SEGUNDAS NÚPCIAS

Manuel rondou o pau ensebado, observando-o com olhar perspicaz. Naquele ano, os mordomos tinham arranjado uma forma de aumentar substancialmente o número de pessoas que o iriam tentar subir: quem lograsse o fito, dançaria a noite toda com a Célia Quinteira, a moça mais bonita e cobiçada da aldeia. Ele passou a mão pelo pau, avaliando a espessura da camada de sebo. «Vai ser uma trabalheira dos diabos chegar lá acima!» Pensou ele, mirando o topo, onde estava pendurado um bacalhau enorme.  O bacalhau não lhe interessava, mas a possibilidade de dançar com a Célia era algo pelo qual ele estava disposto a tudo. Depois de avaliar o pau, foi verificar quantas pessoas estavam inscritas. A ordem da subida era a da inscrição, por isso, essa informação era crítica. O mordomo responsável tinha estado a observá-lo e não perdeu a oportunidade.

«Então, Manuel vais inscrever-te?»

Ele mirou-o sem dizer nada. Aquilo que Manuel precisava era de saber quantas pessoas já estavam inscritas. Para conseguir subir até ao topo, ele precisava que o pau estivesse relativamente limpo o que deveria implicar que subissem um número razoável de pessoas antes dele. Como não era possível saber o número de pessoas inscritas ele adotou uma estratégia arriscada. Não iria inscrever-se e apostava tudo na hipótese de os inscritos, antes da prova se iniciar, não conseguirem subir até ao topo.

«Não. Cheguei tarde, já está muita gente inscrita.»

«Como sabes?»

«É o que dizem por aí.»

O mordomo encolheu os ombros e não se pronunciou. O número estava longe de ser tão elevado como Manuel insinuara, mas ele não o podia divulgar. Quando a prova se iniciou existiam 15 concorrentes inscritos. Manuel arrependeu-se de imediato de não se ter inscrito, pois era possível que antes de esgotados os 15 concorrentes os sete metros do pau tivessem sido vencidos. Contra as suas expetativas, os concorrentes não conseguiram ultrapassar a barreira dos seis metros. Nessa altura, Manuel avançou para o pau, mas foi ultrapassado pelo Arlindo Maluco. Vexado, Manuel condenou-se a si próprio, por não ter sido mais rápido. Arlindo era possante e um excelente trepador, era quase certo que levaria o prémio consigo. Mal se agarrou ao pau o jovem subiu com uma rapidez formidável o que colocou a populaça em alvoroço, batendo palmas e dando como certa a vitória. O problema é que chegou aos seis metros sem fôlego e abordou o último metro já em descompensação. Isso obrigou-o a parar para recuperar o fôlego, o que foi o seu segundo erro. O resultado foi que, não tardou nada, estava a escorregar para a base do pau. A multidão, desiludida, vaiou-o, tendo-se mesmo ouvido alguns insultos.

Manuel abordou o pau com calma e chegou aos seis metros ainda com bastante energia para dar. A sua ideia era dar um impulso e galgar o último metro, puxando o bacalhau num rompante. Se bem o pensou, melhor o fez e não tardou nada escorregava pelo pau abaixo, com o bacalhau na mão, perante o aplauso geral e os gritos de vitória. Depois, fez algo completamente inesperado. Foi até junto de Célia, que assistia à prova junto dos mordomos e, colocando-se de joelhos, ofereceu-lhe o bacalhau. A multidão louvou o gesto e interpretou-o como uma homenagem à dama que iria ser o seu par por uma noite. Para ele era um ato de amor e para a Célia foi a melhor coisa que lhe poderiam ter oferecido. Isso não resultava da oferta em si, mas da pessoa que a tinha feito. Embeiçada e corada, até à raiz dos cabelos, ela aceitou a oferta.

