TECLADO

Depois de pensar um pouco sobre o assunto, Beatriz ficou irritada com a indisponibilidade do Manuel. Ele apenas partiria na madrugada de sábado e, portanto, poderia perfeitamente ter ido jantar com ela. Pegou no telefone para insistir com ele, mas recebeu uma chamada. Era a sua melhor amiga a convidá-la para ir jantar fora. Quando Beatriz lhe explicou a situação a amiga explodiu.

«Esse teu namorado não te merece. Eu no teu lugar não insistia com ele. Vem jantar connosco. Vão lá estar os nossos amigos todos.»

«Não sei, eu estou mesmo com saudades dele.»

«Não te rebaixes amiga. Olha que não é isso que vai fazer com que ele goste mais de ti.»

Beatriz não precisou de muito para se deixar convencer. Ela estava a precisar de se divertir e se o Manuel não queria estar com ela, pior para ele. O jantar ficou combinado para as 21 horas e ela decidiu gastar o tempo que lhe restava a tratar de si. Ligou para a sua massagista e foi libertar as tensões, numa bela massagem relaxante. A massagem era em casa e a massagista, depois de terminar, saiu e deixou-a a dormir. Ela tinha colocado um despertador para as 20 horas o que lhe permitiu repousar durante uma hora. À 20.30 estava a sair de casa, cheia de energia e boa disposição. Estava bela e sensual e os amigos reconheceram isso mal ela entrou pela porta do restaurante. Estavam todos no bar à espera que a mesa ficasse pronta para os receber, pois já passava um pouco das nove da noite.

Apesar de ser um jantar de amigos, o grupo era dinâmico, o que fazia que aparecessem, com regularidade, pessoas novas. Era esse o caso. Francisco era novo no grupo e reparou logo em Beatriz. A amiga que o trouxera já lhe tinha falado de todos e especialmente de Beatriz, a detetive. Ele, quando a viu chegar sozinha, sorriu de satisfação, pois ela era uma alegria para os olhos de qualquer um.

«A tua amiga Beatriz zangou-se com o namorado?» Segredou Francisco, ao ouvido da amiga que o tinha convidado.

«Não sei, mas não te preocupes que já ficaremos a saber.» Respondeu ela.

O jantar foi animadíssimo e, apesar de terem ficado sentados em lugares quase opostos, Beatriz não deixou de reparar que Francisco a observava. No início ela ignorou isso. Era uma mulher comprometida. No entanto, depois de notar a insistência dele, dedicou-lhe alguns minutos de atenção e tomou consciência de que ele era um homem muito interessante. O jantar terminou por volta das duas da madrugada, pois incluía uma sessão de fados. Depois disso, o grupo debandou. Beatriz estava com vontade de continuar a noite e a maioria dos solteiros do grupo acompanharam-na, sendo que entre eles se encontrava o Francisco. Após algum debate optaram por ir dançar. A amiga do Francisco estava entre aqueles que haviam ido para casa, pelo que ele ficou só. Isso fez dele o par natural de Beatriz. Quis o destino que ambos adorassem dançar e tivessem o pé leve e um jeito gingão, que lhes permitiu rodopiar pela pista com mestria. Embalada nos braços daquele jovem possante e bem parecido, Beatriz até se esqueceu de que tinha namorado. Foi uma noite inesquecível, mas que terminou de forma previsível.

«Gostava de voltar a encontrar-me contigo.» Disse Francisco.

«Como temos amigos em comum, é natural que os nossos caminhos se voltem a cruzar, um destes dias.» Respondeu Beatriz.

«Refiro-me a um encontro a dois, para nos conhecermos melhor.» Disse Francisco.

Beatriz esteve tentada a dizer que sim, mas depois a recordação do namorado preencheu-lhe a memória.

«Lamento, mas eu não estou disponível.»

Francisco abriu a boca para juntar alguns argumentos a seu favor, mas ela interrompeu-o.

«Não insistas, por favor. Eu gostei muito desta noite, por isso peço-te que não estragues a sua memória.»

Francisco engoliu as palavras. Ele sabia que ela tinha namorado e o facto de ter vindo sozinha jantar com os amigos, estava relacionado com a ausência forçada deste e não com a vontade dela de embarcar em aventuras.

«De acordo.» Disse simplesmente, embora com uma expressão perturbada.

«Boa noite e obrigado pelos maravilhosos passos de dança.» Disse ela, osculando-lhe a face.

Apesar de ter rejeitado o convite dele, ela não conseguiu esquecê-lo facilmente e foi com a sua imagem no pensamento que adormeceu, como se continuasse embalada pela música e rodopiando pelo salão, nos seus braços.

O insistente toque do telefone retirou-a, lenta e gradualmente, de um sono profundo. Tinha desligado o alarme com o propósito de dormir a manhã toda, pois tinha-se deitado tarde, mas a mão do destino tinha decidido outra coisa. Quando ouviu o primeiro toque pensou que estava a sonhar, depois, percebeu que o telefone estava efetivamente a tocar e tentou ignorá-lo. Quem quer que fosse não ia desistir, por isso, mais valia atender, talvez pudesse voltar para a cama em seguida.

«Sim.» Disse, com uma voz ensonada.

A pessoa que estava do outro lado não respondeu de imediato. Na verdade, tinha ficado surpreendida com a voz de sono dela.

«Desculpa, acordei-te!»

Beatriz tinha atendido sem sequer olhar o mostrador do telefone, por isso, ao reconhecer a voz do outro lado do aparelho, sobressaltou-se. Não era normal os seus clientes ligarem-lhe, depois dos casos serem encerrados e muito menos ao fim de semana.

«Fátima! O que se passa?»

«Não é nada. Apenas queria convidar-te para um evento, hoje. Vou receber uns amigos e gostava que os conhecesses. Nunca se sabe quando podem precisar dos teus serviços.»

«Obrigado Fátima, mas tinha pensado ficar o fim-de-semana a descansar.»

