A VISITA

O toque do telefone fez com desviasse o olhar para o mostrador do aparelho. Este indicava que a chamada provinha da receção. Não estava à espera de nada, nem de ninguém, por isso, as sobrancelhas ergueram-se de forma interrogadora.

«Bom dia Manuel. Tem uma pessoa na receção para si.»

«Bom dia Joaquim. Eu não tenho nenhuma reunião agendada!»

Eram tempos de pandemia e as reuniões presenciais eram quase inexistentes e tinham que ser marcadas antecipadamente. Manuel evitava-as, o que era uma prática comum na empresa, por isso, a informação do segurança, que controlava as entradas, lhe pareceu estranha.

«O senhor João diz que vem da parte da sua prima Regina.»

«Pode colocar o senhor João na sala mais pequena que estiver livre, por favor?»

Manuel desceu ao piso das salas de reunião. Apesar de ser partner da empresa de consultoria, onde trabalhava, não tinha gabinete próprio e as salas de reunião ficavam todas no piso dois. Apesar de as regras ditarem o contrário, Manuel retirou a máscara e pediu ao seu convidado que fizesse o mesmo. Ele queria conhecer o rosto da pessoa com quem estava, até porque a forma como ele tinha aparecido ali era muito estranha. As redes sociais, hoje em dia, permitem-nos saber coisas sobres as pessoas, que permitem que estas se apresentem quase como nossas amigas.

«Você não conhece nenhuma prima minha, muito menos a Regina, por isso, estou à espera que me diga o por quê desta encenação.»

«Peço desculpa por ter usado este estratagema para chegar à fala consigo, mas peço-lhe que me oiça durante 15 minutos. Depois disso, se quiser que eu me vá embora, partirei sem qualquer problema.»

Manuel dirigiu um olhar atento à pessoa que tinha na sua frente. O homem grisalho, devia andar na casa dos cinquenta e o rosto, bem barbeado, apresentava as marcas vincada do tempo e das dificuldades por que ele devia ter passado. Ao perceber isso a sua expressão suavizou-se e decidiu ouvir o homem.

«Muito bem. Pode usar os seus 15 minutos.»

A empresa tinha lançado um concurso, amplamente divulgado nas redes sociais, que pretendia recolher ideias sobre projetos na área social. A pessoa ou entidade que apresentasse a ideia vencedora, tinha direito a apresentar um dos projetos que seriam financiados. Ao todo seriam financiados cinco projetos, com um montante de 20.000 euros, cada um.

João tinha sido diretor de um hotel, até ao início de 2018, data em que foi despedido num processo que invocava justa causa e onde ele estava acusado de desvio de fundos e de receber subornos, para escolher os fornecedores do hotel. Nos dois anos que se seguiram, ele lutou contra a acusação até conseguir provar a sua inocência, o que aconteceu no final do verão de 2019. Para isso delapidou todas as suas poupanças. Como estava desempregado e não podia pagar a prestação da casa, vendeu-a e arrendou uma mais pequena. Isso proporcionou-lhe algum dinheiro, que também desapareceu durante o processo de demanda. No fim do processo ele foi readmitido, tendo isso coincidido com a mudança de donos do hotel. Dada a sua experiência ele foi recebido de braços abertos pelos novos donos e assumiu a gestão do hotel, de imediato. Infelizmente, a pandemia não permitiu que o hotel aproveitasse a época alta de 2020 e o elevado volume de dívida que tinha sido usado na transação, fez com que os bancos tomassem conta do hotel, em setembro e o fechassem. João viu-se novamente sem emprego e sem indemnização e a família teve de viver apenas com o ordenado da mulher. Mas, o destino quis colocá-lo à prova de uma forma mais drástica e, em outubro, a mulher e o filho faleceram, num atropelamento com fuga. João era um homem mentalmente forte e, com o apoio da mulher, tinha conseguido ultrapassar a falsa acusação e passar pelo confinamento, sem que isso o deitasse abaixo. No entanto, quando perdeu a mulher e o filho o seu mundo desabou. Não havia nada que lhe conseguisse aliviar a dor e acabou por se isolar, afastando-se de tudo e de todos. No desespero, ele entregou-se à bebida e não tardou muito estava a viver na rua. O mundo onde acabava de entrar, para além de desconhecido para ele, era “um mundo cão”, como ele o descreveu. Mesmo vivendo na miséria os homens eram capazes de demonstrar o seu pior, embora também existissem casos fantásticos de solidariedade.

João viveu como sem abrigo, quase um ano, até que em setembro de 2021, tomou conhecimento, através da televisão, que a sobrinha, que vivia em Viseu, tinha um problema de leucemia e precisava de um dador de medula, para sobreviver. Por razões que ele não entendia bem, não seria fácil encontrar um dador, sobretudo porque isso tinha de acontecer no espaço de dois meses. A equipa médica estava a apostar na família, pois aí deveriam encontrar-se as pessoas com maior probabilidade de ser compatíveis. João tinha deixado de dar valor a sua vida e entendeu que lhe podia dar alguma utilidade, doando medula à sobrinha. Apresentou-se no hospital e programaram os exames para o início de outubro. A única condição que ele colocou, foi manter o seu anonimato. Para garantir um maior sucesso, ele deixou de beber, o que foi mais fácil do que tinha pensado. Agora que tinha um objetivo para a sua vida, tomar decisões parecia-lhe tão simples como fora nos tempos em que era diretor. Quis o destino que ele fosse a única pessoa compatível com a sobrinha. Assim, no dia combinado, a operação de transplantação de medula foi efetuada com sucesso.