Foi uma noite maravilhosa para ambos, pois tiveram oportunidade de verificar que gostavam um do outro e não fosse a extrema timidez de Manuel, eles teriam declarado a vontade de namorar ao fim de meia dúzia de danças. Manuel, todavia, hesitava. Sempre que ia declarar-se algo acontecia e ele deixava-se levar pelos acontecimentos, sem a coragem, nem a firmeza necessárias para controlar o seu rumo. Por seu lado, ela não se coibia de falar do futuro e dos seus sonhos.

«Quando encontrar o homem certo eu não terei receio de me entregar a ele.»

«Como tem de ser esse homem, para ser o certo para ti?»

«Basta que seja um homem bom, como tu. No entanto, uma coisa é fundamental: ele tem de ser capaz de me dar filhos. Eu quero ter três.»

Manuel engoliu em seco e sentiu que gelava por dentro. Ele adorava crianças, mas guardava um segredo que apenas ele conhecia e que lhe tinha sido dado a conhecer quando cumpriu o serviço militar. Apesar do grande apetite sexual que o caracterizava, ele era estéril. Isso tinha-o ajudado, no passado recente, quando, depois de uma bebedeira descomunal, teve relações sexuais com uma oportunista que pretendia usar a gravidez para o levar a casar com ela. No entanto, parecia ser, no momento presente, a sua condenação. Como podia ele declarar o seu amor a Célia, sabendo que esta o rejeitaria assim que tomasse conhecimento da sua condição? Tinha vontade de desaparecer num buraco, mas não teve coragem para isso e deixou-se levar pelos braços da mulher que amava. No entanto, a noite terminou como tinha começado. Nenhuma das muitas insinuações dela o levaram a pronunciar, com os lábios, aquilo que os seus olhos gritavam aos quatro ventos.

Manuel vivia em sobressalto. Carregava consigo aquele amor como um fardo, ao ponto de toda a aldeia o perceber, mas teimava em não dar o passo necessário para oficializar a relação. A Célia deveria casar com alguém que lhe desse os tão desejados filhos, pois a felicidade dela estava em primeiro lugar. Ele estava pronto a envolver o seu amor numa mortalha e a enterrá-lo dentro de si para todo o sempre. Fazia isso por amor, inconsciente do quanto isso magoava a pessoa amada.

Eram tempos em que as jovens tinham uma idade para casar e Célia não fugia à rega. Os pais, conscientes que ela amava Manuel, permitiram que esta tentasse conquistá-lo, mas, depois da festa da aldeia, em que eles dançaram a noite toda, sem que ele se declarasse, eles deram um ultimato à filha.

«Sabemos o quanto amas o Manuel Nobre e que ele é o melhor partido da aldeia, mas ele não quer nada contigo, por isso tens de aceitar o pedido do Norberto.»

Norberto Pardal pertencia a uma das famílias mais abastadas da aldeia, bem mais do que a de Célia. Era um rapaz humilde e trabalhador, embora mal soubesse ler e escrever. Tinha abandonado a escola com a terceira classe e tinha-se entregue à lavoura e à criação de gado, aumentando o pecúlio da família, de forma substancial. Por isso mesmo, era um dos jovens mais pretendidos da aldeia, uma vez que, no crivo das donzelas, ou pelo menos das famílias delas, a fortuna era a rede mais fina. Consciente da sua posição, esperou que Manuel Nobre desse o passo que todos aguardavam que ele desse. Quando isso não aconteceu, foi a casa dos Quinteira e apresentou um pedido formal da mão de Célia. Esta, pressionada pela família, não disse que não, prometendo pensar no assunto.  

O inverno sucedeu ao verão e Norberto continuava a aguardar uma resposta de Célia. A família dele também começou a pressioná-lo para ele buscar outra mulher, pois a ausência de resposta de Célia Quinteira era muito estranha. Norberto, despeitado com a ausência da resposta de Célia, viu-se forçado a casar com outra mulher, mas vingou-se de Célia, difamando-a. Tudo o que disse sobre ela foram falsidades, mas o afastamento de Manuel Nobre, embora feito por amor, tinha deixado o terreno fértil para tais mentiras. Manuel Nobre jurava a pés juntos que tudo o que se dizia sobre Célia era mentira e, por várias vezes, se envolveu em brigas em defesa da honra dela, mas de nada valeu.