«O evento apenas te vai ocupar umas horas, podes descansar durante o resto do fim de semana. Se quiseres podes trazer o teu namorado.»

«Isso não vai ser possível, porque ele está fora do país.»

«Isso é mais uma razão para vires, em vez de ficares em casa sozinha!»

Beatriz refletiu um pouco. Os amigos não iam deixá-la ficar em casa sozinha, por isso, se não aceitasse o convite da Fátima iria ter de aceitar o deles. Apesar de gostar muito de estar com os amigos, não lhe apetecia voltar a estar com o Francisco. Ele representava muitas tentações às quais ela não queria ceder. Acabou por aceitar o convite. Ao contrário do que tinha pensado, quando terminou o telefonema já não tinha vontade de voltar para a cama. A empregada tinha colocado a casa em ordem e feito as compras da semana, pelo que não havia muito para fazer. Estavam no solstício de junho e Beatriz decidiu aproveitar o tempo quente para dar um salto à praia. Almoçaria por lá e regressaria a tempo de comparecer ao evento de Fátima, pois já lhe tinha dito que apenas chegaria por volta das 20 horas. Chegou à Costa de Caparica perto da hora de almoço e foi logo dar um mergulho. Depois, deixou-se ficar ao sol até o bikini secar e só depois foi almoçar. O Borda D’água estava cheio e bem frequentado. Por coincidência, um casal de estrangeiros levantou-se, quando estava a chegar. A sorte estava do seu lado! Tudo o que ela queria era algum sossego, que parecia difícil de alcançar. O telefone não parava de tocar e, depois de atender dois ou três telefonemas, ela colocou-o em silêncio e ignorou-o. Quando se preparava para comer, o empregado chegou com uma bebida que ela não tinha pedido.

«Desculpe, mas deve ter-se enganado. Eu não pedi essa bebida.»

«Esta bebida é oferta do cavalheiro que está sentado na mesa do canto, lá ao fundo.»

«Pois vai levar a bebida de volta. Eu não aceito bebidas de desconhecidos.»

«Mas…»

«Já lhe disse que não aceito bebidas de desconhecidos e recuso-me a beber algo que não pedi.» Disse ela, de forma seca e interrompendo o empregado.

«Com certeza.»

Mal tinha acabado de falar assim arrependeu-se logo. Não queria aceitar a bebida, mas o empregado não tinha culpa da situação, pelo que não deveria ter descarregado nele a sua irritação.

«Desculpe…» Disse ela, dirigindo-se ao empregado.

O empregado voltou-se solicito.

«Eu não posso nem quero aceitar a bebida, mas o senhor não tem culpa da situação. Peço desculpa pela forma como falei. Agradeço que devolva a bebida ao senhor.»

«O que devo dizer-lhe?»

«Não tenho nada a dizer ao senhor. Apenas quero que respeitem a minha privacidade.»

«Com certeza.»

Pelo canto do olho, ela percebeu que o homem que lhe tinha enviado a bebido sorriu, perante a rejeição, mas não ia desistir. Não ia ter o sossego de que estava à espera. Só esperava que não tivesse de se aborrecer com o homem.

«Beatriz!» Exclamou a Jovem.

Ela reconheceu de imediato a voz da amiga e virou-se na sua direção. Joana vinha acompanhada do namorado e do irmão deste, que era homossexual. Tinha-se acabado o sossego, mas pelo menos evitava o assédio de seu admirador ocasional. Acabou por ser uma tarde muito interessante. Deu um belo passeio pela praia e o resto do tempo foi passado entre mergulhos e risadas. O irmão do namorado da amiga era um excelente contador de histórias e eles não pararam de rir.

Fátima recebeu-a com um abraço e um sorriso de verdadeiro prazer. Beatriz, independentemente de estar apenas a fazer o seu trabalho, como esta costumava afirmar, salvou-a em termos financeiros. Por isso, ela não lhe poupava elogios quando falava com os amigos, no entanto, nem todos os presentes conheciam a história. O grupo era constituído por um pouco mais de duas dezenas de pessoas e Beatriz foi apresentada, pela Fátima, a cada uma delas, o que deixou claro, para o grupo, o apreço de Fátima por ela. Depois da atuação da violinista convidada, seguiu-se um jantar volante, onde foram servidos um vasto conjunto de iguarias e durante o qual Beatriz teve oportunidade de conhecer Manuel Nunes de Abreu. Tratava-se do CEO de um grande grupo hoteleiro, divorciado e um pouco mais velho que Beatriz. Ao vê-la só, tentou de imediato a sua sorte, tendo-se aproximado do pequeno círculo, onde ela contava uma das suas aventuras. Quando ela terminou a história, ele aproveitou a oportunidade.

«Acho a profissão de detetive fascinante, mas confesso que não estava a ver uma mulher a desempenhá-la.» Disse o Nunes de Abreu, depois de se apresentar.

«Esse é um preconceito com que tenho de lidar muitas vezes.» Respondeu ela com um sorriso.

«Tem toda a razão é um preconceito. Ainda bem que nos cruzamos para eu ter a oportunidade de mudar a minha forma de pensar em relação a esse assunto.»

Beatriz gostou da resposta. A maioria das pessoas não gostava de ser chamada à atenção para o preconceito, mas ele assumia-o com frontalidade. Apesar disso, havia algo estranho na aproximação dele. Era como se esta tivesse sido propositada. Mais tarde, quando questionou Fátima sobre o assunto ela não soube esclarecê-la. Na verdade, ele tinha aparecido a pedido do advogado dela e era tudo o que ela sabia. Não tardou muito estavam os dois a falar, animadamente, sobre o tipo de caso que ela tinha de enfrentar. Foi nessa altura que ele se lembrou que ela era a pessoa ideal para desvendar um mistério que se tinha passado nos escritórios centrais do grupo. Depois de definidos os honorários e de ela lhe ter enviado uma minuta de um contrato, combinaram encontrar-se, na segunda feira, para o assinar e Beatriz poder iniciar o trabalho.