A família, impossibilitada de agradecer ao dador, pessoalmente, fê-lo com recurso aos meios de comunicação e a sobrinha fez um apelo muito emotivo, solicitando ao dador que se desse a conhecer. João optou por manter o anonimato, pois não queria que os cunhados e a sobrinha se sentissem obrigados a ajudá-lo. Ela era a única irmã da sua falecida esposa e na verdade nunca tinha demonstrado grande simpatia por ele, por isso mesmo se tinham afastado. Enquanto esperava pela operação e tendo que se manter sóbrio ele dedicou o seu tempo à leitura, tendo, dessa forma, tomado conhecimento do projeto da consultora. Aquilo que ele propunha era que a empresa apoiasse um projeto de recuperação de sem abrigo, aproveitando as suas capacidades passadas, para ancorar um negócio que bebesse da sua experiência. O sem abrigo tinha de apresentar, sozinho ou com um patrocinador, uma ideia de negócio, cujo plano de negócios seria elaborado pelo próprio, em termos muito gerais e concretizado pela consultora. O gestor do negócio seria o sem abrigo, no caso de este concorrer sozinho, ou este e o patrocinador, mas implicaria sempre a recuperação, em termos profissionais do sem abrigo, que apresentava o projeto, podendo, inclusive, envolver outros sem abrigo.

O João para além da ideia, tinha também um projeto que passava pela criação de um restaurante, juntamente com mais três sem abrigo. Ele deteria 70% da sociedade e os restantes três teriam dez por cento cada um. Tratava-se de dois cozinheiros, e um empregado de mesa. Para além disso, iriam contratar mais um empregado de mesa e um empregado de balcão, todos sem abrigo. Portanto, o projeto iria permitir a recuperação profissional de seis sem abrigo. Durante a apresentação, que demorou 25 minutos, foram várias as vezes em que o João se interrompeu, devido à emoção causada pela narrativa. No fim da apresentação eles estavam ambos emocionados e Manuel teve de respirar fundo e engolir em seco, várias vezes, antes de dizer alguma coisa, para evitar que as lágrimas lhe escorressem pelo rosto. Tinha na sua frente um homem com uma história de vida extraordinária e que tinha passado por dificuldades e ultrapassado obstáculos, enormes e até se tinha entregue ao desespero. No entanto, depois de tudo por que passou, ainda tinha a capacidade de se erguer para ajudar a família e apresentar um projeto de ajuda aos sem abrigo extraordinário. Aquele homem era digno de tudo e a sua ideia fantástica.

A ideia foi aprovada e o João abriu o restaurante no início de dezembro, tendo sido aproveitado um espaço onde já tinha funcionado outro restaurante. No dia do lançamento, o João, apareceu na televisão, ao lado do Manuel, sendo entrevistado como autor da ideia e responsável do primeiro projeto apoiado. O projeto acabou também por beneficiar de outros apoios, nomeadamente em termos de isenção de taxas e impostos e apresentava uma novidade. Não existiam desperdícios. Quando terminavam o almoço e o jantar, eram sempre preparadas 20 refeições para os sem abrigo. Dessa forma, aproveitavam os alimentos que não tinham sido consumidos, complementados de forma a que as refeições fossem equilibradas.  O primeiro mês do restaurante foi um sucesso! Mas, o grande prémio, para o João aconteceu na véspera de natal. A casa estava cheia e João, apesar de se ter levantado de madrugada, para fazer as compras, ajudava atrás do balcão e no serviço das mesas, ou até mesmo na cozinha. As três pessoas entraram no restaurante e pararam à porta, mantendo as máscaras.

«O restaurante está cheio.» Disse o chefe de sala, enquanto colocava o couvert na mesa que tinha acabado de ficar ocupada.

«Nós queremos falar com o senhor João Pinheiro.» Disse a senhora.

«Ele está na cozinha, mas não vai conseguir arranjar-lhes uma mesa. O restaurante está mesmo cheio e só deveremos ter mesas livres dentro de meia hora.»

«Nós só queremos falar com o Senhor João.» Disse a jovem.

João, quando saiu da cozinha, foi confrontado com a solicitação do grupo e dirigiu-se para a entrada. O grupo de três pessoas caminhou na sua direção e encontraram-se, mais ou menos, a meio do restaurante.  Nessa altura, a jovem correu para ele e abraçou-o, ao mesmo tempo que dizia, lavada em lágrimas.

«Obrigado tio.»

O homem e a mulher, que não eram mais que os seus cunhados, ajoelharam em frente dele e, a uma voz, disseram:

«João, perdoa-nos se puderes. Perdoa-nos, por te termos julgado tão mal. Perdoa-nos, por não termos estado a teu lado, quando perdeste a tua família e por termos sido tão egoístas, ao pensar que a nossa dor podia se igual à tua. Perdoa-nos, por termos deixado que tivesses sido tu a levantar-te sozinho e não a nossa mão a ajudar-te a dar esse passo. Perdoa-nos se puderes!»

Quando eles se ajoelharam o restaurante ficou em silêncio e as palavras ditas foram escutadas por toda a gente. João estava tão emocionado como a família e não conseguiu dizer nada, durante alguns instantes, mas a moção falou por ele. Puxou os cunhados para si e choraram os três abraçados. A emoção era tão forte que uma boa parte dos comensais chorou com eles, até que todos os presentes se colocaram de pé, irrompendo num aplauso estrondoso. Todos eles conheciam a história de João e da família, por isso, aquele momento de reconciliação foi uma experiência natalícia. Esse era o verdadeiro espírito de natal!

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