Tudo tinha começado na sequência de um estranho evento: As pessoas da última carruagem saíram para o cais, em pânico, fugindo em direção às escadas. Os ocupantes das restantes carruagens não tiveram tempo de exteriorizar a sua curiosidade, pois as portas fecharam-se e o aviso surgiu, pelo sistema de comunicação interno.
“Para proteção de todos os passageiros as portas das carruagens irão manter-se fechadas. Mantenham-se calmos, enquanto averiguamos o que se passou na última carruagem.”
A mensagem teve o condão de evitar o pânico, mas quanto ao resto serviu para muito pouco. Apesar de as carruagens estarem com uma ocupação muito reduzida, as pessoas olharam-se com preocupação e até com desconfiança. No entanto, mantiveram-se nos seus lugares e o mais afastado possível umas das outras. Tratava-se de uma reação instintiva, que não encontrava justificação em nenhum facto concreto, mas apenas numa certa intuição. O tempo esgotava-se lentamente e o facto de o sistema de recirculação de ar estar desligado fez com que o ambiente ficasse quente e pesado, tornando a espera ainda mais desconfortável. Se a situação não fosse resolvida rapidamente, o ambiente dentro das carruagens poderia tornar-se explosivo, com consequências dramáticas!
Rita já estava 20 minutos atrasada e martirizava-se pelo facto, embora não fosse responsável por este. Finalmente, o metropolitano arrancou, depois de meia hora de paragem, cuja razão permanecia um mistério. Embora sem o saber, Rita estava prestes a ver esse mistério esclarecido da forma mais inusitada que podia esperar. Quando emergiu na estação do Saldanha, junto ao centro comercial, onde ia encontrar-se com o grupo, cruzou-se com um velho amigo que estava um pouco agitado.
– Bom dia Francisco. Pareces nervoso. Está tudo bem? – Perguntou a Rita, dirigindo-se ao amigo que não a tinha visto aproximar-se.
– Olá Rita. Tu nem sabes o que me aconteceu no metropolitano!
Rita não precisou de perguntar nada. O amigo desatou a relatar a história, sem saber que esta respondia às muitas interrogações que ela queria ver satisfeitas.
“Tinha acabado de entrar na estação do Marquês, na última carruagem, quando ouvimos uma exclamação.
– Monkey post! – Disse um turista, ao ver entrar um negro de elevada estatura, que apresentava algumas manchas brancas no rosto, com a indumentária de carteiro.
A esta exclamação seguiram-se outras duas, que lançaram o pânico na carruagem.
– Monkeypox?
– Varíola do macaco!
Depois disto foi a debandada geral. Todos correram na direção das escadas, deixando o negro, isolado e sozinho, dentro da carruagem. Nessa altura, todos pensámos que se tratava de uma pessoa com a varíola dos macacos e ninguém queria ficar próximo dele, com receio de ser contagiado. Fomos todos mantidos num local isolado, enquanto o negro era examinado e o turista interrogado. O negro era um jovem carteiro, cuja beleza deixava algo a desejar, mas perfeitamente saudável. Acontece que ele tinha colocado creme na face e se tinha esquecido de o espalhar, o que justificava as manchas no rosto. Por seu lado, o turista era um jovem com alguma aversão aos negros e quando o viu não se conteve em lhe chamar monkey Post (macaco carteiro). A expressão foi confundida com a designação da doença da varíola do macaco e isso foi o suficiente para lançar o pânico. Depois de esclarecido o mistério, entramos novamente para a carruagem e a viagem prosseguiu normalmente. Entretanto, os desgraçados que estavam nas restantes carruagens ficaram fechados nestas, provavelmente sem qualquer explicação”
– Acertaste. Estivemos 30 minutos fechados sem sabermos por quê. – Disse Rita.
– Então tu também estavas no metropolitano, quando isto aconteceu? – Perguntou o amigo.
– Sim. – Anuiu Rita.
Despediram-se, pois Rita já estava muito atrasada e os outros já deviam ter começado a refeição, embora ninguém lhe tivesse ligado a saber da razão do seu atraso.
O grupo estava muito divertido com as piadas que o Pedro contava, como quem espalha pérolas de sabedoria. Eram anedotas simples e picantes, mas ele contava-as com uma graça tal, que fazia com que o carácter ordinário destas se dissipasse. Quando a Rita chegou tornou-se, rapidamente, o centro das atenções, graças ao insólito facto que provocara o seu atraso. Depois de ela contar a história os comentários surgiram em catadupa.