Na segunda feira, quando a maioria dos colaboradores chegou, já ela conhecia os detalhes do mistério que teria de resolver. Na verdade, era algo relativamente simples. Há pouco mais de quinze dias o diretor financeiro chegou ao escritório e sentiu um cheiro intenso e desagradável que o incomodava de forma estranha. Deu várias voltas ao seu gabinete e não conseguiu identificar de onde provinha o cheiro. Quando se sentou e debruçou sobre o teclado do computador, o cheiro tornou-se tão intenso que ele ficou com dores de cabeça e dificuldades em respirar. Ainda assim, ligou o computador e começou a introduzir a senha secreta. Foi aí que sentiu que o teclado estava coberto de uma substância brilhante e viscosa. Levantou o teclado e, por debaixo deste, no tampo da mesa, estava uma mancha com aspeto viscoso. Era daí que provinha o cheiro. De imediato chamou a assistente para saber quem tinha estado no gabinete e, em conjunto, limparam a mesa. Depois chamou os serviços informáticos e pediu para lhe trocarem o teclado, solicitando que guardassem o sujo para futura averiguação da substância que tinha sido derramada sobre este e que aparentava ter algum grau de toxidade. Infelizmente, uma semana depois o teclado desapareceu da sala de informática, de forma misteriosa. Aquilo que se pretendia dela era que descobrisse quem tinha derramado o líquido no teclado e quem o tinha feito desaparecer, bem como as razões que tinham motivado os autores das duas ações.

«Eu posso investigar, mas não consigo garantir o resultado, pois tudo vai depender da informação que conseguir obter dos colaboradores da empresa e não tenho, sobre estes, qualquer autoridade que os obrigue a responder às minhas perguntas.»

«A Beatriz vai ter carta branca para fazer a investigação. Às 9:30 vamos ter uma reunião geral, em que a vou apresentar e informar a empresa do seu papel.»

Beatriz foi levada para a sala de espera onde aguardou que a chamassem. Entretanto, Nunes de Abreu pegou no telefone e fez uma ligação, para a namorada.

«Olá querida, podes dizer ao teu irmão que o processo foi colocado em marcha. Não sei muito bem o que pretendes alcançar com isto, pois, seja qual for o resultado, não vai alterar em nada a situação do teu irmão.»

«Manuel, isso não vai restituir a fortuna e o bom nome ao meu irmão, mas ela vai aprender que quem brinca com o fogo se queima.»

«Sabes que eu não te consigo negar nada, mas tenho que ter cuidado para não me queimar também.»

«Não me digas que estás com dúvidas!» Disse ela, em tom ameaçador

«Não te preocupes. Se o teu irmão quer que eu descredibilize essa Beatriz, é isso que vai acontecer. Seja o que for que eu tenha que fazer!»

Beatriz sabia que tinha de começar pela base. Por um lado, porque as informações que ela pretendia obter circulavam normalmente ao nível do “jornal de alcatifa”, por outro, porque se ganhasse a confiança da base de colaboradores, aumentaria a probabilidade de obter boas informações daqueles que efetivamente viram alguma coisa. Começou pelo secretariado.

Recebeu, em simultâneo as duas secretárias que davam apoio a toda a direção e ao CEO. Eram a Ana Pina e a Filipa Vieira. Na verdade, a Ana era mais a secretária do CEO, dependendo hierarquicamente deste, embora também apoiasse a direção. A Filipa dependia diretamente do diretor financeiro, que também tinha a responsabilidade dos recursos humanos. Depois de mais de uma hora de perguntas e respostas, Beatriz não obteve nenhuma informação diretamente relevante para o caso, mas ficou com a ideia que Filipa se sentia ameaçada pelo diretor financeiro e que Ana a acobertava. Eram duas pistas que tinha de explorar nas conversas com os colegas delas. Três dias depois ela tinha entrevistado todos os colaboradores da empresa e elaborou a sua primeira radiografia da situação. O diretor financeiro era um homem estimado e respeitado por toda a empresa, quer pelo seu conhecimento e disponibilidade em ajudar todos os que necessitavam, quer pela forma como tratava as pessoas. No entanto, existiam duas pessoas que fugiam a esta exceção, tendo sobre ele uma opinião diferente: A Ana e a Filipa. A Filipa era uma pessoa com muitas limitações, pouco fiável do ponto de vista da qualidade do seu trabalho, com problemas de memória, que nunca assumia as responsabilidades pelas suas falhas, indo ao ponto de mentir para as esconder. Para além de tudo isso, era altamente manipuladora. Ana, apesar de ser uma excelente profissional, tinha tomado a outra sob a sua asa, sobretudo porque comungavam da mesma fé e frequentavam a igreja católica, com o mesmo fervor. Sem se aperceber, era manipulada pela Filipa ao ponto de assumir as suas dores de forma irracional. O diretor financeiro era um homem exigente e por várias vezes tinha chamado à atenção de Filipa, quer para os seus erros, quer para o seu comportamento. Ela não lhe perdoava isso, ao ponto de fazer acusações de perseguição e tratamento inadequado. Ele, magnânimo, embora pudesse já ter desencadeado um processo de despedimento, tentava ajudá-la, falando com ela e aconselhando-a sobre a forma de melhorar a sua performance e comportamento. Ela fingia ouvir o que ele dizia, mas de acordo com os colegas, na sombra, conspirava contra ele. Era comum Filipa entrar em conflito com os colegas, mas arranjava sempre forma de sair destes como vítima, quando era ela que vitimizava os colegas que se atreviam a contrariá-la ou a apontar-lhe as falhas que ela cometia de forma sistemática. Era uma radiografia interessante, mas não permitia responder às questões a que se tinha proposto.

A entrevista com o diretor financeiro também não foi muito esclarecedora, embora lhe tenha deixado algumas pistas.

«Confesso que não sei porque a empresa está a dar tanta relevância a este caso. Se tivesse sido possível provar qual a substância que tinha sido derramada no teclado e esta fosse tóxica, eu seria o primeiro a pedir uma investigação. Assim, tudo isto é inglório.»

