinha antecipado. Na reunião com a terapeuta, foi informada que ela sairia da clínica dentro de uma semana e sobre alguns cuidados a ter com ela, mas isso consumiu uma boa parte da hora que lhe havia destinado. Lurdes estava satisfeita por chegar ao fim do processo, mas bastante calma e consciente do trabalho que tinha pela frente. Agradeceu a Sónia, mas sem exageros e prometeu fazer todos os possíveis para se manter no caminho que tinham traçado na clínica. Quando chegou junto de Xavier levava o semblante carregado. Ele ficou apreensivo quando soube o motivo.
«Conviver com o pai da Lurdes vai ser um problema para ti?»
Sónia olhou-o nos olhos antes de responder. Ela nunca lhe tinha falado do Pedro, e tinha pensado fazê-lo apenas num estádio mais avançado da relação, mas as circunstâncias tinham mudado.
«Eu e o Pedro namoramos durante bastante tempo. Depois a mulher dele, quando se fartou do amante, em cujos braços se tinha refugido, acenou-lhe e ele foi a correr. O problema é que não me disse nada e continuamos a sair os dois.»
«O que sentes por ele.»
Ela demorou alguns segundos a responder.
«Nada.»
«Então qual é o problema?»
«Não estou propriamente interessada em interagir com o Pedro, depois do que ele me fez. Não o amo, mas isso ainda me afeta.»
Xavier sentia que aquilo não era tudo, mas entendeu que não era o momento para explorar o assunto, por isso esqueceu-o. Pegaram nas coisas dele e partiram. Sónia tinha ido la a casa uma ou outra vez buscar algumas coisas que ele precisava e acompanhar a empregada. Na última visita, tinha deixado uma lista de compras e esta tinha enchido o frigorífico. Xavier sentiu-se um homem novo ao entrar novamente em casa. Era uma pessoa diferente e por isso olhava a vida com otimismo. Sónia não ficou para jantar, mas ajudou-o a desfazer as malas e depois ficaram os dois no sofá trocando mimos. Sentia-se bem, mas deixou claro que ainda não estava pronta para mais intimidade. Tinha jogo no sábado, a seguir ao almoço e combinaram ir jantar os dois, depois do jogo. Xavier queria fazer-lhe uma surpresa, por isso, não disse que iria assistir ao jogo.
Quando ela se levantou para ir embora, Xavier pegou nas chaves e levantou-se com ela.
«Onde vais?»
«Vou levar-te a casa. Eu acabei de sair da clínica, mas não estou inválido.»
Sónia sorriu divertida.
«Eu sei que não és nenhum inválido, mas hoje vais ficar em casa a descansar. O Hugo está lá em baixo à minha espera.» Disse ela, mostrando a mensagem do telemóvel.
Não podia fazer mais nada senão conformar-se.
A companhia do Hugo era sempre um bálsamo para ela. O sentimento que os unia eram uma mistura do que existe de melhor entre amizade, irmandade e parentalidade. Apesar do ar carregado com que entrou no carro, quando chegou a casa já ria a gargalhadas soltas.
Sábado foi um dia de grandes acontecimentos. O jogo era decisivo para vencer o campeonato e as jogadoras foram autênticas guerreiras. Lutaram até ao fim tendo o resultado sido definido nos últimos pontos do jogo. Coincidência ou não Sónia foi determinante nessa fase do jogo, não apenas defendendo, mas colocando a bola de forma indefensável no campo adversário. Foi considerada a melhor jogadora em campo e naturalmente a heroína da equipa, que conquistou o seu primeiro título. Sónia estava radiante e a cereja no topo do bolo foi ter o Xavier e o Hugo à espera dela.
«Não sabia que também vinhas!» Disse Sónia.
«Se soubesses não seria surpresa.»
Sónia cumprimentou-o com um beijo e apresentou-o ao Hugo. Foi um momento interessante. Hugo olhou para Xavier avaliando se este seria ou não digno dela, como quem avalia o namorada de uma filha e este olhou para Hugo como quem olha para um rival, enquanto isso Sónia observava a cena com ar divertido.
«Desculpa Hugo, mas eu vou jantar com o Xavier.»
«Não te preocupes. Eu levo o teu saco para casa.»
«Ele é tão novo que podia ser teu namorado!» Disse Xavier, com ar preocupado.
Sónia soltou uma gargalhada sonora. Já estava acostumada a ouvir esse tipo de comentários, mas no caso de Xavier, o tom era tão carregado de ciúmes que a divertiu. Chegados a casa, Xavier fez questão ser ele a fazer o jantar. Ainda tentou que ela ficasse sentada no sofá, mas foi em vão. A Kitchenette permitia-lhes comunicar, mesmo estando um na sala e outro a cozinhar. Sónia arranjou a mesa e fez de ajudante de cozinha, ao mesmo tempo que brincavam um com o outro. O convívio fácil e a amizade e a confiança eram bem visíveis. Mas também era notório que, entre eles, havia mais do que isso. Foi um jantar romântico e sem álcool, que terminou ainda não eram vinte horas. Apesar de Xavier não ter sido considerado um alcoólico, era aconselhável um longo período de abstinência.