Os jovens da aldeia afastaram-se dela e passado algum tempo ela viu-se forçada a casar com um rapaz pobre, de uma aldeia vizinha, que trabalhava com uma junta de bois, por conta de outrem. Apesar de tudo foi um casamento feliz, porque ele a amava verdadeiramente. Tinha-a amado à distância, sem sequer se atrever a sonhar com ela, mas, quando a soube caída em desgraça, ajoelhou-se aos pés dela e confessou-lhe o seu amor. Ele estava convencido de que o que se dizia sobre ela era falso e disse-lho. Ela retribui-lhe com um sorriso triste. Foi um sorriso cuja tristeza resultava do facto de, depois de desacreditada, não haver forma de voltar atras, num meio pequeno como aquele. Célia recebeu-o de braços abertos e nunca mais olhou para trás. Não prometia amá-lo, pois não sabia se isso seria possível, mas ser-lhe-ia fiel e entregar-se-ia a ele como mulher. A pedido dela, eles passaram a viver na aldeia vizinha e eram raras as vezes que iam à sua aldeia natal. Célia, quatro anos depois de casada, já tinha três filhos, sendo que os dois primeiros eram gémeos.

Por altura do primeiro aniversário do filho mais novo dela, que era uma menina, deu-se na sua aldeia natal um acontecimento que iria marcar a vida dela e a de toda a aldeia. Norberto caiu enfermo e não havia meio de se encontrar cura, para a doença que o transformara quase num inválido. Em desespero de causa o padre foi chamado para lhe dar a extrema unção. Em confissão, ele disse ao padre que tinha difamado Célia Quinteira e o padre disse que não podia absolvê-lo desse pecado, a não ser que ele o confessasse, numa missa de domingo. Norberto e a esposa não viram outra saída e, no fim da homilia do domingo seguinte, ele reconheceu, publicamente, a sua falha.  Isso não resolvia o problema, mas repunha a verdade sobre a virtude de Célia, que ao saber do assunto se limitou a encolher os ombros. Ela nunca baixara a cabeça, porque não tinha razão para isso. Em contrapartida, aqueles que antes a olhavam de cima, eram os que agora passavam por ela de cabeça baixa, envergonhados de um julgamento injusto. Célia sorria dessa vergonha fingida, da mesma forma que sorrira, no passado, da arrogância sem causa.

O destino é muitas vezes cruel e não se cansa de nos testar. Vendo Célia livre do vexame público quis dar-lhe nova provação. Acontece que, uma semana depois, ela via o marido falecer, no fundo de uma ravina e debaixo de um carregamento de lenha, que ele transportava para um cliente. Apesar de não amar verdadeiramente o marido, ele era o seu companheiro e ela desesperou. Correu como louca ao encontro dele, tendo tropeçado e dado uma queda que a colocou em coma. Nessa altura, Célia tornou-se, na boca do povo, uma santa e mártir em vida. Com o mesmo entusiasmo com que a haviam condenado no passado, idolatravam-na no presente.

Manuel Nobre sofreu à distância e com reserva, durante quatro anos, a dor de ver o amor da sua vida casada com outro. Apesar disso, regozijou-se com os filhos dela pois sabia que isso a fazia feliz. Sofreu, calado também, por tudo o que ela havia passado, consciente de que contribuíra, com o seu afastamento e ainda que de forma indireta,  para esse sofrimento.  Quando soube que ela estava em coma, falou com os pais dela e pediu autorização para a visitar. Os pais, que tinham sido testemunhas do que ele tinha lutado para limpar o nome da filha, não hesitaram em autorizar a visita. Manuel sentou-se ao lado da cama dela e segurou-lhe na mão, ao mesmo tempo que, com palavras entrecortadas por lágrimas de dor, lhe confessou o seu amor. Abriu-lhe o coração e confessou-lhe também razão porque se afastara dela.