«Você acha que o líquido derramado, no teclado, era uma toxina?» Perguntou Beatriz, com uma expressão incrédula.

«Não tem que ser uma toxina. Eu sou extremamente sensível a odores. Há algum tempo alguém derramou no corredor um frasco de um líquido ambientador e eu tive que ir para casa, pois, para além de uma dor de cabeça horrível, comecei a ficar com as vias respiratórias obstruídas.»

«Quem sabia dessa sensibilidade?» Perguntou Beatriz.

«O facto foi público, por isso, penso que podia ser do conhecimento de toda a empresa.»

«A substância que estava no teclado tinha o mesmo cheiro que o tal perfume ambientador?»

«Não. Não era tão intenso, provavelmente, porque tinha sido colocado no dia anterior e o cheiro era mais desagradável.»

«Como é possível só ter sentido o cheiro no dia seguinte?»

«No dia anterior eu estava em teletrabalho.»

«Quem sabia desse facto?»

«Ninguém, porque eu não informei a empresa.»

«Sabe de alguém que possa querer prejudicá-lo ao ponto de colocar no seu teclado um produto com um efeito toxico para si?»

«Não.»

«Tanto quanto sei o teclado foi entregue às pessoas da informática. Sabe em que circunstâncias ele desapareceu?»

«Não. A única coisa que sei é que não deveria ter desaparecido e posso dizer-lhe que não excluo conivência dos serviços de IT no desaparecimento do teclado.»

«Eu já entrevistei todas as pessoas da empresa e não consegui obter nenhuma informação relevante para o caso. Só me falta falar com as pessoas da informática, mas se esta situação se mantiver a investigação vai ser inconclusiva.»

«Quanto a isso não posso fazer nada. Já entrevistou os restantes prestadores de serviços, nomeadamente os de contabilidade e de advocacia?»

«Não.»

«Pois eu acho que deveria falar com eles.»

Todos os colaboradores da empresa de prestação de serviços tinham uma admiração profunda pelo diretor financeiro e foram unânimes em afirmar que a Filipa Vieira, para além de dizer, à boca cheia, que o diretor financeiro não era o seu chefe e que ela apenas respondia à Ana Pina, proferia ameaças, dizendo que lhe ia fazer a folha. Quando Beatriz os questionou sobre a razão porque nenhum colaborador da empresa tinha falado sobre o assunto, eles explicaram que a Ana deixava de falar a quem fizesse frente à Filipa e todos tinham medo que ela influenciasse o CEO contra eles. Para além disso, a Filipa recorria a todo o tipo de estratagemas para colocar as pessoas do seu lado. Era isso mesmo que tinha feito com um dos prestadores de serviços da equipa informática. Depois de ter colocado em causa a competência e capacidade deste e de ter deixado de lhe falar, arranjou forma de o convidar para almoçar, com direito a sobremesa. Beatriz quis saber mais e as revelações foram muito interessantes. Fazia quase três semanas, que Filipa tinha sido vista aos beijos ao jovem informático, de nome Fábio, e a partir daí foram várias as vezes que ele levou Filipa e Ana a almoçar. Na semana em que o teclado tinha desaparecido, a Filipa foi almoçar com o Fábio e foram vistos a sair do Ibis, da Casal Ribeiro.

«Isso pode apenas querer dizer que eles têm uma grande atração um pelo outro.» Disse Beatriz.

«Isso não sei. O que sei é que, ainda ontem, eles entraram à socapa no gabinete de informática, muito antes das nove da manhã e eu ouvi o seguinte diálogo:

Tenho que pensar muito bem o que vou dizer a essa detetive amanhã. Se ela descobre o que fizemos, podemos ter um problema.” Disse o Fábio.

“Queres dizer o que tu fizeste!» Disse a Filipa.

“O que fiz foi a teu pedido e para te safar.”

“Não interessa a razão. Foste tu que fizeste. No entanto se queres continuar a provar disto, é bom que ela não perceba nada. Para além disso, posso sempre complicar-te muito a vida”

“Sim, já sei. Não te preocupes que não vai ser por mim que ela vai ficar a saber.” Disse Fábio.

«Isso é muito interessante!» Disse Beatriz, coçando o queixo.

Depois de pensar um pouco sobre o assunto, decidiu adiar a entrevista com os técnicos de informática. Precisava de se aconselhar com o seu amigo da polícia judiciária. Depois de uma conversa com este ele acedeu a estar presente, embora não a título oficial, na conversa com o informático, desde que a conversa tivesse lugar no escritório da detetive. Ainda na própria sexta feira, Beatriz fez um telefonema para o dono da empresa prestadora de serviços e obteve a concordância deste, para falar com o colaborador dele, na segunda-feira, ao fim do dia, no escritório da detetive. Naturalmente, que não lhe disse que estaria presente alguém da judiciária. Para fechar a semana só faltava falar com o CEO. Foi falar com a secretária dele para ver se este a podia receber ao fim da manhã. Beatriz não sabia bem o que lhe dizer. Aquilo que tinha não era muito, mas era promissor. A dúvida era se deveria ou não abrir totalmente o jogo com ele. Por um lado, não gostava de elevar as expetativas, por outro, a posição do CEO tinha-a deixado desconfortável. Era como se ele estivesse a contratá-la para uma missão impossível, consciente desse facto. Decidiu deixá-lo no escuro.

«Estou num beco sem saída.» Disse ela à laia de conclusão.

«É pena. Eu tinha depositado muitas esperanças no seu trabalho, mas o resultado está a ser uma total desilusão, o que também não é bom para si. Isso significa que o relatório final vai ser inconclusivo?»

Beatriz achou o comentário do CEO estranho. Parecia que estava a torcer para que a investigação não desse nenhum resultado prático, ao mesmo tempo que se preparava para a julgar pelo facto. Tinha de ter cuidado com aquele cliente! Isso levou-a a fazer um comentário genérico.

