C O V – PELOS CABELOS

Carla tinha-se despachado mais cedo e veio ao encontro de Verónica voando. O sentimento que lhe enchia o peito fazia-a flutuar e ela não via a hora de abraçar a amiga. Sentia-se cada vez melhor ao lado dela, de tal forma que começava a sentir que não podia viver sem a sua companhia. O sentimento era recíproco, embora o grau de intensidade fosse distinto. Isso não a preocupava. Autoalimentava-se, quase de forma cega, mas a vida era assim mesmo para muitos de nós.

Chegou ao edifício e acelerou o passo em direção ao elevador. O ruido que provinha do segundo andar era ensurdecedor. Eles estavam em obras e quando usavam o martelo não era fácil fazer-se ouvir nos outros pisos. Felizmente, o ruído parou quando Carla entrou no apartamento. Verónica estava no terraço e Carla foi ao seu encontro. Quando abriu a porta que dava para o espaço percebeu que Verónica estava ao telefone e decidiu dar-lhe tempo. No entanto, algo na conversa lhe chamou à atenção e ela ficou à entrada do terraço, com a porta entreaberta. A conversa era audível, embora com alguma dificuldade, dado que Verónica estava na esquina do terraço e o vento, quando soprava mais forte, levava o som noutra direção. Carla ouvia Verónica de forma entrecortada, como se esta não quisesse dizer determinadas coisas, mas, depois de hesitar, se sentisse compelida a dizê-las. Fazia muitas pausas o que nem parecia dela, pois, normalmente, falava de forma fluente e apressada. Carla escutou a seguinte conversa:

Como sabes não foi a primeira vez. Foi bom, mas estou… pelos cabelos. Para além disso, hoje partiu-me o coração… Ela cola-se … e deixa-me marcado. A minha namorada é que ainda não percebeu o cheiro.”

Em seguida Verónica calou-se. Seguramente que estava a ouvir o que dizia o interlocutor.

Não. A Carla quer é distância. Se ela imaginasse o que se passou entre mim e aquela cachorra, passava-se.”

Novo intervalo.

Ela gosta mesmo é de se deitar em cima… de mim. Depois deixa-me sujo. Um destes dias distraio-me, chego junto da Carla nesse estado e ela descobre tudo”

Carla não quis ouvir mais nada. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelas faces em grande abundância e ela saiu dali a correr. Aquela traição doía-lhe demasiado para ela confrontar a namorada naquele momento. Precisava de estar calma para o fazer.

Umas horas antes o ambiente era completamente diferente.

O telefone tocou e Verónica olhou o mostrador. Quando viu que era a Carla o rosto iluminou-se e os lábios abriram-se num sorriso de prazer e felicidade. A voz doce e quente da Carla fez-se ouvir do outro lado do aparelho.

– Vou sair agora. Devo chegar dentro de três horas.

– Vou ficar ansiosamente à tua espera. – Disse Verónica.

– Não menos ansiosa do que eu para te abraçar. – Respondeu a Carla.

Mal tinha acabado de desligar a campainha tocou. Era o irmão que vinha buscar a beagle. Verónica adorava cães, mas Carla tinha alergia ao pelo deles e detestava animais em casa, por isso, era impensável ter em casa um cachorro de forma permanente. Depois, preocupou-se em limpar a casa de forma a que não restasse nenhum vestígio da presença do animal. O telefone voltou a tocar e ela pensou que era a Carla a dizer que estava a chegar, por isso foi com surpresa que o atendeu.

– Olá Rita. Está tudo bem contigo?

– Olá Verónica. Está tudo bem. Então que tal foi ter aí em casa a Beagle do teu irmão? – Perguntou a Rita.

– Como sabes não foi a primeira vez. Foi bom, mas estou farta. Isto é só pelos e cabelos. Para além disso, hoje partiu-me o coração de cristal. Ela cola-se na minha camisa e deixa-me marcado. A minha namorada é que ainda não percebeu o cheiro. – Disse Verónica.

– Ela não gosta de cães?

– Não. A Carla quer é distância. Se ela imaginasse o que se passou entre mim e aquela cachorra, passava-se. – Disse Verónica.

– Tens que colocar a cadela na ordem. Não podes deixar que ela ande assim por cima de tudo e a partir coisas.

– Ela gosta mesmo é de se deitar em cima do sofá e de mim. Depois deixa-me sujo. Um destes dias distraio-me, chego junto da Carla nesse estado e ela descobre tudo. – Disse Verónica.

Quando desligou o telefone olhou o relógio e viu que já tinham passado mais de três horas desde que a Carla tinha saído de Viseu. Era estranho. Será que lhe tinha acontecido alguma coisa? Tinham combinado passar uma hora juntas antes de ir ter como resto do grupo. Ligou-lhe, mas a chamada foi de imediato para a caixa das mensagens. Verónica estava nervosíssima e ansiosa. Algo de muito grave deveria ter acontecido para a Carla não ter ainda chegado e não ter dito nada. Finalmente conseguiu falar com a Carla.

