Take 3 – Amor intrusivo
Confesso que quando dei por falta da carta me penalizei por tê-la guardado na minha carteira e, com isso, facilitar o seu desaparecimento. Imaginei-a perdida num qualquer recanto e ignorada, pois não me pareceu que alguém pudesse ter interesse em tal escrito, sobretudo desconhecendo as personagens envolvidas. Assim, foi com uma grande surpresa que recebi a tua resposta, percebendo então que o destino quis contrariar a minha vontade e, mesmo contra ela, conspirou para que a carta fosse parar exatamente às tuas mãos. Talvez seja o universo a conspirar para nos unir, ou, pelo menos, para nos dar a conhecer o que cada um sente pelo outro.
A tua resposta deixou-me louca. Saber que dentro do teu peito habita uma paixão do tamanho que descreves e ver-me objeto dessa mesma paixão, fez-me vibrar ao mesmo tempo que me deixou num dilema brutal. Como sabes eu estou numa relação, que, não sendo perfeita, me satisfaz. No entanto, comparada com a vibração que é imaginar estar a teu lado, esta parece morta.
Voltei a ler a tua carta, uma e outra vez e cada vez que a leio a minha ansiedade aumenta exponencialmente. Vivo num limbo. É como se a minha vida ficasse suspensa e tudo se tornasse temporário, até que um caminho definitivo seja encontrado. A necessidade de uma mudança radical toma conta de mim, como uma tempestade em fúria e arrebata-me em sacudidelas violentas. Quero desaparecer. Melhor, quero que tudo à minha volta desapareça, para que eu possa escolher livremente o meu caminho. Quero fazer da vida um livro em branco e poder escrever cada página livremente, mas infelizmente a vida não é assim.
Tu questionas a grandeza do meu amor para contigo em função minha incapacidade de quebrar as amarras. Talvez tenhas razão. Talvez tudo fosse mais fácil se apenas te amasse a ti, mas eu vivo o estranho dilema de amar duas pessoas, embora não com a mesma intensidade. A verdade é que não consigo viver sem um, mas é impossível esquecer o outro. Cansada de tanto pensar sem conseguir encontrar uma solução deito-me, mas o pensamento recusa-se a desligar e matraqueia-me a cabeça exigindo uma resposta. Exausta, mas sem conseguir adormecer, refugio-me no sonho. Um sonho bem acordado, daqueles em que é a nossa imaginação que força o caminho e não o subconsciente, sempre fugidio e enganador na sua constância, ou então cheio de sombras e subterfúgios.
O sonho deleita-me, porque no sonho tudo é simples e fácil e só o nosso amor conta. No sonho não existem amarras, nem compromissos, nem família, nem prestação de contas. O sonho é um tapete voador de felicidade e os ocupantes somos nós os dois. No sonho, o nosso amor não se imola, ele vive, engrandece-se e expande-se, tornando-se único e uno com o universo. Sonho que somos eternos e que os incontáveis momentos de felicidade são vividos num local idílico onde tudo é perfeito, a começar por ti.
Extasiada, sorrio, ao ver o filme que passa perante os meus olhos, ignorando que o realizador é a minha imaginação. O mundo recebe-nos de braços abertos e os nossos amigos, os teus e os meus, em uníssono, acolhem-nos abençoando o nosso amor. A leveza que toma conta do meu corpo faz-me esquecer tudo, até os quilos que ganhei nos últimos anos. Nada é mais importante que o nosso amor. Sonho que pego nessa tua paixão ardente, a consumo, espremo e esgoto, até que esta se transforme num amor sublime. Um amor irrecusável para qualquer ser e em qualquer vida. Um amor que nos unirá para todo o sempre, ainda que eu viva milhares de vidas e cada uma em diferentes mundos e diferentes tempos.
Sonho com coisas mais comuns, se é que numa vida norteada por um sentimento tão grandioso existe algo de comum. Sonho que os nossos corpos se tocam, desnudados e carentes, acossados pelo desejo que os invoca e os arrebata um contra o outro. Sonho que esse choque faz soltar faíscas de prazer e exclamações de satisfação à medida que a fusão se aproxima do seu clímax e que dois se fundem num só. Satisfeitos, adormecemos um ao lado do outro, para acordar noutro dia e noutro local e viver novamente a aventura desse grande amor ou consumar o desejo que assoberba as nossas almas.
Sonho com um simples passeio à beira rio, a ouvir as gaivotas gritando à volta dos barcos, que passam barra, em busca da oportunidade de debicar o peixe que as redes, ou o barco largam, ao rejeitar o pescado fora de calibre. De mãos dadas nós exibimos a nossa felicidade quase como uma arma de arremesso, embora sem o objetivo de agredir alguém. Cruzamo-nos com outros casais, passeando sozinhos ou em família e trocamos um sorriso, embora o sentimento que exibimos seja de que o mundo é só nosso. Ao fim do dia, depois de um por do sol, entre nuvens, que desenhou nos céus lanças de fogo, com o colorido intenso de uma ave tropical, recolhemos ao nosso lar. Depois, noite dentro, deliciamo-nos com o reino lunar, que se espraia no universo com um jogo de luzes e sombras, que favorecem as lendas e os contos, campo fértil para os heróis e para as histórias de amor. Perdemo-nos nesse mundo de magia e mistérios, sem deixar que um se perca do outro e os nossos corpos encontram conforto no embalo do prazer que os sacode até que se entregam nos braços do Morfeu, descansando no aconchego do vale dos lençóis.
A fantasia confunde-se com a realidade e eu já nem sei se estou acordada ou a dormir, pedida nesta fronteira ténue em que uma mente, cansada, não distingue uma coisa da outra. Apenas quando acordo, de manhã, com o cansaço marcando-me os olhos e pesando-me no corpo, percebo que sonhei, primeiro acordada depois a dormir, mas, ainda assim, um mesmo sonho, embora com saltos temporais. Acordo para um novo dia, consciente de que cada dia sem ti se apresenta agora como um desafio cada vez mais difícil de ultrapassar.
Viver sem sentir o teu amor e sem o calor do teu abraço ou o carinho do teu beijo é um suplicio, mas, abandonar tudo para te seguir apresentava-se, pelo menos até agora, como um desafio inultrapassável. No entanto, a tua carta colocou na minha mente uma perguntas que teima em exigir uma resposta: Um amor assim vale tudo e sobrepõe-se a tudo?
A resposta não é imediata ou pelo menos uma parte de mim recusa-se a reconhecê-la, calando-a no âmago do meu ser, pois a partir do momento que a liberte e que os meus lábios a pronunciem, esta torna-se reconhecida e irreversível. Até lá continuo a amar-ta à distância mas sentindo-te tão perto que o pensar em ti me queima o corpo.
Definitivamente tua para sempre.