«Ainda tenho que falar com os homens da informática, mas não me parece que isso venha a alterar o que quer que seja.»

Ele ficou a olhar para ela com a surpresa no rosto.

«Pensei que já tinha falado com toda a gente.»

«Não. Hoje vou ter de tratar de um outro caso, mas na segunda, ao fim do dia, o processo de indagação fica concluído e na terça-feira irei apresentar o meu relatório.»

O CEO pareceu mais uma vez surpreendido, mas limitou-se a assentir com a cabeça.

Beatriz tinha investido muito naquele caso durante a semana, tendo dedicado muito menos tempo do que gostaria aos outros casos, que como eram mais simples foram, apesar de tudo, sendo resolvidos com um menor envolvimento dela. Naturalmente, que isso fez com que trabalhasse demasiadas horas, tendo ignorado os telefonemas e as mensagens que enchiam a caixa do seu telemóvel. A amiga que lhe tinha apresentado o Francisco tinha-lhe ligado várias vezes e Beatriz decidiu responder quando já eram 22:00 de sexta-feira,

«Olá amiga. Desculpa não te ter respondido, mas a semana foi demasiado complicada para isso.»

«Não há problema. Na verdade, apenas te queria perguntar se posso dar o teu telemóvel ao Francisco. Ele não para de me telefonar a pedir o número e eu já não sei o que fazer.»

«É simples: dizes que eu não autorizei. Se eu quisesse que ele tivesse o meu número tinha-lho dado quando nos conhecemos. Ele quer algo que eu não lhe posso dar, por isso, o melhor é mantermo-nos afastados um do outro.»

«Não te preocupes que eu vou fazer com que ele entenda a mensagem.»

Beatriz estava cansada, mas não resistiu a sair com um casal de amigos. Foi um jantar tardio ao som de fados, numa das casas típicas de Lisboa. Regressaram cedo e ela adormeceu de imediato. No fim de semana, para variar foi até à praia sozinha, mas estava nostálgica. Ultimamente, estar só, incomodava-a mais do que no passado recente. O que era irónico é que não conseguia sentir verdadeiramente saudades do Manuel. Tinha falado com ele todos os dias da semana, quase sempre por iniciativa dela. Ele estava sempre apressado. Ou estava a trabalhar ou nos eventos sociais, que a deslocação incluía. Parecia que nunca tinha tempo para ela. Para além de tudo mais, desde que se conheciam que ele tinha evitado, a todo o custo, ter intimidades com ela. Isso fazia com que Beatriz sentisse que a relação deles sofria de um afastamento que não lhe permitia envolver-se de forma a sentir saudades. Depois de divagar sobre o assunto, enquanto caminhava sobre a areia, alheia aos olhares de admiração de que era alvo, deu um longo mergulho e estendeu-se sobre a toalha. Os seus vizinhos eram um casal com dois filhos, que quando a viram adormecer a tomaram sob a sua proteção. Isso foi notório quando os dois estranhos se aproximaram dela, de forma sub-reptícia. Eles pararam a alguns metros e sentaram-se na areia olhando à volta. Depois, foram-se aproximando até estar a pouco mais de dois metros dela. Nessa altura os dois filhos do casal foram sentar-se um de cada lado de Beatriz, olhando ostensivamente para os jovens, que se evaporaram, quase de imediato. Quando ela acordou, eles narraram-lhe o incidente ela ficou-lhes agradecida. Tinha muito pouca coisa na carteira, que estava na bolsa poisada ano chão, junto à sua cabeça, mas ainda assim a perca dos documentos seria sempre um transtorno. Acabou por almoçar com os vizinhos no restaurante da praia e dar uns bons mergulhos acompanhada pelos dois adolescentes, que enfunavam o peito levando muito a sério o papel de guarda-costas.

O que ela não estava à espera era de precisar de guarda costas de verdade. Quando chegou a casa, a vizinha da frente entregou-lhe uma encomenda que tinha chegado para ela durante o dia. Foi uma sorte ela ter-se cruzado com o homem das entregas, pois de outra forma teria que ir, na segunda feira, levantar a encomenda. O embrulho tinha um remetente que lhe pareceu estranho. Antes de abrir a encomenda foi pesquisar a morada. Esta situava-se na mesma rua da empresa que a tinha contratado para o caso do “teclado”, mas tinha a particularidade de referir um número de polícia que não existia. Abriu a encomenda com todos os cuidados. Depois de retirar de dento da caixa uma grande quantidade de papeis amassados, encontrou aquilo que procurava. A primeira folha tinha um desenho que simbolizava uma explosão e dentro deste a expressão BOOM! O segundo tinha o seguinte texto:

Desta vez foi apenas uma brincadeira, mas se não desistir do caso do teclado… talvez não esteja cá para ver o resultado!

Era claramente uma ameaça. Ligou para o seu amigo da judiciária e este arranjou forma de a queixa ser apresentada ainda no sábado e de o caso lhe ser entregue.  Ele iria acompanhar a investigação da detetive, como parte da sua própria investigação sobre a ameaça de atentado à bomba. Beatriz não levou a ameaça a sério, embora a judiciária a tenha aconselhado nesse sentido. Assim, no domingo foi à praia apenas de manhã, sozinha e sem qualquer proteção, apesar de ter regressado a tempo de almoçar em casa. Depois, passou a tarde a ler e foi para a cama cedo.

Segunda-feira chegou ao escritório cedo e procurou despachar os assuntos pendentes, encerrando mais um caso, antes de rever os documentos e notas das suas indagações, relativas ao caso do teclado. A entrevista do final do dia seria decisiva para o resultado do seu trabalho. Fábio chegou à hora marcada e achou normal que ela estivesse acompanhada, assumindo que o homem fosse o sócio dela.

«A informação que recolhi até agora aponta para uma situação em que pode existir um crime, ou pelo menos a prática de atos ilícitos, por isso eu pedi a presença de um membro da polícia judiciária. De momento, ele está aqui apenas como observador, mas isso pode mudar, dependendo das suas respostas.»

