REDUÇÃO DE HORÁRIO OU CONCENTRAÇÃO DE TRABALHO

A polémica estava instalada. Como de costume, quando se tratava de dar opinião, o grupo fragmentava-se e as opiniões eram tantas quanto o número de membros. A redução do número de dias de trabalho semanal estava na ordem do dia, no entanto, “aquilo” que essa redução trazia associado era percebido de forma distinta por cada pessoa. Isso resultava do facto de cada um ser diferente e, consequentemente, ter um entendimento distinto da realidade, mas também do facto de as pessoas se encontrarem em estágios diferentes da vida e terem, consequentemente, interesses distintos.

O irmão do Ricardo trabalhava para uma grande empresa espanhola, cujo nome vamos manter em sigilo, por razões óbvias e tinha, recentemente, sido confrontado com uma proposta de redução do número de dias de trabalho semanal e a consequente redução, proporcional, do salário. Para incentivar os trabalhadores a aderir ao esquema, a empresa compensava-os, devolvendo-lhes 20% do valor da redução. As notícias, amplamente divulgadas, faziam saber que os trabalhadores acharam a proposta pouco interessante e que não estavam a aderir à mesma. O foco estava, portanto, colocado no aspeto financeiro.

– Não entendo as reticências do teu irmão e dos colegas. Seguramente que não estavam à espera de ver o trabalho reduzido e manter exatamente o mesmo salário.  E o malabarista sou eu! – Comentou o Pedro, em tom brincalhão.

– Para nós isso não funciona, pois temos poucos médicos disponíveis para o número de doentes que existe. No entanto, se fosse possível eu não aceitaria. Penso que esse esquema pode ser interessante para pessoas mais velhas, para quem o salário já não seja tão relevante e possam aceitar uma redução, sem que esta impacte nos seus orçamentos. – Disse Carla.

– Talvez tenhas razão, mas nos dias de hoje fala-se tanto de menos trabalho e mais “viver” que se torna um pouco estranho ver que uma oferta destas não foi aceite. Eu penso que é importante aliviar a carga de trabalho e o stress das pessoas que trabalham. Na minha empresa já praticamos um pouco isso. – Disse Rita.

Ricardo mantinha-se impassível. Era notório que tinha algo a dizer, mas estava à espera de ouvir a opinião de todos, para depois largar a bomba.

– Eu penso que cada um deve escolher um trabalho que lhe dê satisfação e não o coloque em stress. Foi essa a minha opção. – Disse Nuno

– Isso é muito bonito, Nuno, mas pouco funcional. Nem todos conseguem fazer isso. No meu caso não me posso queixar quanto ao amor à profissão, no entanto, quanto ao stress… – Disse João.

– Na vida a maioria das vezes fazemos o que podemos e não o que queremos. No entanto, eu não recusava a oferta se pudesse não trabalhar aos fins de semana, quanto mais à sexta feira! Mas, o meu caso é diferente! – Disse Vitória.

Apesar de a Vanessa não se ter pronunciado, Ricardo não conseguiu conter-se mais e explicou.

– Efetivamente, para um vasto conjunto de pessoas, a redução salarial pode ser um problema. No entanto, a percentagem de trabalhadores que sente esse problema com acuidade, é muito inferior à percentagem de pessoas que rejeitou a proposta de redução do horário semanal de trabalho.  Aquilo que está em causa, para essas pessoas, é, sobretudo, a clarificação sobre a exigência de performance antes e depois da redução do horário. – Disse Ricardo, fazendo uma pausa.

– Como assim? O volume de tarefas a ser executadas tem de ser reduzido na mesma proporção do horário. – Disse João.

– Aí é que a “porca torce o rabo”. – Disse Ricardo.

– Explica lá isso melhor, pois não quero acreditar que entendi bem aquilo que disseste. – Pediu Carla.

– As tarefas que existem para executar continuam a ser as mesmas e o número de pessoas para as executar também. Assim, o que está em causa é que as pessoas têm de trabalhar mais horas, nos quatro dias que têm para as executar, ao mesmo tempo que estão a prescindir de parte do seu salário. – Esclareceu Ricardo.

– Mas isso é uma burla! – Exclamou Pedro.

– Porque achas que a proposta teve tão pouca adesão? Penso que só devem ter aderido aqueles que estavam subocupados. – Disse Ricardo.

– Quer dizer que as empresas arranjaram forma de colocar os trabalhadores a fazer o mesmo trabalho, iludindo-os com a promessa de uma redução do horário e reduzindo-lhes o salário como se estivessem, efetivamente, a trabalhar menos? – Interrogou-se Rita.

– Nem mais. – Confirmou Ricardo.

– Isso não é uma medida de redução de horário do trabalho, mas sim de concentração do trabalho. – Disse Vanessa.

– Na verdade, os trabalhadores iriam ter de dar mais horas à empresa durante quatro dias, para poder não trabalhar à sexta feira. Nesse caso qualquer redução de salário é completamente injusta. A empresa vai ter a mesma produção e custos menores, pois, à sexta feira, não paga energia, água e todos os consumíveis associados ao seu funcionamento. O justo era repartir esse ganho com os trabalhadores e aumentar o salário destes. – Disse Nuno.

– Não sei se deveríamos ir tão longe. Na verdade, caso existisse uma redução do trabalho, os trabalhadores teriam o benefício de ter mais um dia de descanso. A redução de custo será o benefício da empresa. A medida só funcionará se for interessante para ambas as partes. – Disse o João.

O debate continuou durante algumas horas e havia sempre alguma coisa a dizer, por parte de cada elemento do grupo. Embora não chegassem a consenso, sobre a forma de implementar a medida, a opinião sobre a injustiça da proposta que a empresa tinha feito era unânime: todos a condenavam. Quem acabou por colocar um ponto final à conversa foi a Vanessa, com um dos seus comentários.

– As empresas até agora vendiam o resultado do uso da mão-de-obra dos trabalhadores a terceiros, agora descobriram um novo mercado: vender a mão de obra aos próprios trabalhadores.

O grupo soltou uma gargalhada e pela primeira vez, durante toda a discussão, estiveram todos de acordo.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s