O comboio aguardava, parado na estação, pela chegada dos passageiros. Os compartimentos vazios, quando foi parqueado na linha da plataforma quatro, iam-se enchendo de pessoas e o bulício substituiu a calmaria que caracterizara o seu interior. Ela entrou apressada e procurou a cabine onde ficava o seu lugar. Tinha optado por uma cabine sem cama, mas reservada apenas para quatro pessoas. Isso iria permitir-lhe encostar-se um pouco durante a longa viagem, até Paris.
Ele subiu as duas escadas da carruagem de forma calma. Tinha tempo e deixou passar todos os que, com um ar apressado, agiam como se estivessem em vias de perder o comboio. Estava acostumado àquelas andanças e já não se deixava dominar pelo stress. O lugar que tinha marcado estaria à sua espera quando lá chegasse e de nada lhe adiantaria a correria a que se tinham entregue os seus companheiros de viagem.
O corredor estreito, mal dava para passarem uma pessoa pela outra, pois as cabines ocupavam a maioria da largura da carruagem. Eles entraram ao mesmo tempo na carruagem, embora por extremidades diferentes. O vaivém dos passageiros fez com que parassem, momentaneamente, para deixar passar alguém e levantassem a cabeça, para avaliar a possibilidade de avançarem. Os seus olhares cruzaram-se e ficaram presos um no outro. Era como se tivessem ficado hipnotizados. As pessoas que se atropelavam no corredor, em busca do lugar marcado no seu bilhete, tornaram-se irrelevantes. Era como se mais nada, nem ninguém existisse. Caminharam, lentamente, desviando-se das pessoas como autómatos, de olhos fixos um no outro.
«Qual é a cabine da menina?»
A interpelação funcionou como um puxão para a realidade. Ela parou e olhou o revisor, meio confusa.
«O seu bilhete, por favor.» Disse o revisor.
Ela corou e, com gestos atabalhoados, retirou o bilhete da carteira e exibiu-o. O revisor abriu a porta da cabine para ela entrar e o desconhecido desapareceu da sua visão. Com a desilusão estampada no rosto, ela sentou-se no banco junto à janela. O olhar daquele homem não lhe saía do pensamento. Era um olhar que mexia com ela de uma forma estranha. Sentia-se ferver por dentro e um desejo avassalador consumia-a. Ficou nesse estado uma boa meia hora, mas quando o comboio deu sinal de partida, ela não se conteve e veio para o corredor.
A cabine dele ficava noutra carruagem e quando passou à frente da dela, ele lançou um olhar esperançoso à porta, mas não tomou qualquer iniciativa. O olhar tinha-o marcado, mas sabia o quão enganador isso podia ser. Se abrisse aquela porta podia ter de enfrentar situações inesperadas, inclusive um marido ciumento. Depois de uma ligeira hesitação continuou. Sentado no seu lugar e com a testa encostada na vidraça, fixava de forma vítrea o edifício da estação, sem notar a correria dos passageiros na plataforma. O seu pensamento estava preso naquele olhar. Um pensamento martelava-lhe a cabeça: tenho de possuir aquela mulher. Era um pensamento absurdo. Como podia ele imaginar sequer uma coisa dessas? Era um pensamento ridiculamente absurdo! Riu-se de si próprio, com escarnio. Irrequieto, sentado num dos lados da carruagem, cruzava e descruzava as pernas, incapaz de se manter quieto. O apito do comboio funcionou como uma mola e, num impulso, ele levantou-se e dirigiu-se para o corredor. Este estava deserto. Ele caminhou e direção à carruagem onde ficava a cabine dela. Caminhava devagar, mas em passadas largas e aparentando uma calma que não sentia. Por dentro todo ele era ebulição. Será que teria coragem de entrar na cabine dela?
Quando fechou a porta atrás de si, ela olhou para um e outro lado do corredor e percebeu que estava perante um dilema. Não sabia se ele estava nalguma das cabines dessa carruagem ou noutra carruagem qualquer. Abriu uma das janelas e debruçou-se sobre o exterior, enquanto o seu cérebro trabalhava, febrilmente, para decidir o que fazer. Não fazia ideia de qual era o lugar dele, por isso estava impedida de ir ao seu encontro. Isso deixou-a momentaneamente desanimada. Depois, o impulso falou mais alto e tomou uma decisão: iria abrir todas as cabines até o encontrar. Virou-se com um gesto decidido e foi quando o viu entrar no corredor. Encostou as costas à janela e esperou que ele viesse ao seu encontro. Eles olhavam-se com um instinto devorador. Era um olhar de desejo, de paixão, mas de algo mais. Como se entre eles existisse um entendimento tácito e pudessem agir com uma sintonia de pensamento e atos de velhos conhecidos. Ele parou a uns escassos centímetros dela, hesitante. A vontade que sentia de a beijar era avassaladora, mas não tinha a certeza de qual seria a reação dela, por isso conteve-se. Estavam tão concentrados um no outro, que apenas se aperceberam do passageiro, quando este forçou a sua passagem nas costas dele, empurrando-o para cima dela.
O peito dele foi de encontro aos seios dela com violência. O impacto foi eletrizante e deixou-os momentaneamente confusos. Depois, sem necessidade de palavras, eles abraçaram-se e envolveram-se num beijo devorador. Quando as mãos se tornaram indiscretas, ela disse:
«Aqui não.»
Sem dizer nada, ele pegou na mão dela e conduziu-a até à sua cabine. Ele viajava sozinho, pois tinha comprado uma cabine com beliche individual. Num ápice estavam nus e, deitados no exíguo beliche, exploraram o corpo um do outro, sem reservas nem pudor. Usaram os corpos, como instrumentos de prazer, fazendo coisas de que nunca se tinham imaginado capazes. Experimentaram posições e deram vida a fetiches, como quem vive o último dia das suas vidas. Ela submeteu-se a ele, sem necessidade de que este o impusesse, para em seguida o dominar com a mesma facilidade. Amaram-se, castigaram-se e usaram-se sem medo da dor, mas com respeito pela integridade. Experimentaram aquele prazer selvagem de uma relação condenada a não durar, mas a dar tanto prazer que torna o momento inesquecível.
Quando a viagem terminou, ela foi buscar as suas coisas e ficaram de se encontrar na plataforma. Ele aguardou pacientemente que ela chegasse, mas ao fim de uma hora, sentado no banco da plataforma, foi obrigado a concluir que ela não viria. Tinha sido uma aventura fantástica e cheia de promessas de outras tantas aventuras, que infelizmente ficariam por viver. Com a desilusão espelhada no rosto, ele encolheu os ombros, levantou-se e partiu. Enquanto ela, algures a coberto das sombras, o via partir com um sorriso.