– Carla! Está tudo bem? Estava preocupadíssima!

– Sim Verónica. Está tudo bem. Tinha ligado o GPS e gastei a bateria do telemóvel. Atrasei-me e decidi vir diretamente para o encontro. É melhor vires cá ter.

Apesar da desilusão, Verónica ficou mais tranquila, porque a amiga estava bem. Pegou nas chaves e apressou-se a ir ter com o grupo. Carla já lá estava. Tinha-se sentado entre o Pedro e o João e deliciava-se com os piropos que eles lhe dispensavam. Era um comportamento inesperado. Carla sabia bem da admiração e interesse de ambos, por ela e isso incomodava-a, pelo que evitava as situações de intimidade. O que se passaria com a amiga? A situação tornou-se ainda mais estranha quando Carla a ignorou, nem sequer correspondendo à sua saudação. Ali havia gato!

– Olá Verónica. A Carla estava a contar-nos uma história de traição da sua vida. As pessoas não sabem dar valor àquilo que têm. Eu seria incapaz de a trair. – Disse Pedro.

Verónica ficou a olhar para ele atónita.  O comentário soava-lhe vagamente a uma armadilha, mas não interiorizou, verdadeiramente, o facto. O resto dos elementos do grupo, que, entretanto, estava completo, olharam-na esperando uma resposta. Rita tinha-se colocado a seu lado, numa solidariedade muda. Apesar de terem opções sexuais distintas, tinham-se tornado muito amigas.

– Pois, eu não conheço essas experiências da Carla, mas para mim a traição é um comportamento inqualificável e inaceitável. – Disse Verónica.

– Quer dizer que tu não perdoarias uma traição? – Perguntou a Carla, dirigindo-lhe a palavra pela primeira vez essa noite.

– Isso não sei. Só se um dia for colocada perante essa situação é que poderei falar sobre o assunto. O que quero dizer é que seria incapaz de trair alguém. – Disse Verónica, de forma simples e sincera

– Eu não estou tão seguro como tu. Existem circunstâncias em que a traição pode acontecer. Existem, também, atenuantes que podem levar o outro ou outra a perdoar. – Disse o João.

– Não sei muito bem porque estamos a ter esta conversa. Mas eu concordo com a Verónica. Embora aceite que talvez pudesse perdoar uma traição, eu seria incapaz de a cometer. – Disse Rita.

– Afinal quem foi que te traiu? A minha experiência diz-me que antes de acusar alguém de traição devemos ter a certeza de todos os factos. Para mim, só existe traição quando eu a consigo validar com factos. As palavras ou conversas podem ter significados duvidosos. – Disse Nuno, dirigindo-se a Carla.

– Eu não estou a perceber nada. Parece que estamos a ter várias conversas cruzadas, com mensagens subliminares distintas. Afinal houve ou não houve traição e quem traiu quem? Perguntou Vanessa, com o seu ar ingénuo.

– Como advogado diria que antes de julgarmos alguém devemos apurar os factos. Proponho que façamos um jogo. Dividimos o grupo em dois, para que uma metade invente um caso de traição e a outra metade o julgue. – Disse Ricardo.

– Parece-me uma forma interessante de passar o serão. – Disse Pedro.

O grupo que iria inventar o caso era formado pelo João, o Nuno a Rita e a Carla e o outro era formado pelos restantes quatro. Carla deu o pontapé de saída e colocou o seu próprio caso de traição sobre a mesa. Rita ao ouvir o caso teve um dejá vu.

– Foi hoje às 18 horas que ouviste a conversa em que fundamentas a traição? – Perguntou Rita.

Carla ficou a olhar para ela com ar espantado. Como era possível ela saber. Será que era com a Rita que a Verónica a traía? O resto do grupo focou-se na sua expressão, pois o rosto de Carla ficara lívido.

– Sim. Não me digas que é contigo que ela me trai. Eu pensava que eras heterossexual. Disse Carla lentamente e com uma expressão de incredulidade.

Rita soltou uma gargalhada sonora. A sua expressão era tão divertida que dava vontade de lhe apertar o pescoço. Como podia ela rir-se, daquela forma, de uma traição? Rita contou a conversa que tinha tido com a Verónica e Carla, quando percebeu o seu erro, chorou de arrependimento. A sua primeira reação foi levantar-se e ir pedir perdão a Verónica. Os restantes não a deixaram, pois, o caso era perfeito. Eles iam deixar o outro grupo julgar o caso e no fim Carla pediria perdão a Verónica

Quando eles apresentaram o caso, Verónica percebeu tudo. Explicou ao Ricardo o que se tinha passado e este fez as perguntas necessárias, para demonstrar que tudo não passava de um mal-entendido. Resolvido o caso, Carla e Verónica caíram nos braços uma da outra.

– Promete que se algum dia voltarmos a estar numa situação semelhante, falas comigo e me confrontas com os factos. Um mal-entendido, se não for clarificado, pode dar cabo de uma relação. – Disse Verónica.

Carla concordou. Terminado o jantar elas tiveram a sua primeira noite de intimidade.

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