A senhora parou ao fundo das escadas olhando para o obstáculo, sem saber como reagir. Infelizmente aquela era a situação mais normal. Ela empurrava uma cadeira de rodas, onde a sua melhor amiga se encontrava. Tratava-se de uma situação temporária, mas que já lhe tinha trazido grandes transtornos, sendo que agora se encontrava perante mais um. O único benefício daquela situação era que elas estavam a tomar consciência do que era viver com uma limitação, num mundo de pessoas onde a maioria não as tinha. Talvez quando a amiga voltasse a andar, pudessem fazer alguma coisa sobre o assunto. A lei da sobrevivência do mais forte tinha permitido uma seleção natural, em tempos em que o homem tinha de lutar, sem quaisquer armas, contra os elementos da natureza. Felizmente, a sociedade tinha evoluído e hoje podia dar-se ao luxo de ser mais inclusiva, só que não o era.
Sozinha, ela não conseguia levar a amiga na cadeira, pelo que pediu ajuda. O dono do restaurante veio, solicito em palavras, mas reticente em atitudes. Querendo demonstrar que estava perante um obstáculo transponível, ainda que com uma cadeira de rodas, inclinou esta para trás, de forma a poder subir as escadas e empurrou-a. Quando o fez, perdeu o equilíbrio e caiu, arrastando a mulher na queda. Esta bateu com a cabeça e foi parar ao hospital. Felizmente não passou de um susto. O incidente gerou vários comentários dos presentes e não tardou muito estava exposto na internet, em fotografias e vídeos, com os mais variados comentários, sendo que a maioria era pouco elogiosa para o dono do restaurante.
Nuno presenciou tudo, tendo corrido em socorro do dono do restaurante e da senhora da cadeira de rodas e chamado de imediato uma ambulância. Ele desconhecia qual o problema que levara a senhora a ter de se deslocar numa cadeira de rodas, mas, independentemente disso, uma pancada na cabeça tinha de ser tratada com o devido cuidado. Passadas algumas horas, ficou a saber, pelas redes sociais, da ausência de gravidade do acidente e dos juízos do tribunal público em que as redes sociais se transformavam nessas alturas. Dar a opinião ou emitir julgamento, é sempre fácil, quando isso acontece no conforto do nosso canto e protegidos pelo anonimato. É um ato de bullying sem paralelo, que tem consequências inimagináveis, mas cujos responsáveis jamais são devidamente punidos. A mulher a quem ele fazia companhia, nesse fim de tarde, louvou a atitude do Nuno e isso acabou por lhe granjear muito mais do que ele tinha esperado daquele encontro.
O encontro do grupo tinha sido marcado de improviso e Nuno apenas pôde estar presente, porque o seu encontro pessoal, de sábado, foi desmarcado de forma tardia e imprevisível. Recebeu as duas mensagens quase de seguida, quando se estava a arranjar para dar o seu passeio matinal. Ainda não tinha conseguido perceber o que o ligava àquele grupo, mas a verdade é que não conseguia deixar de estar presente em todos os encontros. O motivo era banal e acabou por ser esquecido mal eles se juntaram. Aliás, Nuno não se conseguia sequer recordar dele, apenas sabia que Carla estava de visita a Lisboa e tinha sugerido que se encontrassem. Tinham acabado de se sentar no restaurante, quando João trouxe o tema para cima da mesa.
– Vocês repararam que o restaurante aqui do lado está às moscas? É incrível aquilo que o julgamento público é capaz de fazer. – Disse João.
– Estás a falar do quê? – Perguntou a Rita.
– Não viste o escândalo que aconteceu ontem, por causa de uma senhora de cadeira de rodas, que não conseguiu subir a escadas de entrada no restaurante. – Disse João.
– Não. – Retorquiu Rita.
– A inclusão é uma coisa que está na moda. Tudo serve de pretexto para julgar. Bem sei que poderiam e deveriam existir melhores condições para as pessoas que têm limitações, sejam de que ordem for, mas também deve existir compreensão para com os negócios e as pessoas que o gerem e que têm que se adaptar, porque o processo não é simples. – Disse Ricardo.
– Eu conheço um restaurante que teve um problema semelhante e desencadeou uma guerra com o proprietário do espaço para que este o adaptasse, nomeadamente para poder ter um acesso para pessoas com deficiência motora. Até hoje, ainda não conseguiu nada. No entanto, apesar da responsabilidade não ser dele, é ele que continua a ser culpado e julgado, publicamente, pela falta de condições do espaço. – Disse Pedro.
– Eu não seria tão rápido a ilibar o teu amigo, apesar de aceitar que o primeiro responsável é o dono do espaço. No entanto, o locatário tomou livremente a decisão de usar o espaço para uma atividade à qual todas as pessoas devem ter a possibilidade de aceder, independentemente das suas limitações. Isso faz com que o locatário seja corresponsável. – Disse Carla.
