Nuno entrou com todos os cuidados no supermercado. Já estava atrasado, mas não queria deixar de respeitar as regras que se impunha a si próprio, quando ia às compras. Apesar de já não ser obrigatório, ele continuava a usar a máscara e fazia uma cara feia a todos os que não a usavam. Claro que isso apenas lhe granjeava olhares desagradáveis, que oscilavam entre o interrogador e o furioso. Ele virava a cara e continuava o seu percurso, sem deixar que isso o afetasse.
Outra das coisas que o incomodava, eram as pessoas que, para além de não usarem luvas, sentiam que tinham de revirar todos os produtos, para escolher um muito específico. Apesar de já ter atentado, muitas vezes, nessas escolhas, ele não descortinava diferença entre o produto selecionado e os que tinham sido rejeitados. Isso fazia que ele lavasse e limpasse todos os produtos, antes de os guardar no frigorífico. Nesse dia a coisa assumiu proporções bíblicas. A senhora que estava a escolher o tomate revirou a caixa toda até encontrar a meia dúzia de tomates que pretendia levar. Tinha o jeito de uma madame, não apenas pela forma como se tinha arranjado, mas também pelos comentários que ia fazendo para si própria. Olhava tudo com desdém e, de quando em vez, acrescentava um comentário depreciativo. Nuno aguardou, pacientemente, que ela terminasse e lhe deixasse espaço para encher o saco que segurava nas mãos. Antes de se afastar ela virou-se para ele e, baixando a máscara, pediu.
– Importa-se de me alcançar um ramo de salsa da bancada superior?
Nuno, em vez de a ajudar, deu um salto para trás, afastando-se para lhe dar a oportunidade de colocar novamente a máscara. A senhora olhou-o, primeiro com surpresa, depois com desdém e passou o dedo indicador direito pelo nariz, limpando-o e preparando-se para comentar o comportamento dele. O espirro veio sem aviso e ela, em vez de tapar a boca com as mãos ou com o antebraço, virou-se para a bancada do tomate e lançou sobre esta uma miríade de gotículas, qual borrifador de plantas. Foi de tal forma que as gotículas se tornaram visíveis sobre a pele vermelha e lisa dos tomastes. Nuno não se conteve.
– Então a senhora para além de retirar a máscara para falar comigo, ainda aproveitou a oportunidade para espirrar para cima dos legumes? Isto é totalmente inaceitável. Disse ele, aos berros,
Gerou-se logo ali uma grande confusão. De um lado colocou-se um grupo que defendia o uso da máscara, do outro os que diziam que isso não era obrigatório e representava uma limitação à liberdade inaceitável. Um terceiro grupo, o dos neutros, tentava, a todo o custo, apaziguar os ânimos. Nuno era dos mais exaltados. Só de imaginar as gotículas de saliva da senhora, espalhadas pela bancada de legumes, dava-lhe a volta ao estômago. Pegou num guardanapo e limpou os tomates que pretendia levar e foi para a caixa, onde apresentou uma reclamação formal contra o supermercado e a prevaricadora. Isso fez com que se atrasasse ainda mais.
Apressou-se em direção a casa. O jantar estava pronto e ele apenas tinha de colocar a mesa e fazer uma salada, mas nem isso teve tempo de concluir, antes de o primeiro convidado chegar. Os outros seguiram-se ao primeiro, numa cadência intensa e ao fim de cinco minutos já estavam todos na cozinha a preparar as bebidas e a ajudar a terminar os preparativos da refeição. Quando se sentaram à mesa, Nuno decidiu partilhar a sua aventura do supermercado, convencido de que teria a simpatia de todos os seus convivas.
Embora todos condenassem o facto de a senhora ter espirrado para cima dos legumes, o uso da máscara gerou uma discussão interminável. As opiniões foram as mais dispares e contrárias possíveis.
– O problema é do foro legal e político. Se o governo não tivesse decidido que o uso de máscara deixava de ser obrigatório nada disso aconteceria. A partir do momento em que essa decisão foi tomada, o que importa é a liberdade das pessoas. Disse Ricardo.
