Lisboa 16/03/2021
Bom dia Carol.
Espero que continue tudo bem contigo e com os que te rodeiam e que a tua caminhada para a perfeição (a tal que é impossível de alcançar) continue. Como sabes o que importa é a caminhada não o destino, por isso não importa se caminhamos para um destino inatingível. O que importa é a forma como nos aperfeiçoamos a cada passo que damos.
A tua carta trouxe-me sensações incríveis. Aquele início com um cumprimento insistente foi, numa primeira leitura (eu leio sempre as cartas pelo menos duas vezes. A primeira é apenas para absorver as sensações e a segunda e seguintes, quando existem, são para beber os detalhes), despertou na minha mente a ressonância de um cumprimento Mineiro, em que o A se prolongaria e o R se acentuaria num boa taaaarde! Não sei porquê, mas foi assim que a minha mente “escutou” o teu cumprimento. Isso fez-me soltar uma gargalhada, na segunda leitura. O facto de teres alargado o cumprimento à minha família teve um efeito interessante, foi como se passasses a fazer parte do grupo dos nossos amigos, deixando de ser apenas a minha amiga correspondente. Isso emocionou-me!
Como já deves ter percebido, pelas cartas que já trocamos, eu tenho um estilo de resposta que considera sempre os assuntos abordados na carta a que estou a responder. Tal como tu acabaste por fazer, eu não consigo deixar de atender às solicitações da “carta do outro”. Apesar disso, tento acrescentar sempre algo novo, pois dar algo de nós em cada contacto faz parte do progresso normal do conhecimento mútuo. É assim presencialmente e também o é por carta.
Achei muito interessante a forma como leste o conto “O AMIGO DA FILHA”. Quis, de forma intencional, deixar uma porta aberta, mas, em termos objetivos, não tinha pensado na continuidade da história. A tua carta implantou, de imediato, a ideia na minha mente. Obrigado por isso! Ficas a saber, em primeira mão, que a história vai continuar e que abrirei mais algumas portas, enquanto fecho outras, para poder criar uma mini série com vários contos. No entanto, peço que controles um pouco essa ansiedade de conhecer o fim da história da nossa jovem, pois ainda tenho de pensar no enredo de meia dúzia de contos e depois escrevê-los. Isso requer tempo, que é coisa que me escasseia neste momento. Já agora se gostas de suspense (quem fica em pulgas para ver o fim de uma história, é porque gosta de suspense, por isso é que existe a expressão: esse suspense mata-me), sugiro que vás ao meu blog e leias a Jornalista. É uma história com oitenta e um capítulos. Na verdade, daria um livro, mas foi escrito em estilo de novela: um capítulo por semana.
Fui ver o blog que me enviaste e tenho uma novidade: o autor retomou a história e escreveu mais um capítulo, prometendo que vai colocar fim à história no próximo. Aproveita para satisfazer a curiosidade.
Por aqui está tudo bem, mas estou a atravessar uma fase de trabalho muito intensa. Nas últimas duas semanas nem sequer tive direito a fim de semana. Para além do trabalho normal, que já é bastante nesta época do ano, tenho um novo projeto que tem dado bastante trabalho. Como se isso não bastasse no dia quatro recebi a informação que iria lecionar uma matéria nova no mestrado, sendo a primeira aula no dia dezanove. Tive de preparar a matéria e elaborar os slides em doze dias. Foi bastante intenso, mas está feito. Depois de duas semanas seguidas a trabalhar entre as oito e as vinte e quatro, confesso que estou cansado.