Fábio encolheu-se na cadeira. Um calafrio subiu-lhe pela espinha e as palavras da Filipa vieram-lhe à memória.

«Diga-me tudo o que sabe sobre o teclado.»

Fábio falou de forma cautelosa, mas fez um retrato fiel dos factos, até ao momento em que o teclado foi entregue ao departamento informático para ser guardado.

«O Fábio sabia que estava a ser preparada uma análise laboratorial do produto que tinha sido derramado no teclado?»

«Sim.»

«O Fábio tinha consciência de que era obrigação do departamento manter o teclado guardado para permitir a realização da análise?»

«Isso já não sei. O teclado foi entregue ao meu colega e ele limitou-se a colocá-lo num saco plástico, para evitar a propagação do cheiro.»

«De que forma é que ele acondicionou o teclado?»

«Colocou-o dentro de uma embalagem de um teclado novo, que tínhamos acabado de receber e fechou-a com fita-cola.»

«Onde é que ele deixou o teclado?»

«Em cima da estante que fica mesmo ao meu lado.»

«O Fábio mexeu no teclado?»

«Sim.»

«Explique isso melhor.»

«O teclado não me pareceu bem acondicionado, por isso coloquei-o dentro de um saco do lixo preto e isolei tudo bem com fita cola e voltei a colocar tudo dentro de um saco do lixo preto.»

«Porque sentiu necessidade de isolar o teclado?»

Fábio ficou calado. Via-se que se debatia, interiormente, com um dilema qualquer de cuja resolução dependia o tipo de resposta a dar. Beatriz optou por não o pressionar.

«Tinha receio que o produto do teclado pudesse vazar e contaminar o espaço onde trabalho.»

«Por quê? Você sabia que o produto que tinha sido derramado no teclado era tóxico?»

«Não.»

«Então o que o levou a isolar o teclado da forma que descreveu?»

«Foi o medo. O medo de algo que desconhecia.»

«Porque colocou o teclado, depois de isolado, dentro de um saco preto, dando-lhe uma aparência de lixo?»

Fábio ficou atrapalhado e começou a gaguejar, sem dar qualquer resposta. Beatriz insistiu com nova pergunta.

«Onde colocou o saco com o teclado?»

«Coloquei-o no chão, junto ao caixote do lixo.»

«Isso não é o mesmo que colocá-lo no lixo?»

«Não.»

«Então como era suposto as empregadas de limpeza distinguirem esse saco do lixo normal?»

Fábio ficou vermelho e emudeceu. Nessa altura o homem interveio pela primeira vez.

«Qual é a sua relação com a Filipa Vieira?»

Fábio entrou em pânico. Se a relação se tornasse do conhecimento público, Filipa teria problemas com o marido e ele com a namorada. O que só por si já era mau. No entanto, se alguém tivesse escutado as conversas deles estariam muito pior, porque seguramente que perderiam o emprego. Decidiu correr o risco e manter a versão acordada com a Filipa.

«Somos colegas e amigos.»

«Foi para celebrar essa amizade que passaram, os dois, uns momentos agradáveis no Ibis da Casal Ribeiro, há umas semanas atrás?»

«Como? Como é que souberam?»

«Da mesma forma que sabemos que vocês os dois gostam de se encontrar às escondidas, na empresa, para trocarem provas da amizade que têm um pelo outro.» Disse o homem, em tom jocoso.

«Também sabemos o teor das conversas que têm no seu gabinete, à porta fechada, como aquela que tiveram, na sexta-feira, ainda antes das nove da manhã.» Disse Beatriz.

A postura de Fábio alterou-se radicalmente. Ele dobrou o corpo para a frente. Colocou a cabeça entre as mãos e ficou em silêncio. Não existia nenhuma saída fácil para a embrulhada em que se metera. Estava perdido de qualquer forma, por isso, o melhor era manter o silêncio.

«Não tenho mais nada a dizer.»

«É importante que saiba que o seu colega antes de ir de férias, retirou três teclas do teclado e retirou fotografias deste, antes e depois da operação. Neste momento as teclas estão a ser analisadas e caso a substância encontrada seja tóxica, você vai ser acusado da coautoria do crime de envenenamento. Se confessar a sua intervenção, assumindo que não foi responsável pela colocação do produto no teclado, apenas poderá ser acusado de fazer desaparecer provas. Essa acusação acaba por cair por terra, uma vez que o desaparecimento do teclado não fez com que as provas desaparecessem.»

Fábio, quando viu que a possibilidade de não ser acusado de qualquer crime era real, mudou de opinião e confessou tudo. Claro que ele não sabia a história do colega ter retirado as teclas era uma invenção. A Filipa sabia que o diretor financeiro tinha algum tipo de alergia a perfumes ambientadores, tanto mais que já tinha tido um episódio, que o obrigou a ir para casa. O que ela queria era provocar-lhe um problema de saúde que o levasse a ser internado, por isso colocou o produto no teclado, logo de manhã, antes dele chegar ao escritório. Assim, ao respirar diretamente o produto, ela esperava causar-lhe problemas sérios. Quando percebeu que o teclado ia para análise pediu-lhe que arranjasse forma de fazer desaparecer as provas, em troca de alguns momentos de intimidade.

Beatriz retomou o interrogatório.

«Como justifica que ela tenha colocado o produto num dia em que ele não foi trabalhar? No dia a seguir o efeito foi quase irrelevante!»

«Essa foi a primeira coisa que correu mal. Ele não colocou na plataforma a informação de que iria trabalhar a partir de casa e ela pensou que ele viria ao escritório.»

«Qual era o objetivo da Filipa? Era matar o diretor financeiro?»

«Não. A ideia era apenas causar-lhe um problema sério que o levasse a ser hospitalizado, mas sem que o dano fosse permanente.»

«Como é que ela podia ter a certeza de que não existiriam danos permanentes?»