Depois do jantar Xavier abriu o livro do passado. Sónia viu fotografias e vídeos dele e isso tornou-a um pouco nostálgica. No seu caso reviver o passado nunca era uma boa ideia. Foram para o sofá e Xavier fez zapping até parar num canal onde estava a começar o filme “Nove Semanas e Meia”. A meio do filme eles começaram a beijar-se e a situação tornou-se explosiva. Os beijos suaves e breves foram substituídos por batalhas em que as línguas se digladiavam, não apenas para proporcionar prazer, mas para subjugar o outro. Viviam, no sofá, o ambiente do filme projetado no ecrã da televisão. Os corpos ardiam em desejo, incendiados por um imaginário que ambos haviam cultivado e majorado por uma expetativa, ditada pela ânsia do prazer. As mãos encontravam caminhos impossíveis e movimentavam-se por debaixo das roupas, acariciando o corpo do parceiro e tocando-o nas zonas erógenas, para catapultar o prazer. Deitados no sofá, desnudaram-se, deixando o corpo apenas enfeitado com as roupas interiores.
Xavier colocou o seu corpo sobre o dela e usou as pernas para segurar as dela. Depois, segurou-a pelos pulsos e prendeu-os acima da cabeça. Tê-la assim subjugada dava-lhe um prazer tão intenso que doía. O esforço inglório dela para se tentar libertar ainda o deixou mais excitado. Xavier olhou-a de uma forma estranha: parecia tresloucado. O rosto de êxtase fazia lembrar, simultaneamente um Deus e um Demónio. Xavier teve de se controlar para não ejacular mesmo antes de qualquer penetração, tal era o estado em que se encontrava.
Sónia sentia o desejo consumi-la e, embora não gostasse muito de ser presa, submeteu-se ao jugo dele e estranhamente isso deu-lhe muito prazer. Quando a pressão dele aumentou e se sentiu completamente imobilizada algo começou a acontecer dentro dela, mas quando o rosto de Xavier assumiu aquela expressão impessoal, ela assustou-se. O corpo contraiu-se e gradualmente o desejo foi substituído por um misto de sentimentos, uns bons, outros maus, mas nenhum deles era o desejo. Abriu a boca para lhe pedir que parasse, mas o toque do telefone interrompeu-a.
O zumbido do telefone trouxe Xavier à realidade e ele tomou consciência da pressão que estava a exercer sobre ela. Os pulsos estavam vincados de vermelho e as coxas ostentavam as marcas dos joelhos dele. O momento mágico que ele estava a viver tinha sido quebrado, mas o desejo continuava a exigir que ele o satisfizesse.
«Deixa-me ver quem é.» Disse ela.
Sónia aproveitou o toque do telefone para sair da posição onde estava. A expressão do rosto de Xavier não lhe saía do pensamento e isso parecia funcionar como uma barreira entre eles. Xavier tinha vontade de jogar o telefone pela janela, mas respirou fundo e procurou acalmar-se. Não podia precipitar as coisas e tinha de esperar o momento certo para que estas acontecessem. Era um pensamento racional, mas difícil de ser respeitado, tal era o desejo que sentia e as expetativas que tinha criado para o momento.
«Lurdes! O que se passa? Está tudo bem?»
Xavier aguçou o ouvido. Lurdes era a filha de Pedro e tudo o que se relacionasse com esse homem, para ele, representava uma dor de cabeça.
«Preciso que passes por minha casa e vejas se o meu pai está bem.»
«Estás doida?»
«Ele não veio ver-me hoje e não atendeu o telefone durante toda a tarde. Já liguei para a minha mãe, mas ela foi passar o fim de semana fora e diz que só regressa na segunda feira.»
«Não tens mais ninguém a quem possas pedir. Já ligaste aos amigos do teu pai?»
«Eu não tenho o telefone de ninguém!»
«Eu não sei se posso passar por lá, mas vou ligar ao amigo dele da judiciária.»
Sónia falou com o amigo do Pedro que se prontificou a ir ver o que se passava e a dar notícias. Isso só aconteceu uma hora depois. Sónia perdeu toda a vontade de fazer amor. Estava profundamente preocupada e sentia-se culpada pelo facto de estar ali a divertir-se enquanto Pedro podia correr risco de vida. As notícias não eram boas. Pedro tinha tido um acidente quando ia a caminho da clínica e tinha perdido a consciência. Tinha sido obrigado a fazer uma data de exames e como não queria preocupar a filha, não forneceu o contacto de nenhum familiar ou amigo. Sónia avisou a Lurdes e ficou num estado de nervosismo tal que não conseguia ficar quieta.
«Se quiseres podemos ir ao hospital vê-lo.» Disse Xavier.
«A esta hora não é possível ver ninguém. Eu acho melhor ir embora.»
«Não precisas de fugir de mim. Eu sei comportar-me. Podes dormir no meu quarto que eu fico no sofá.»
«Eu sei, mas hoje eu não serei boa companhia. Para além disso, preciso de ficar sozinha.»
Antes que ele tivesse tempo de reagir ela já estava a sair porta fora, indo ao encontro do Uber, que chamara, entretanto. Xavier ficou a olhar para ela, de calças na mão e ainda a tentar lidar com o misto de frustração e irritação que se tinha assenhorado dele.