Carla estava num estado de irritação indescritível. Aquele tipo de coisas deixava-a completamente fora de si. A forma como determinadas regras e leis eram aplicadas era de uma hipocrisia clamorosa. No entanto, isso não era a pior das consequências. O pior é que a aplicação cega dessas leis, criava um autêntico empecilho no relacionamento entre médico e paciente.
Estavam os oito, na explanada de um café, sentados à volta de uma mesa redonda, onde os copos das imperiais fresquinhas, tão apetecíveis num dia de canícula como aquele, faziam companhia aos pratos de caracóis, tremoços e ameijoas à bulhão pato, com que o grupo se iria deliciar.
– És capaz de explicar porque é que estás tão irritada por causa de uma dúzia de ovos. – Perguntou Vitória, algo perplexa.
– Atenção que não são uns ovos quaisquer: são ovos caseiros! – Disse Pedro, num tom de gozo.
– E entregues em mão, à porta do consultório ou de casa. Certo? Nem foi preciso ir ao mercado. – Disse Nuno, alinhando no mesmo diapasão.
– Parem lá com o gozo, que isto é um assunto muito sério. – Disse João, cuja experiência de vida, como professor, já o tinha feito passar pela mesma situação.
Os restantes abstiveram-se de fazer comentários e olharam para Carla com curiosidade. Finalmente, ela contou a história que estava na base da sua irritação, mas, mais do que isso, explicou os seus impactos no dia a dia das pessoas das pequenas localidades.
A história rezava assim:
Dona Conceição era uma mulher simples, que vivia numa pequena aldeia do distrito de Viseu, que ficava apenas a dois quilómetros da capital do distrito. O pedaço de terreno que circundava a casa era pequeno, mas dava para plantar os legumes que consumiam e para albergar uma capoeira de galináceos e outra de coelhos. Um pouco mais afastado ficavam duas courelas, onde plantavam o milho e as batatas e que também serviam para alimentar com erva e feno a vaca leiteira, que já ia na terceira criação. Nunca tinha estado doente, apesar dos seus 74 anos de idade, mas o destino pregara-lhe uma partida. Tinha caído para o lado, numa tarde em que se dedicava, com azáfama, à colheita de erva para a vaca. Tinha sido a doutora Carla Malheiros que a tinha salvo. Ao fim de um ano de consultas e de medicação, o problema foi considerado ultrapassado, embora ela tivesse de tomar medicação para o resto da vida. Este diagnóstico, apesar de a deixar contrariada, por ter de tomar medicação, foi recebido com alívio e a D. Conceição queria mostrar, à doutora Carla, o quão grata estava por tudo o que esta havia feito por ela.
– Não sei porque te dás a esse trabalho. A doutora não fez mais do que a sua obrigação. – Disse o marido.
Ela ignorou-o e continuou a arrumar os ovos na cesta. Os ovos, escolhidos a dedo, eram grandes e lustrosos, apresentando-se com um aspeto saboroso.
– Eu sei que ela já foi paga pelo seu trabalho, mas o carinho que ela me dispensou e a forma como cuidou de mim, merece algo especial. Aposto que ela nunca comeu uns ovos frescos e caseiros tão saborosos como estes. – Disse D. Conceição.
– É uma mulher da cidade. Se calhar nunca comeu ovos caseiros. -Retrucou o marido, com um encolher de ombros.
– Bom, vou apanhar o autocarro, pois não posso ir a pé até à cidade com a cesta dos ovos. – Disse a esposa.
– Espera aí mulher, que eu levo-te lá.
D. Conceição não tinha consulta marcada, mas mal chegou fez saber à rececionista que precisava de falar com a doutora Carla Malheiros. Carla, quando soube que ela ali estava, pensou o pior e tratou de arranjar forma de a ver o mais rápido possível. Quando a viu entrar no consultório, fresca como uma alface e com a cesta dos ovos pelo braço, brindou-a com um olhar interrogador, ao mesmo tempo que a cumprimentava.
– Bom dia, D. Conceição. Está tudo bem consigo?
– Bom dia, Senhora doutora.
– Então o que a trás por cá? – Perguntou a doutora.
– Ora, nada de especial. Vim apenas trazer-lhe um mimo. Isto não paga o seu trabalho, nem pretende fazê-lo. É apenas o meu agradecimento pela forma como cuidou de mim.
Carla ficou embatucada. O primeiro sentimento que a dominou foi a emoção. Quando esta passou veio a atrapalhação. Os médicos estavam proibidos de receber prendas dos pacientes e ela não sabia como dizer isso àquela senhora, sem que ela se ofendesse. Tratava-se de uma pessoa simples e a rejeição dos ovos seria uma ofensa grave e inexplicável para ela. D. Conceição percebeu, pelo semblante da doutora, que se passava algo, mas não conseguiu descortinar o quê. Com toda a delicadeza, poisou a cesta dos ovos sobre a secretária e aceitou o convite para se sentar. Carla sorriu-lhe e suspirou profundamente.
– D. Conceição, eu agradeço do fundo do coração a sua oferta, mas não a posso aceitar.
– Mas olhe que os ovos são bons e frescos. Não encontra melhores nas redondezas!
– Eu não duvido disso, mas as novas leis não nos permitem aceitar prendas dos pacientes.
– Ora essa. Era o que faltava! Então nós temos os governantes e quejandos, a roubar milhões, sem serem presos e um médico que, para além de ter feito o seu trabalho como um profissional, ainda me deu carinho e atenção, não pode receber duas dúzias de ovos? Eu não quero saber dessas leis. Os ovos são seus e vão ficar consigo. – Disse D. Conceição, ao mesmo tempo que se levantava e saía do gabinete, com ar ofendido.
Carla mal teve tempo de esboçar um obrigado, ficando com “o menino nos braços”. Depois de fazer alguns telefonemas, para se aconselhar, acabou por dividir os ovos entre ela, a assistente e as duas rececionistas.
– Percebem agora a minha irritação? – Perguntou Carla.
– Regras são regras. – Disse Ricardo, numa observação típica de advogado.
– Eu percebo a necessidade da existência dessas regras, pois na atividade de construção, que é a minha, acontece muitas vezes que as prendas têm segundas intenções e têm um valor que pode ter influência nas decisões de quem as recebe. No caso concreto, penso que deveria existir alguma flexibilidade, pois a intenção não é corromper ninguém, mas apenas expressar um agradecimento. Para além disso, o valor não é material. – Disse Rita.
O grupo ficou em silêncio, por alguns instantes, refletindo sobre o que tinha sido dito. Foi a Vanessa que interrompeu o silêncio e, com uma expressão de gozo no rosto, perguntou:
– Agora falando de coisas sérias. Que tal eram os ovos corruptos?
A pergunta teve o condão de fazer com que todos rissem à gargalhada, pois aquele batismo dos ovos fazia ressaltar o ridículo da situação.