CARTAS NA PANDEMIA 48

Lisboa 25/06/2021

Bom dia Ana Carolina (o formalismo é uma manifestação de alegria)!

Espero que esta carta tem encontre com o mesmo astral que tinhas quando escreveste a tua. Confesso que fiquei deliciado com a tua boa disposição (o modelo da carta também ajudou, obrigado por isso), depois de todas as dificuldades que tinhas evidenciado na carta anterior. Tu escreveste a carta ontem à noite (o gmail diz que a recebi às vinte e uma e cinquenta e seis), mas eu apenas a vi hoje às oito e trinta. Foi uma excelente forma de começar o dia!

Ah, os agradecimentos… Deixa-me falar-te um pouco sobre isso. Eu penso e tento colocar em prática, que devemos ser gratos pelas “pequenas coisas”, porque elas de pequenas apenas têm a adjetivação que as pessoas lhe dão. A vida que é uma coisa tão grande e tão importante para cada um de nós (pelos menos a nossa, porque no mundo todos os dias vemos o total desrespeito pela vida de milhares), não é mais que o somatório de pequenas coisas, então não devemos esperar por uma coisa grande para agradecer, porque senão apenas agradeceríamos depois de mortos, o que em si próprio é uma impossibilidade. Outra coisa, o meu agradecimento, para além de ser sincero, mas penso que isso nunca esteve em causa, não é exagerado. As palavras que uso para o expressar são sentidas em toda a sua plenitude. Talvez até seja cauteloso nas palavras, porque a sensação de agradecimento que experimento é efetivamente grande. Quis realçar este aspeto porque considero que a correspondência entre duas pessoas que, mesmo estando distantes uma da outra, têm a curiosidade e a motivação para escreverem, estão, seguramente, interessadas em conhecer o outro e em dar-se a conhecer ao outro. Então, é importante deixar o outro perceber a forma como pensamos.

As coisas por aqui continuam agitadas, porque estamos a meio de uma mega transação como te falei e o processo de “due diligence” é duro, para além de que o trabalho associado a este se acumula com o dia a dia, que já é pesado, mas como se diz na minha terra: temos dado conta do recado. Dito isto, aproximam-se grandes mudanças e é bem possível que em dois mil e vinte e dois, de verifique a famosa “dança das cadeiras”. O que quero dizer é que neste tipo de transações os responsáveis máximos na situação pré aquisição, normalmente deixam de o ser nos pós aquisição. No entanto, isso não me causa intranquilidade, pois já passei por situações semelhantes e já sei que a única coisa que devo esperar é o inesperado e que preocupar-me antes do tempo só torna má uma situação que muitas vezes até se revela ser muito boa.

Tens razão os pais deveriam ser eternos. Porque ainda que estejam à distância, como é o meu caso, só o facto de sabermos que eles estão ali, à distância de um telefonema, nos dá um conforto enorme. Saber que podemos contar com eles para tudo, digo tudo mesmo, dá-nos uma tal segurança que acabamos por apenas recorrer a eles, em meia dúzia de situações, pois essa mesma segurança e tranquilidade ajuda-nos a encontrar as soluções por nós próprios.

A forma como tu me imaginas pendurou um sorriso largo no meu rosto. Não chegou a ser uma gargalhada, mas esteve quase. Não nego que sendo o administrador responsável pela área financeira, deveria fazer de mim esse executivo circunspecto, mas eu não consigo manter essa imagem por muito tempo. Sou do tipo de entrar numa empresa a meio do ano e dar uma imagem mais circunspecta durante os primeiros meses até conhecer as pessoas e depois chegar ao jantar de Natal e desatar a contar anedotas, deixando todos os colegas (que na maioria são subordinados) de boa aberta e depois tudo muda. Claro que depois tenho que colocar alguns deles na ordem, porque por vezes as pessoas confundem as coisas, mas já estou acostumado e não sei ser de outra forma. Nem quero! Quanto ao fato e gravata, isso já não se usa tanto assim. Pessoalmente, deixei de usar faz mais de cinco anos. Uso gravata quando me dá jeito (no inverno para me aconchegar o pescoço), ou quando a reunião é com pessoas que desconheço totalmente, o que nos dias de hoje é raríssimo. Para teres uma ideia mais clara do como sou, nas videoconferências de encerramento das due diligence (em curso neste momento) de alguns investidores, que duraram entre duas a três horas, a meio (eu era o mais velho) eu já estaca a brincar com as questões colocadas, fazendo toda a gente rir. Nota que estávamos a falar de pessoas quatro nacionalidades diferentes, usando como língua comum o inglês e a discutir o parecer do consultor do comprador que pode colocar em causa a transação. A verdade é que consigo criar um clima de descontração que facilita o diálogo. Portanto veres-me em cima da cerejeira, em cima do trator ou de enxada na mão, é perfeitamente normal, até porque fui criado numa quinta onde era um dos sete filhos do dono, mas onde não existiam empregados: o trabalho era todo feito por nós.