«Ela não tinha a certeza, foi por isso que ficou em pânico, quando percebeu que o teclado iria ser analisado.»

«O que fizeram para tentar impedir que a Beatriz investigasse o caso?» Perguntou o agente.

«Como? Nada. Não fizemos nada. A Filipa obrigou-me a prometer que eu não dizia nada sobre o que ela me tinha pedido e a assumir o que tinha feito ao teclado.»

«Ela não disse mais nada?»

«Também disse para eu não me preocupar que era possível que a detetive desistisse da investigação, durante o fim de semana. Eu não lhe liguei, porque percebi que ela apenas estava a tentar tranquilizar-me.»

«Então você não sabe nada sobre o atentado do fim de semana?»

«Atentado! Qual atentado?»

Fábio estava baralhado e em pânico. Pelos vistos a coisa tinha-se complicado, mas ele desconhecia, por completo, aquilo que se tinha passado e isso refletia-se na sua expressão de surpresa.

«Sim, durante o fim de semana houve um atentado contra a vida da Beatriz e é por isso que a judiciária está envolvida.»

«O quê? Não me diga que também usaram produtos tóxicos!»

«Não. Usaram uma bomba!»

Fábio arregalou os olhos de surpresa e medo. Subitamente, o assunto tinha ficado demasiado sério. Ele não podia ser associado a um atentado bombista.

«Eu não tenho nada a ver com isso, nem sei de nada. Juro!»

«Eu estou tentado a acreditar, mas vou precisar que me ajude a identificar o culpado.»

«O que tenho que fazer?»

«Vai combinar um encontro com a Filipa, para amanhã às 8:30 e vai fazer com que ela confesse ser a autora do atentado e de ter colocado o produto no teclado. Nós vamos gravar a vossa conversa.

Fábio concordou e depois assinou o depoimento, que também tinha sido gravado. Beatriz e o agente assinaram também. Ele como autoridade responsável pelo interrogatório e ela como testemunha.

No dia seguinte, logo pela manhã, Fábio encontrou-se com a Filipa. Tinha sido ela a tomar a iniciativa de combinar o encontro, pois estava curiosa sobre o resultado do interrogatório de Fábio. Antes de começarem a falar ele deu-lhe uns beijos e obrigou-a a satisfazê-lo, ainda que ela tivesse protestado muito.

«Agora conta-me tudo!» Ordenou ela.

«Foi simples e fácil. A detetive está com medo de alguma coisa. Nem sequer me levou a falar do meu envolvimento no desaparecimento do teclado.»

«Então eles não sabem que fui eu que coloquei o ambientador no teclado, nem que te pedi para o fazeres desaparecer?» Perguntou ela.

«Não. Na verdade, eles não sabem nada, nem sequer que somos amantes.»

«Ótimo!» Disse ela.

«Aquilo que eu não consigo perceber é o que levou a detetive a recuar. Alguém com muito poder deve ter tido uma conversinha com ela. Achas que foi a nossa administração? É que ela estava mesmo com medo.» Perguntou Fábio.

«Tu és muito ingénuo. Ainda não percebeste que isso foi obra minha?»

«Tua? Como? Tu tens algum poder sobre ela?»

Filipa riu-se com gosto. Ela era uma pobre coitada com muitas limitações profissionais, por isso, gostava de saborear esses pequenos momentos de glória. Apesar de estar à beira de fazer um grande disparate, não resistiu de se vangloriar do seu feito.

«Eu enviei-lhe uma caixa com uma ameaça de bomba, caso ela não desistisse do caso.»

«Como obtiveste a morada dela?»

«Foi simples. Fui ao gabinete do Nunes de Abreu, aproveitei o facto de ele ter deixado o computador ligado e acedi ao ficheiro dela. Estavam lá o contrato de prestação de serviços e os seus dados pessoais.» Disse Filipa, com um sorriso triunfante.

«Tu és diabólica!»

«É importante que percebas isso. Eu consigo sempre aquilo que quero, nem que tenha de utilizar os meios menos ortodoxos possíveis!»

«Tu eras mesmo capaz de matar a detetive?»

«Se fosse necessário era.»

«E o diretor financeiro?»

«Esse vai morrer sim, mas muito lentamente.»

Estava tudo dito e o escritório começava a encher-se de pessoas, por isso, era perigoso continuarem ali os dois. Entretanto, Beatriz ligou à Filipa, logo depois do encontro com o Fábio e pediu-lhe para ir ao escritório dela. A forma humilde como o fez era condizente com o estado de pânico em que devia estar e Filipa não perdeu a oportunidade de ir ver, ao vivo, o resultado da sua pequena façanha. Quando lá chegou, percebeu que se encontrava na presença de uma equipa da judiciária, que a confrontou com o testemunho do Fábio. Filipa ainda tentou dar a volta à situação, mas quando ouviu a gravação, a máscara caiu-lhe e iniciou um discurso incoerente, numa tentativa vã de justificar os seus atos, dizendo que apenas estava a defender-se da perseguição de que era alvo e a garantir que não era prejudicada por ninguém. Depois de assinar a confissão, ela ficou em prisão até ao dia seguinte, data em que seria presente a um juiz, para que este determinasse as medidas de coação. Ela pediu que a empresa não fosse informada, pois queria fazê-lo, depois de ir a tribunal e com o algum conhecimento de qual seria o seu futuro.

Beatriz produziu um relatório completo e detalhado da situação e solicitou ao CEO uma reunião, para o apresentar e discutir. Este não quis falar com ela e respondeu, por email, dizendo preferir que ela apresentasse o relatório, na quarta à tarde, durante a reunião do conselho de Administração. Ela argumentou, escrevendo:

“Muito bem. Nesse caso vou enviar-lhe o relatório para seu conhecimento prévio. Penso que deveria tomar conhecimento das conclusões antes de eu apresentar o relatório.»

«Por favor não envie nada. Eu prefiro conhecer o relatório ao mesmo tempo que os restantes membros do conselho.»