Ontem, foi o dia em que terminei a preparação das aulas, por isso, à noite fui passear o cachorro. Estava uma noite espetacular! O sol já tinha descido o ocaso, fazia algum tempo e a lua espreitava a sua vez de reinar nos céus. Soprava uma aragem fresca, sem ser fria, que me bafejava o rosto de forma deliciosa, apesar de protegido com a máscara. A barba aparada e o cabelo cortado (os cabeleireiros abriram depois de dois meses encerrados) permitam-me sentir o contato do vento nas orelhas e no crânio. É uma sensação gostosa quando a temperatura é a adequada. As ruas estavam vazias e deixei o King comandar. Ele determinava quer o ritmo, quer o tipo de passada, alternado as paragens, para cheirar os recantos, com um passo acelerado ou uma ligeira corrida. Nessas alturas refreava-o um pouco, para o ensinar a andar ao meu lado. Enveredei por ruas menos iluminadas e o luar, quando se livrou do ofuscar das luzes citadinas, veio ter comigo prateando as sombras. A noite envolvia-nos no seu manto escuro, ao qual o luar emprestava um brilho que nos mostrava os contornos do caminho, sem se preocupar em evidenciar os seus detalhes. Adoro as noites de luar! Infelizmente não estava no campo, por isso o seu esplendor não estava no expoente máximo.
O silêncio que reinava nas ruas era apenas interrompido pelo som abafado de um ou outro televisor, que se ouvia por detrás das portas e janelas baixas. Atravessava um bairro antigo, de casas velhas e baixas: um tesouro dentro da capital. Era Lisboa em pleno confinamento! O silêncio assemelhava-se ao reinante nos ambientes campestres, apenas os sons marcavam a diferença, pois o som do televisor tinha substituído o restolhar dos animais. Regressei a casa com a alma preenchida e a mente desanuviada.
Deixemos a minha aventura noturna e regressemos à carta. Acompanho com curiosidade a tua evolução na senda do encontro contigo própria. Essa procura que te levou a explorar o minimalismo, mas que não se quedou satisfeita por aí e explora cada dia novos caminhos. Tenho lido os textos do teu blog e vejo que estás a cultivar o espírito numa procura de paz interior, nomeadamente com a prática do Ho’oponopono com recurso ao Japamala, que mencionas na tua carta. A mente tem um poder fantástico e quando se predispõe, verdadeiramente, a alcançar um determinado objetivo, o mais provável é que o alcance. O Rosário, Japamala ou outro instrumento do tipo destes, são ferramentas de suporte para a atividade da mente. Funcionam para o nosso Eu psíquico da mesma forma que uma bengala funciona para o nosso Eu físico.
Dito isto, penso que a ideia de fortalecer a gratidão é algo fantástico. O ser humano tem muitas razões para se sentir grato, infelizmente, na maioria das vezes, insistimos em nos sentirmos insatisfeitos com “o pouco que possuímos” ao invés de regozijarmos com “o muito que temos”. Assim torço para que o Japamala te leve aonde queres ir, mas sobretudo que ao chegares te congratules com o que alcançaste sem te preocupares em medi-lo ou avaliá-lo.
Senti conforto na tua solidariedade com a minha perda, mas não te martirizes com isso. Já fiz as pazes com a perda faz muito tempo. Assim que voltei a escrever, o peso de ter perdido, o que escrevi em tempos, tornou-se relativo e até insignificante. É verdade que gostava de ter hoje, no meu blog, esses escritos, pois tinham uma abordagem mais ingénua da vida, mas quanto a isso nada possa fazer, por isso o melhor é não fazer nada.
Uma pessoa que trabalha com a intensidade com que relatas deve mesmo, se isso for possível, sem te colocares em risco a ti ou a terceiros, buscar um sítio e um tempo para relaxar e desanuviar a mente. Recarregar as baterias, de vez em quando, é importante não apenas para benefício da nossa produtividade, mas para o nosso bem-estar e saúde física e mental. Por isso, sim, vai de férias e ficarei muito feliz se partilhares comigo algumas das vivências que experimentares.
Escrevi estas palavras numa fugida, entre dois relatórios e aproveitando parte da hora do almoço, mas agora tenho que ir.
Despeço-me com um abraço amigo e sincero, diria mesmo com um beijo e seguindo os bons exemplos, com um abraço para o teu esposo.
Até à volta do correio.
Manuel