Vejo que as temperaturas estão amenas por aí. Sabes que na vida tudo é relativo e o que para ti é muito frio para mim pode ser normal. Como a nossa média de temperaturas é mais baixa que a do Brasil, nós queixamo-nos mais do calor que do frio. Por aqui as temperaturas estão elevadas de tal forma que até o King se queixa quando o vou passear às sete da tarde. Ele não consegue transmitir-me o detalhe das sensações que experimenta, mas eu sei que o sol me aquece a nuca e faz o suor escorrer-me pelas costas encharcando o polo. Caminhar à velocidade normal do cachorro é difícil, felizmente também ele desacelerou, baixando o ritmo. Quando chegamos a casa ele agradece a lavagem das patas e do focinho com água fria e eu rejubilo com o contacto com esta. Conclusão: estamos os dois felizes por chegar a casa. Em contrapartida, visto do meu escritório (esta semana estou em teletrabalho o que acontece semana sim, semana não), o dia está lindíssimo. Quando me levantei para fazer o exercício matinal, às seis e quarenta já o sol tinha nascido, mas transmitia uma sensação de meiguice como se acariciasse os objetos em que tocava, neste momento bate impiedosa nas fachadas dos prédios e no alcatrão, aquecendo-os. A sua intensidade é tão grande que quando vou com o King à rua, à hora de almoço, sinto o cheiro do relvado artificial (aquele cheiro a borracha que o calor espalha pelo ar) mesmo estando do lado de fora da vedação do campo.

Gostei de saber que tinhas, efetivamente, recomeçado as escrever aos amigos de longa data, penso que vai ser um exercício bem interessante. Eu, pessoalmente, estou entusiasmado com o resultado deste projeto de escrita de cartas, embora neste momento apenas mantenha a correspondência contigo. Durante algum tempo pensei que conseguisse mantê-lo com outra pessoa, mas aparentemente não. Nota que não fiquei devendo carta a ninguém, mas também não voltei a escrever a quem não me respondeu. Não fiz isso por qualquer questão de orgulho, apenas entendi que se as pessoas não responderam é porque não quiseram dar continuidade às cartas e eu respeito isso sem problema nenhum.

Que bom terem adotado o Ronda. Os cães precisam de afeto e na verdade contentam-se com pouco, embora também se possam acostumar a ter muito e não gostem de o perder. Sabes que tenho aprendido algumas coisas sobre cães e como gosto de me dedicar ao que faço, de corpo e alma, acabei por cotratar um treinador para o King (nota que eu não queria ter um cão no apartamento). Aparentemente o conceito que temos e que os cães não gostam de estar fechados no apartamento não corresponde bem à verdade. Eles adoram essa proteção, apenas necessitam de sair à rua duas a três vezes por dia. O meu dorme a manhã toda a meu lado, no sofá, do escritório e quando vou trabalhar para a empresa, dorme no sofá da sala, mesmo sem estar lá ninguém. Está tranquilo e feliz desde que tenha as horas de atividade e de brincar de que necessita.

Mudando um pouco de assunto, penso que já te tinha dito, numa carta anterior, que o teu desafio para dar continuidade a uma história que achaste ter ficado sem um desfecho, relativamente à situação de uma personagem, acabou por me levar a escrever um livro. Neste momento tenho duzentas e duas páginas escritas e treze capítulos fechados. Faltam dois para terminar o livro. Isso é mais uma coisa que eu tenho para te agradecer, nem sabes como esse agradecimento é sentido. A verdade é que esse tipo de desafio, para mim, funciona simultaneamente como musa inspiradora e combustível. A combinação dos dois traduz-se sempre numa explosão de criatividade. O resultado esse pode ser melhor ou pior, mas, em todo caso é algo que não me cabe a mim avaliar, pois para mim escrever é sempre bom.

Acho que me alonguei demais nesta carta, por isso vou terminar com um forte abraço, enviado, não de cima da cerejeira, mas do conforto do meu cadeirão. Despeço-me até à volta do correio.

Manuel

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