– O que sugeres que faça o locatário? Eu discordo de todo o tipo de descriminação, mas neste caso não vejo o que ele possa fazer. – Perguntou Pedro.
– Pode fazer muitas coisas… – Disse Carla, não terminando a frase.
O grupo ficou em suspenso e foi Vanessa que interrompeu o silêncio.
– Eu gostava de saber o que é que o locatário pode fazer, pois também não estou a ver como pode alterar o espaço, sem autorização do proprietário. – Disse Vanessa.
– Deixem-me contar-vos uma história.
“Existe um restaurante em Viseu, cujo nome não cito, por razões óbvias, que tinha um problema de acessibilidade de deficientes motores, como acontece com a grande maioria dos restaurantes. Certo dia, o dono foi questionado em relação ao assunto e também ele alegou que não podia fazer nada, tendo lançado um desafio, para que lhe apresentassem sugestões de melhoria. Uma professora da UTAD, desafiou-o a servir um almoço a um grupo de cinco pessoas, do qual ela faria parte, sendo que se eles apresentassem, pelo menos, três sugestões de melhoria não pagariam o almoço. O dono do restaurante aceitou o desafio e, no dia aprazado, a senhora apareceu acompanhada de um invisual, um surdo-mudo, uma senhora em cadeira de rodas e uma jovem com nanismo.
A entrada foi dificultada pelo facto de a cadeira ter de transpor as escadas, mas eles resolveram-no de forma estoica. O grupo foi conduzido para um dos cantos da sala e acomodado na mesa que lhes estava reservada. O segundo problema surgiu quando eles se sentaram. A senhora que sofria de nanismo teve de pedir duas almofadas, para colocar na cadeira e conseguir ficar a uma altura que lhe permitisse comer. O invisual teve de pedir auxílio para escolher a comida, pois não conseguia ler a ementa e o surdo-mudo teve de recorrer aos serviços de linguagem gestual da professora, para conseguir comunicar com os empregados. No fim da refeição, o dono do restaurante veio ter com eles, com um sorriso triunfante. A conta tinha sido entregue e ele preparava-se para receber o seu valor, pois não tinham sido apresentadas quaisquer sugestões de melhoria, que permitissem resolver os problemas de nenhuma das várias limitações experimentadas pelo grupo. Nessa altura, a professora tomou a palavra.
– Sugiro que o senhor faça as seguintes alterações. Que coloque, em metade das escadas da entrada, peças de madeira que transformem as mesmas num declive liso. Assim, as cadeiras de rodas podem subir e descer sem problemas e as pessoas que podem caminhar, poderão utilizar a outra metade das escadas.
O dono do restaurante ficou a olhar para ela. Nunca tinha pensado nisso, mas na verdade era uma coisa simples e não carecia de autorização. Por isso, assentiu com a cabeça, ao mesmo tempo que o sorriso lhe morria nos lábios.
– Para ultrapassar as dificuldades apresentadas pelas outras limitações dos meus convidados, sugiro que mande fazer meia dúzia de cadeiras para pessoas com nanismo, que acrescente às ementas a linguagem braille e que ensine a um dos seus empregados a linguagem gestual. Penso que acabei de lhe dar quatro sugestões fáceis de implementar e que não carecem de grande investimento.
O dono do restaurante estava boquiaberto. Tinha acabado de oferecer cinco jantares, cujo valor médio era bem elevado e isso não lhe agradava, mas a verdade é que, com as sugestões que acabava de receber, ele podia tomar um conjunto de medidas que iriam tornar o restaurante num espaço verdadeiramente inclusivo. Isso podia ser utilizado a seu favor, de uma forma muito interessante, em termos económicos.”
– Adorei essa história. Isso aconteceu mesmo ou não passa de uma história? – Perguntou o Nuno.
– É uma história real. Trata-se do restaurante mais popular de Viseu, onde, para além disso, se come muito bem. – Respondeu Carla.
– Fantástico! Acho que vou fazer algumas dessas sugestões ao gerente da discoteca onde trabalho. – Disse Verónica, emocionada.
– É incrível, como às vezes nos limitamos a alhear-nos dos problemas, com a desculpa que não nos cabe resolvê-los, quando, na verdade, podemos com pequenos atos ou mudanças contribuir para a solução destes. – Disse Vanessa.
O grupo estava em silêncio. Tinham ficado hipnotizados pela força daquela história e pela forma como esta tinha demostrado que, cada um de nós pode ter um papel ativo nas grandes mudanças, ainda que apenas praticando atos bem pequenos e quase insignificantes.