C O V – A ROLHA ASSASSINA

Vanessa estava revoltada com o resultado do seu ato de bondade. Tinha-se deixado levar pela emoção e fizera parte dos que se deslocaram até à fronteira da Ucrânia e trouxeram para Portugal vários exilados da guerra. Tinha sido uma atitude muito nobre da qual ela não se arrependia. No entanto, ela dera um passo adicional, que agora lhe estava a provocar algumas dores de cabeça. Ela tinha cedido a casa da Ericeira, herdada dos pais e normalmente arrendada a estrageiros, a uma família monoparental. A mãe e os quatro filhos tinham-se instalado e recebido outras ajudas das gentes da vizinhança. No entanto, à medida que o tempo foi passando, a sensação de que tudo seria temporário foi desaparecendo e os problemas começaram a aparecer. A família ucraniana começou a ter menos ajudas e as primeiras reclamações apareceram num telejornal da CMTV. Isso coincidiu com a altura em que Vanessa teve a primeira conversa com a mãe das crianças. O empréstimo da casa tinha sido temporário, pois, quando a empréstimo aconteceu, a casa já estava alugada nos meses de verão. Todos os anos acontecia o mesmo. Vanessa arrendava a casa a turistas, sobretudo nos quatro meses de maior calor e com isso acrescentava um complemento anual ao seu rendimento, sem o qual já não sabia viver. Vanessa, sem saber como, viu-se envolvida numa enorme polémica. Uma história onde ela era a vilã, acusada de ter colocado uma família em sua casa e depois a ter abandonado, sem qualquer ajuda. Não satisfeita com o facto de ter abandonado a família à sua sorte, agora queria retirar-lhes o teto que os abrigava, deixando-os jogados na rua e ao sabor dos elementos.

Estava tão desesperada que não hesitou em falar com o seu antigo namorado. Tinha sido uma relação atribulada à qual ela tinha colocado um ponto final. Na verdade, não sabia se podia chamar aquilo que os ligava uma relação. O sexo era muito e bom, quanto ao resto pura e simplesmente não existia. Tinham decidido recomeçar várias vezes, mas sempre com o mesmo resultado. Quando decidiu pegar no telefone, ela sabia que iria ter de dormir com ele, por isso a exigência dela tinha sido clara: apenas passariam um fim de semana juntos e depois de ele lhe resolver o problema. Ele concordou e tratou de arranjar alojamento para a família, de forma a que estes lhe deixassem a casa livre antes do fim de maio. Isso estava nas suas mãos, pois tinha o poder de decidir as ações ou os apoios que as pessoas recebiam de um determinado organismo público. Infelizmente, em Portugal, é assim que funcionam as ajudas públicas!

Enquanto esperava que o seu amigo colorido resolvesse a situação, virou-se para o seu mais recente grupo de amigos. Tinham criado um grupo no Whatsapp com um nome original: Os 8 da Vidairada. Lançou no éter a primeira mensagem, com um link para a reportagem da CMTV e não tardou em ter a primeira reação.

– É esse o prémio que recebes por ter ajudado quem precisava. É por isso que eu costumo dizer que as ajudas só são boas quando somos nós a recebê-las. Disse Pedro, colocando um emoji com uma piscadela de olho.

Era uma opinião com uma conotação forte. Demasiado forte. Até a Vanessa, que estava revoltada, se sentiu incomodada com aquela perspetiva de olhar a ajuda ao seu semelhante. Os restantes membros do grupo tiveram um sentimento semelhante, mas ninguém comentou a observação de Pedro, tendo optado por responder à Vanessa.

– O problema está na comunicação social que temos, ou pelo menos em parte desta. Na hora em que prescindiste da casa,                                                                         eles não estavam lá para divulgar a tua boa ação, pois isso não faz aumentar as audiências. No entanto, a notícia de uma família abandonada e despejada no meio da rua, ainda que existam razões válidas para isso, vende muito mais.  Claro que no processo, eles, sem qualquer pejo, transformam-te numa vilã, como se tu não fosses uma pessoa com os mesmos direitos, ou até mais, que a refugiada ucraniana. Disse Ricardo.

A mudança de foco foi interessante. Vanessa pensou alguns segundos sobre esta nova perspetiva. A refugiada apenas estava a usar as armas que tinha para conseguir a ajuda, que agora via escapar-se-lhe por entre os dedos. Por seu lado, Vanessa tinha dado a ajuda que podia e a mais não era obrigada. Quem tinha criado o problema era o governo, ao disponibilizar-se para receber os refugiados, sem garantir que estes teriam o apoio necessário e, quem lhe tinha dado visibilidade e dimensão, que era a comunicação social, o que supostamente era o seu papel. O problema era que a visibilidade tinha sido conseguida à custa da distorção dos factos, responsabilizando um particular por uma obrigação pública. O comentário seguinte oscilava entre o ridículo e o hilariante.

– O culpado disto tudo é o Putin, por ter desencadeado a guerra com a Ucrânia. Eu tenho uma solução definitiva para o problema: assassinar Putin. Disse Vitória, colocando um emoji de fúria.

– Tenho a maior das dúvidas que um assassinato seja a solução para qualquer problema, no entanto, gostava de saber como levarias a cabo esse teu plano. Disse João, deixando vários emojis de gargalhada.

– É simples. Inspirei-me no que aconteceu com o Biniam Girmay, no “Giro de Itália”. Respondeu Vitória.

 

– Vais matá-lo com uma rolha! Interrogou-se Carla, juntando um emoji pensativo.

– Já estou a ver a notícia na CMTV, com destaque especial: Rolha assassina, mata Putin. Disse Nuno, juntando vários emojis de gargalhada com choro.

– Nuno, achei maravilhoso o título da notícia. Ainda não consegui parar de rir (emojis de gargalhada com choro). Vitória, podes explicar exatamente como farias? Perguntou a Rita, juntando um emoji com piscadela de olho.

– Basta levar o homem a uma inauguração, onde exista uma garrafa de champanhe para festejar. Depois, aponta-se a garrafa à garganta dele e o impacto da rolha parte-lhe a lâmina da cartilagem tiroide, o que provoca uma morte quase instantânea. Ninguém vai antecipar esse golpe, o que o vai tornar fatal.  Apenas exige uma grande precisão. Disse Vitória, juntando o emoji do indicador para cima.

Foram vários os membros do grupo que deixaram emojis de gargalhada com choro, pois a sugestão era hilariante. Exigia uma situação quase impossível de implementar, uma precisão matemática e um domínio da técnica de abertura da garrafa de champanhe exemplar, para se obter a potencia máxima, requerida para um impacto mortal. Entretanto, o problema da Vanessa tinha ficado ignorado. O grupo de amigos, criticaram a abordagem dos meios de comunicação, mas acabaram por cair no mesmo erro. O que a Vanessa precisava era do apoio deles e de aconselhamento sobre o que fazer, mas o assassinato de Putin roubou-lhe o protagonismo, ainda que não passasse de uma fantasia, enquanto o problema dela era bem real.

Dois dias depois, a família ucraniana foi realojada com direito a apoio social e Vanessa, no fim de semana seguinte, rumou a Troia. Ela sabia que iria ter um fim de semana fantástico, pois ele seria tudo o que ela necessitava, mas apenas por um fim de semana. Depois, era como se ele desligasse o interruptor e ela deixava de existir. Aquilo não era vida para ela, mas isso não a impediria de aproveitar o fim de semana da melhor maneira.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s