– E onde fica a ética? Aquilo que a lei define são as obrigações mínimas, mas isso não quer dizer que não tenhamos uma obrigação, que resulta de existência de uma ética, de valores e de princípios. Disse o João.
– Ética? Isso é o tipo de argumento que os nossos líderes usam para nos coibir de agir de acordo com a liberdade e latitude que a lei nos permite. Disse a Rita.
– Não exageremos, Rita. A ética e os princípios têm de existir, senão cada um faz a interpretação que mais lhe convém da lei e da latitude que a sua liberdade lhe confere! Disse a Vanessa.
– Parece-me inacreditável que os governos, o nosso e todos os outros, não se entendam entre si e que os técnicos e especialistas tenham opiniões diferentes consoante o país e a organização que representam e que, depois, apelem à responsabilidade do cidadão. Os responsáveis por tudo, agem de forma irresponsável e esperam do cidadão um comportamento como se este fosse responsável pela e situação e conhecedor da mesma, para poder ajuizar sobre o comportamento mais adequado. Disse o Pedro.
Os outros olharam-no com surpresa. Era a primeira vez que ele fazia um comentário tão extenso e sistematizado. Afinal, talvez ele não fosse tão tonto como eles tinham imaginado!
– Esta discussão não faz sentido nenhum. Esta história da pandemia e das vacinas não passa de uma jogada das grandes farmacêuticas e fabricantes de produtos afins, para aumentarem as vendas e os lucros. Em vez de nos distrairmos com discussões inúteis, deveríamos boicotar o uso desses produtos e praticar a desobediência civil. – Disse a Vitória.
Era uma opinião polémica, mas foi apresentada com tal veemência que os restantes hesitaram alguns instantes em contestá-la. Depois, desataram todos a falar ao mesmo tempo, discordando dela e expondo os mais variados argumentos e raciocínios. Vitória ignorou-os a todos com um gesto de desprezo. Era uma mulher de convicções fortes e usava a sua imponência física e estética, bem como a sua beleza, como arma de arremesso, para calar os outros. Quando isso não funcionava adicionava à violência verbal a física. Os resultados nem sempre eram os desejáveis, mas era assim que ela via a realidade. A tensão física em que estava tornava a situação explosiva. Carla olhou-a de forma estranha e tomou a palavra.
– Embora esteja chocada com a tua opinião, entendo que és livre de a ter e exprimir. No entanto, a negação da evidência científica não é saudável e, neste caso, coloca em risco as pessoas que convivem contigo. Não te esqueças que, embora sejas livre, a tua liberdade termina onde começa a dos outros.
Ao contrário do que os outros chegaram a temer, Vitória escutou a Carla quase com adoração. Não concordava com ela, mas tinha por esta uma grade admiração, talvez fosse bem mais do que isso. Relaxou o corpo e a tensão do rosto desanuviou-se. Depois, com um encolher de ombros, pegou no copo de vinho e esvaziou-o de um trago.
O jantar aproximava-se do fim. Nuno olhou à sua volta e questionou-se sobre o que o tinha levado a convidá-los para sua casa. Eles não tinham nada a ver com ele, eram água e azeite. Aparentemente, todos eles tinham consciência disso, no entanto, mantinham uma relação de proximidade mais intensa do que a que ele tinha com alguns dos amigos dos tempos de infância. O resto da noite não trouxe grandes novidades, nem fez com que as suas personalidades mudassem, tornando-se mais próximas, mas a cumplicidade entre eles aumentava a olhos vistos.
As notícias eram outra vez alarmantes. O número de infetados aumentava significativamente e os especialistas emitiam opiniões para todos os gostos. A pressão sobre o governo, no que dizia respeito ao uso da máscara, aumentava, mas este apressou-se a esclarecer que, não só não voltaria atrás com as medidas, como as iria, tendencialmente, tornar universais. Em breve o uso da máscara seria dispensável em todo o lado!