Beatriz, quando viu o email dele riu-se com vontade. O CEO estava à espera de a ver apresentar um falhanço completo e seguramente que se preparava para a humilhar e descredibilizar e ela iria tirar-lhe o tapete de forma magistral. Chegada a hora da reunião o CEO fez as honras da abertura.

«Como sabem contratamos uma detetive particular, com provas dadas, embora me pareça que até hoje tenha tido a sorte de não ter pela frente um caso com a complexidade do nosso. Este é um dos casos que permite distinguir o trigo do joio.  Hoje vamos ficar a saber se ela resolveu o caso e faz jus à sua fama, ou se apenas tem tido sorte e não passa de um verdadeiro fiasco.»

Eram palavras duras, que tinham subjacente um julgamento, mas ditas de uma forma que pretendia passar a imagem de uma isenção, que as próprias palavras traíam. Era como se ele conhecesse o resultado do trabalho e antecipasse um juízo sobre o mesmo. A segurança das palavras proferidas fez com que todos os olhares se concentrassem em Beatriz, buscando o efeito das mesmas. O CEO perscrutou-lhe o rosto e não deixou de a admirar. Apesar do ataque cerrado que lhe tinha lançado, ela não evidenciava qualquer sinal de fraqueza.

«Sem mais demoras passo a palavra à Beatriz, para nos apresentar as conclusões da sua brilhante investigação.»

«Depois desta reunião irei enviar para todos o relatório detalhado, mas para não vos tomar muito tempo irei apenas apresentar dois slides. O primeiro tem a minha apresentação e a da agência, o segundo as conclusões da investigação.»

Quando ela apresentou os resultados a confusão instalou-se na sala. Nos últimos dois dias a investigação tinha registado uma reviravolta magistral. A coisa era de tal forma que tinha levado ao envolvimento da polícia judiciária, devido a ameaças de morte e de atentados à bomba! Os olhares concentraram-se no CEO, pois era ele que geria este dossier e não era aceitável que o mesmo chegasse ao conhecimento do conselho daquela forma. O presidente do conselho fez um comentário cáustico.

«Não percebo a razão porque não nos foi dado conhecimento do relatório antes da sua apresentação formal. Isto limita-nos imenso a margem de manobra.»

«Concordo consigo, mas o vosso CEO recusou-se, por escrito, a receber-me e a receber o documento, ontem. Para além disso, solicitou, de forma expressa, que fosse apresentado hoje, nesta sede.» Disse Beatriz com um sorriso de triunfo.

O CEO estava apoplético.  A detetive tinha-lhe tirado o tapete completamente. Ainda assim, ele tentou endossar a responsabilidade para ela.

«Na última reunião que tivemos a Beatriz disse-me que não ia chegar a nenhuma conclusão. Como é possível agora apresentar-nos este resultado. Eu fui enganado!»

«A última reunião, como sabe, foi na sexta feira passada, de manhã. Nessa altura ainda não estava concluído o processo de entrevistas, o que só aconteceu ontem. Eu tentei dizer-lhe isso mesmo, como se pode ver pelos emails que constam do relatório, mas o senhor não me quis ouvir…»

Era escusado tentar reverter a situação. Depois da apresentação de Beatriz e do diálogo que se seguiu, era óbvio que a detetive tinha obtido um triunfo em toda alinha e que o CEO a tinha tentado humilhar, tendo acabado por se humilhar a si próprio. A reunião terminou de forma abrupta e tumultuosa, mas isso já não era um problema dela. O conselho tentava agora ver como podia controlar os danos resultantes do facto da empresa estar envolvida numa investigação criminal. Ainda por cima a pessoa envolvida era uma secretária. O cargo de secretária era um cargo de responsabilidade e confiança, sobretudo quando esta podia ter acesso a informação apenas disponível ao CEO. Para além de todos os outros inconvenientes, isso fazia, ainda, com que a detetive pudesse processar a empresa no âmbito do Regime Geral de Proteção de Dados. O processo era, todo ele, uma grande trapalhada!

Depois da reunião, Nuno fechou-se no gabinete e analisou a situação à luz das consequências para si próprio. Em primeiro lugar, iria ter um problema com a namorada, pois, em vez de ter conseguido descredibilizar a detetive, tinha-lhe dado a oportunidade de brilhar. Isso mesmo tinha sido notório na conferência de imprensa da polícia judiciária. Em segundo, ele tinha fechado os olhos ao relatório que o diretor financeiro lhe tinha enviado sobre a Filipa Vieira, cujo conteúdo era confirmado e ganhava outra dimensão, pelas acusações que pendiam sobre ela. Isso podia virar-se contra ele, caso o financeiro decidisse dar visibilidade ao relatório e à resposta escrita que ele tinha dado a este. Talvez estivesse na altura de premiar o diretor, trazendo-o, dessa forma, para o seu lado. Depois de ponderar tudo, decidiu não fazer nada, de imediato e “dormir” sobre o assunto.

Manuel chegava ao fim do dia e Beatriz propôs-se ir esperá-lo ao aeroporto. Depois de um cumprimento bem efusivo, Beatriz perguntou.

«Vamos para minha casa?»

«Não. Eu estou muito cansado e não vou ser boa companhia. Deixas-me ficar à porta de casa e matamos saudades amanhã. Para recuperar, eu vou precisar de dormir 12 horas seguidas.»

Beatriz ficou a olhar para ele com uma expressão de desconsolo que metia dó, mas Manuel não se deixou influenciar. Depois de o deixar à porta de casa ela pensou: “Talvez seja melhor ele descansar, pois a conversa que precisamos de ter vai ser muito séria.” Ficou a vê-lo entrar em casa e depois arrancou em direção ao escritório. Já que não podia estar com o namorado, ia aproveitar para pôr os casos em dia. Quando terminou já era tarde e pensou: “Para bem da minha saúde, tenho que abrandar o ritmo de trabalho, até porque não preciso de faturar assim tanto”. Tinha chegado a altura de introduzir algumas mudanças na sua vida!

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