«Perdoa-me se puderes. Foi por amor que me afastei de ti, para que pudesses ter a felicidade de ser mãe. Mas, foi esse afastamento que te condenou. Eu fui o teu carrasco, quando apenas queria a tua felicidade. Perdoa-me.»

Manuel falou-lhe da sua vida triste e amarga e da dor que a ausência dela o fazia carregar. Disse-lhe o quanto a amava e o quanto a queria. Disse-lhe o quanto precisava que ela vivesse, ainda que fosse longe dele, pois apesar do afastamento dela ser um castigo penoso, a sua partida seria um castigo ainda maior.  Tudo nele era a imagem de dor e sofrimento. No entanto, as suas palavras eram quentes e tão repletas de amor que enchiam o quarto e seriam capazes de o iluminar ainda que este estivesse na escuridão. As lágrimas salgadas, de um arrependimento infinito,  caiam sem alarido pelo seu rosto, qual testemunhas silenciosas de um amor imenso, mas impossível e de um sofrimento incomensurável.

«Numa vida em que tu me pudesses perdoar, eu receber-te-ia de braços abertos. Não te posso dar filhos, mas aceitaria ser pai dos teus e amá-los, tal como te amo a ti.

Durante duas horas ele disse tudo o que lhe ia na alma. Era possível que ela não o escutasse, mas ele precisava de desabafar. Precisava de dizer coisas que só a ela podia dizer e que melhor altura para isso que esta, em que ela não o podia ouvir! Manuel saiu do quarto dela cansado, mas aliviado. Nessa noite dormiu profundamente. Dormiu como não dormia fazia alguns anos. No dia seguinte, as notícias espalharam-se como um relâmpago: Célia tinha acordado do coma, logo pela manhã e os médicos deram-lhe alta. Foi um despertar providencial, pois o funeral do marido era à tarde. Manuel, como toda a aldeia, foi prestar a sua homenagem ao falecido e cumprimentar a família. Celia recebeu-o com um sorriso triste, mas carinhoso e, quando este a cumprimentou, ela disse-lhe em surdina.

«Preciso de falar contigo. Podes passar por casa dos meus pais, depois do funeral?»

Manuel olhou para ela com surpresa. O tom dela era de quem precisava de ajuda e ele não iria negar-lha. Tinha-se afastado da vida dela uma vez, mas isso nunca mais voltaria a acontecer. Ele estaria ao lado dela, embora de forma reservada e distante, para tudo o que ela necessitasse. Aquilo que Célia tinha para lhe dizer era algo inacreditável. Na verdade, ela teve do o repetir mais de uma vez, para ele acreditar no que estava a ouvir.

«Eu escutei tudo o que tu me disseste, quando estava em coma. Quero que saibas que não existe nada que eu tenha de te perdoar. Quero, também, que saibas que nunca deixei de te amar, embora, nunca tenha faltado ao respeito ao meu marido. Finalmente, quero que saibas, que consigo entender a nobreza do teu gesto, mas que preferia que tivesses falado comigo sobre o assunto.»

«Hoje eu percebo isso. Deveria ter confiado em ti e falado contigo, mas é tarde para voltar atrás. Se a vida me desse uma segunda oportunidade eu não voltaria a cometer esse erro e iria agarrá-la com todas as minhas forças.»

«Eu não sei se a vida dá ou não segundas oportunidades, mas eu quero dar-te uma segunda oportunidade. Na verdade, quero dar uma segunda oportunidade a nós os dois. Quero dar uma oportunidade ao nosso amor.»

«O que estás a dizer»? Não brinques como meu coração que ele já sofreu demais.»

«Eu estou a falar muito a sério. Quero começar a namorar contigo e, depois de um período razoável, se tu quiseres eu quero casar contigo e viver o resto da minha vida ao teu lado. Serão as minhas segundas núpcias, mas a únicas feitas com amor.»

«Se eu quiser? Meu Deus, isso é tudo o que eu quero!»

Estavam apenas os dois na sala e selaram o sentimento que os unia com um beijo, terno, quente, longo e apaixonado. Era um beijo que encerrava o passado, marcava o presente e prometia o futuro

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