– Coitado do jovem carteiro. Eu sei bem o que é ser descriminado apenas pelo nosso aspeto. Já vivi isso muitas vezes na primeira pessoa. Aposto que se fosse um branco, bem vestido, que tivesse as manchas na cara, ninguém o tinha insultado e até talvez lhe sussurrassem ao ouvido umas palavras esclarecedoras, para o ajudar a resolver a situação. – Disse Pedro, com raiva na voz.
– Aquilo que aconteceu foi errado, mas a única atitude condenável foi a do turista. Os outros passageiros apenas reagiram em função da perceção de uma ameaça. Acho que teriam reagido da mesma forma se o carteiro fosse branco. – Disse Vanessa.
– Parece-me que têm ambos razão. O turista fez um comentário racista, que foi mal interpretado e gerou o pânico, por causa de uma doença que é uma ameaça real. No entanto, a reação geral foi claramente exponenciada pelo facto de o jovem carteiro ser negro. – Disse Nuno.
– Eu também me teria afastado de alguém que julgasse ter essa doença. Não nos esqueçamos que a probabilidade de existência de contacto físico, numa viagem de metro, é elevadíssima, portanto a possibilidade de contágio é algo bem real. Claro que o problema, neste caso, é que, na origem, estava um mau julgamento da situação. – Disse João, com ar professoral.
– Afinal como se propaga a doença? Já está provado que é apenas através do contacto físico? – Perguntou Ricardo, dirigindo-se a Carla.
– A verdade é que não se sabe muito sobre a forma de transmissão desta doença. Aquílio que se sabe é que ela se propaga através do contacto da pele, mas ainda falta estabelecer se também se propaga por outros meios. Por outro lado, pensa-se que um indivíduo apenas se torna agente transmissor, quando tem sintomas, o que diminui claramente a velocidade de propagação da doença. Também se pensa que as pessoas que tomaram a vacina da varíola podem ter algum tipo de imunidade, isso significa que os que têm mais de 40 a 45 anos podem estar protegidos. Talvez seja por essa razão que a grande incidência dos casos é em sujeitos com menos de 40 anos. No entanto, o conhecimento, em alguns aspetos, ainda é limitado. – Disse Carla.
– Se a doença apenas se propaga pelo contacto da pele, como passou dos macacos para os humanos? Alguém andou a ter intimidades com os macacos? – Disse Verónica, com uma piscadela de olho.
O comentário fez com que todos rissem à gargalhada. Verónica fazia humor com tudo.
– Olha que eu já estive com homens, cujo comportamento não estava muito longe do dos primatas! – Disse Rita, mantendo o tom de humor.
– Eu podia dizer o mesmo de algumas mulheres com quem já estive, mas como sou cavalheiro, não vou entrar em detalhes. A macaquice manifesta-se a vários níveis, em várias pessoas e em diversas situações. – Disse Nuno, piscando o olho e arrancando uma gargalhada sonora ao grupo, sobretudo aos homens.
O confronto de géneros estava lançado. Tinha acontecido de forma subtil, mas todos tinham percebido o que estava em jogo. Não foram precisas palavras para se formarem duas equipas e, independentemente da cumplicidade que existiam entre algumas das duplas, os homens juntaram-se de um lado e as mulheres do outro. No meio erguia-se uma barreira invisível, mas perfeitamente percetível. No entanto, ninguém avançou com mais nenhum comentário e o silêncio tornou-se constrangedor. Quem quebrou o gelo foi a Vanessa, demonstrando uma sensibilidade notável.
– Tenho a certeza que, independentemente do género, já todos nós tivemos bons e maus encontros. Muitas vezes até já proporcionamos maus encontros. Eu uma vez estava tão bêbada… Bom, é melhor eu não contar essa história, porque a seguir vamos jantar. – Disse ela, soltando uma gargalhada.
O grupo riu com vontade e a tensão desapareceu. De repente desataram todos a falar ao mesmo tempo e Ricardo fez uso do seu vozeirão para lançar o desafio:
– Vamos escolher os pratos?
Debruçaram-se sobre o menu e os conflitos e doenças do mundo foram esquecidos, pois o estômago falava mais alto.